O custo do protecionismo na saúde: pagando mais por menos inovação
O Governo Federal lançou um novo programa voltado para a indústria nacional, chamado Nova Indústria Brasil (NIB)
Publicado em 2 de fevereiro de 2024 às, 14h11.
O Governo Federal lançou um novo programa voltado para a indústria nacional, chamado Nova Indústria Brasil (NIB), descrito como uma “política de neoindustrialização [...] elaborada por meio de um amplo diálogo nos grupos de trabalho do Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial (CNDI)”. O objetivo é reverter a característica da produção nacional voltada a produtos primários e de baixa complexidade tecnológica, reposicionando, assim, o país como exportador de tecnologia.
Respaldado pela Resolução nº 1 do CNDI, de 06/07/2023, o NIB afirma que a indústria é um instrumento para a superação dos grandes gargalos da nossa sociedade. O programa estabelece princípios e metas para o Estado Brasileiro, bem como enumera os instrumentos, ações e políticas públicas que devem ser empreendidas para alcançá-las. Inclusão econômica, social, de gênero, cor e étnica, sustentabilidade, recolocação do Brasil no comércio externo através de incremento da produtividade, competitividade, tecnologia e inovação são algumas das aspirações da nova política.
Trata-se de um projeto ambicioso e que, se alcançar os resultados esperados, tornará o Brasil uma das maiores potências econômicas, uma das sociedades mais justas, além de contar com o melhor sistema de saúde público do mundo. Para chegar lá, o Estado usará de instrumentos diversos, desde subvenções e créditos tributários, passando por requisitos de conteúdo local e/ou margem de preferência (Lei nº 12.349/2010 pela qual há prioridade em produtos nacionais), até participação acionária. O papel do Estado, então, será dividido em três frentes: (i) instrumentos financeiros e fomento; (ii) melhoria do ambiente de negócios; e (iii) protecionismo comercial.
Uma das novidades do NIB é organizar seus objetivos em torno de "missões" temáticas. São 6 ao total: agro, saúde, infraestrutura, digital, bioeconomia e soberania nacional. Vamos olhar para a segunda das 6 missões do NIB: “Complexo econômico industrial da saúde resiliente para reduzir as vulnerabilidades do SUS e ampliar o acesso à saúde”.
Há um aforismo hipocrático que afirma: “se bem diagnosticado, bem tratado”. Como oncologista, não poderia concordar mais. Sem conhecer as alterações moleculares e as mutações genômicas dos tumores, sem diagnosticar adequadamente um câncer, é impossível indicar um tratamento eficaz. Olhando para o documento do NIB, há uma frase resumindo o problema, ou seja, que estabelece o diagnóstico: “A produção nacional responde por 42% das necessidades nacionais”. E, a partir do diagnóstico, o tratamento proposto é adotar uma série de medidas visando aumentar a produção nacional de insumos e tecnologias em saúde. Dentre as seis medidas previstas no contexto desta missão, apenas uma se refere ao desenvolvimento de inovações disruptivas. A última delas, curiosamente.
O programa aparenta ser formulado com base em boa vontade, boas ideias e, ao que tudo indica, busca intensificar o fomento à produção científica, o que é ótimo. Mas falha no diagnóstico.
Importamos 90% dos insumos básicos na área da saúde, a um custo de US$20 bilhões até 2033. Seria esse o motivo do nosso atraso? Caso investíssemos em plantas industriais para produção de insumos dessa natureza a um custo maior (que é um dos desfechos esperados da NIB) qual seria o real benefício ao país? Apenas os empregos gerados nessas plantas justificariam o protecionismo a uma indústria nos moldes que ocorre, por exemplo, na indústria automobilística?
Uma proposta baseada em evidências deveria ir muito além do fomento financeiro baseado em valor, e focar na melhoria do ambiente de negócios, na segurança jurídica, na diminuição da burocracia e, sim, na diminuição do protecionismo assegurado às empresas estatais. Felizmente, algumas dessas medidas são previstas no plano, em especial a desburocratização - o que é positivo, mas não suficiente.
Ao contrário do que pensa o governo, o protecionismo e a falta de concorrência são algumas das principais razões para contarmos com uma indústria nacional de baixa produtividade e pior tecnologia. A empresa Novo Nordisk, produtora do Ozempic, faturou nos primeiros 9 meses de 2023 US$23 bilhões. Isso apenas em vendas diretas - sem contar todos os benefícios em pesquisa e desenvolvimento que a empresa trouxe à Dinamarca. Apenas a Novo Nordisk, com poucos produtos (e fábricas em 9 países, incluindo Brasil), gera mais riqueza ao seu país em nove meses do que todo o consumo de insumos básicos em saúde em 10 anos no Brasil. A produção de tecnologia é, em última análise, produção de riqueza - e essa só é gerada em uma sociedade que nutre um ambiente institucional e uma cultura política propícios ao desenvolvimento científico-tecnológico.
Vimos o mundo se livrar de uma pandemia após pesquisas conduzidas em empresas privadas de biotecnologia como a BioNTech, Janssen e a Moderna, mas também por parcerias público privadas, como o projeto nascido em Oxford - que une financiamento estatal e produção privada, liderada pela AstraZeneca e diversas fábricas em dezenas de países. Foi a manifestação da economia global pautada em eficiência. Uma prova que revelou os melhores atores globais no cenário da biotecnologia.
Aqui no Brasil, tivemos exemplos interessantes: de um lado, uma entidade estatal (Instituto Butantã) fortemente protegida adotou uma estratégia de custo-benefício duvidoso e pouca transparência, culminando na escolha de uma vacina produzida em parceria com empresas chinesas. De outro, houve a produção com transferência de tecnologia de uma vacina de vetor viral de resultado aquém do esperado em termos de rapidez e quantidade, caso da Fiocruz. Ambos são exemplos da nossa fragilidade industrial.
Paradoxalmente, pesquisadores brasileiros estavam em praticamente todos os projetos bem-sucedidos mundo afora. A tecnologia de vetor viral estava presente no Brasil há décadas, mas o péssimo ambiente de negócios, o excesso de burocracia, a constante demonização da iniciativa privada e o protecionismo às empresas estatais em detrimento das startups privadas continuarão a afugentar esses profissionais e nossas capacidades.
Por fim, o NIB parece estimular um aumento da participação do Estado na cadeia de produção tecnológica em saúde, além de promover o aumento da ingerência do governo federal neste mercado. Estabelece Brasília como estimuladora das inovações, direcionadora dos parques fabris, dá aos entes públicos o papel de julgadores dos projetos e a chave do cofre para liberação dos fomentos. Privilegia a maioria dos recursos para estatais, hospitais filantrópicos e universidades públicas. Justo essas entidades que pouca tradição tem em inovações (lembrando que inovação é diferente de produção de artigo científico e a nossa maior universidade tem apenas 1 patente com retorno significativo). Se a sociedade conseguiu criar oásis de inovação e tecnologia, como o SUPERA parque em Ribeirão Preto entre outros, o mais adequado seria descentralizar os recursos e dar autonomia a essas instituições não governamentais.
Há sim pontos positivos no NIB, entretanto. Aumentar acesso à saúde, fortalecer o SUS, trazer equidade e reduzir vulnerabilidades são ótimos desfechos a serem alcançados. É preciso, no entanto, aprimorar o diagnóstico e direcionar melhor o tratamento.