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O bilhete dourado: Índia, Brasil e as promessas adiadas 

De acordo com expectativas e compromissos do governo, até 2047 a Índia alcançará o status de país desenvolvido

Turistas visitam Jama Masjid em meio a uma espessa poluição atmosférica, nos bairros antigos de Déli, em 18 de novembro de 2024. Moradores da capital da Índia, Nova Déli, sufocaram em uma névoa tóxica em 18 de novembro, enquanto a poluição do ar piorava e ultrapassava 60 vezes o máximo diário recomendado pela Organização Mundial da Saúde (Sajjad HUSSAIN/AFP)

Turistas visitam Jama Masjid em meio a uma espessa poluição atmosférica, nos bairros antigos de Déli, em 18 de novembro de 2024. Moradores da capital da Índia, Nova Déli, sufocaram em uma névoa tóxica em 18 de novembro, enquanto a poluição do ar piorava e ultrapassava 60 vezes o máximo diário recomendado pela Organização Mundial da Saúde (Sajjad HUSSAIN/AFP)

Instituto Millenium
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Publicado em 4 de abril de 2025 às 17h37.

Última atualização em 4 de abril de 2025 às 17h38.

Por Pedro Ricco Deos, associado do IEE, sócio do MBZ Advogados, mestre em Direito Comercial pela USP 

 

O Brasil e a Índia são inconfundíveis. Por mais que nossos pretensos descobridores acreditassem ter desembarcado na terra das especiarias quando ancoraram suas naus e caravelas naquele que viria a ser o país do Carnaval, do samba e das emendas parlamentares, não restam semelhanças que permitam o equívoco. Quem desembarca no aeroporto Indira Gandhi ou no porto de Mundra de imediato percebe que não está nem no Rio de Janeiro, nem em Salvador.   

Repararia no trajeto a ambos os destinos na flora abundante e na chamativa biodiversidade. Mas, mesmo ciente de que os dois países têm os maiores rebanhos bovinos do mundo, saberia que nosso gado está predominantemente confinado em área rural e não desfila pelas ruas como transeunte. A confusão estaria desfeita. Não haveria mais o risco de o expedicionário desavisado batizar aqueles que aqui habitam de “índios”. Seriam impreterivelmente “brasílios”.    

Superado o choque com as dessemelhanças, passaria a notar nas sutilezas o que há em comum e, se para tanto estivesse disposto, aprenderia com algumas das lições da maior democracia do mundo. Assim como nós, os indianos viveram sempre com a promessa nunca realizada de um bilhete dourado: a ilusão, sustentada em projeções econômicas e dados demográficos, de que seriam a nação do futuro. Promessas essas constantemente renovadas e que se chocam com a realidade – a condição de sempre ter sido o país do futuro e o eterno retorno ao presente turbulento. Não bastasse a frustração com a sua situação, a Índia assistiu à China, um de seus rivais políticos, alcançar por seus meios o que lhe fora sonegado.  

Após a independência, em 1947, e o rompimento definitivo com o Império Britânico, a Índia experimentou décadas de crescimento econômico pífio, o que levou à cunhagem da pejorativa expressão “taxa de crescimento hindu”, descrevendo o modesto avanço anual do PIB entre 1950 e 1980. Inspirada no modelo soviético de planejamento econômico, ampliou-se a presença estatal na economia, especialmente a partir da Comissão Planejadora e dos sucessivos planos quinquenais.  

Sob uma política de substituição de importações, a economia indiana foi progressivamente fechada ao investimento estrangeiro, reduzindo a sua competitividade e limitando o desenvolvimento tecnológico.  No contexto de tais políticas protecionistas, o Estado promoveu a nacionalização de bancos e setores estratégicos da indústria, e estabeleceu monopólios. O efeito dessas medidas não poderia ser outro senão a alocação ineficiente de capital e um deprimente crescimento econômico, que pouco contribuíram para a redução da pobreza e a melhora da condição de vida da população.  

Tal qual ocorreu no Brasil, os ventos começaram a soprar em outra direção no início dos anos 1990. Pressionada pela urgência em desatar os nós das décadas anteriores, a Índia promoveu reformas liberalizantes, devolvendo ao mercado a liberdade confiscada pelo intervencionismo estatal. Os monopólios públicos tombaram, as estatais – inclusive do setor de telecomunicação – foram privatizadas, um regime monetário moderno foi adotado e as portas, antes cerradas ao investimento estrangeiro, começaram a ser abertas, restaurando a competição entre agentes econômicos.  

A Índia parece, enfim, ter aprendido as lições. Os avanços obtidos após a guinada liberal não retrocederam. Embora as estatísticas econômicas indianas devam ser vistas com cautela, é inegável que o país escapou da “taxa de crescimento hindu”. Após as reformas econômicas e estruturais, a economia cresceu a uma média anual de 5,7% até o início dos anos 2000, mantendo vigor semelhante (5,6%) entre 2014 e 2020. Sob o governo Modi, investimentos expressivos em rodovias, ferrovias e obras de infraestrutura têm removido gargalos históricos, prometendo ampliar essa trajetória ascendente, tentando finalmente cumprir a promessa daquele antigo bilhete dourado.  

De acordo com expectativas e compromissos do governo, até 2047 – ano em que celebrará o centenário de sua independência –, a Índia alcançará o status de país desenvolvido. Apesar dos inúmeros desafios, e com a ressalva de quem muito já se frustrou com promessas anteriores, espera-se que o PIB indiano alcance a marca de US$ 10 trilhões nas próximas décadas, tornando-se a terceira maior economia do mundo. Enquanto o Brasil ainda lamenta os equívocos de suas políticas fiscais, o mundo observa o nosso par no Brics com expectativas renovadas e inegável otimismo.  

Não se sugere que o Brasil mire na Índia como quem lê um manual; nem se afirma que as conquistas sejam unilaterais. A Terra do Rio Ganges permanece marcada por uma pobreza persistente, desigualdades sociais profundas e frequentes tensões étnicas e religiosas, além de ameaças concretas à solidez democrática provocadas por tendências autoritárias crescentes. Dentre outros, os avanços do Brasil no setor de saneamento, amplificados pelo recente Marco Legal, deveriam servir como exemplo para os formuladores de políticas indianas.  

Não podemos, contudo, fechar os olhos para as lições de lá. Quem sabe, então, na próxima ocasião em que o Cristo Redentor decolar como um foguete, não caia logo depois bem ao lado do Corcovado. 

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