Não me permitiram ter travesseiro e uma foto da minha filha, diz ex-preso político da Nicarágua
Félix Maradiaga, líder da oposição na Nicarágua, fala sobre reconstruir a democracia no país e conta sobre o período em que ficou preso pelo regime
Instituto Millenium
Publicado em 6 de fevereiro de 2024 às 15h29.
Félix Maradiaga, reconhecido líder da oposição na Nicarágua e crítico ferrenho do regime de Daniel Ortega, emergiu como uma voz proeminente pela democracia e pelos direitos humanos em sua terra natal. Aos 47 anos, tendo enfrentado prisão política e sobrevivido a tentativas de assassinato, Maradiaga ocupa a posição de primeiro palestrante confirmado para a 37ª edição do Fórum da Liberdade, que se realizará nos dias 4 e 5 de abril de 2024 na PUCRS, em Porto Alegre. Sua experiência pessoal, marcada por acusações criminais fabricadas, campanhas difamatórias e um encarceramento desumano que culminou em sua deportação e na perda forçada de sua nacionalidade, reflete a repressão política enfrentada por muitos na Nicarágua sob Ortega. Hoje, vivendo como apátrida nos Estados Unidos, Maradiaga continua a lutar pela liberdade e justiça.
Na entrevista, Maradiaga enfatiza a necessidade de unificar a oposição na Nicarágua, que abrange uma gama diversificada de grupos, desde liberais até ex-aliados de Ortega, para enfrentar efetivamente o regime. Ele destaca o papel vital das organizações internacionais e da comunidade internacional em apoiar a transição democrática, apontando para a sua própria luta e a dos exilados políticos como um exemplo da resistência contra a tirania. Maradiaga também discute as condições necessárias para a realização de eleições livres e justas na Nicarágua, destacando a importância da reintegração dos direitos políticos e civis. Além disso, reflete sobre sua experiência prisional, apontando a ausência de acesso a qualquer forma de literatura como um meio de isolamento extremo imposto pelo regime. Este relato reforça sua mensagem sobre a resiliência humana e a importância da não-violência, do perdão e da reconciliação no processo de construção de uma sociedade democrática.
Instituto Millenium: A política externa do Brasil e de alguns setores da esquerda sul-americana revela uma contradição: enquanto defendem os direitos humanos internamente, com frequência adotam uma abordagem de não-intervenção em relação a regimes autoritários no exterior, caso da Nicarágua. Em sua opinião, como essa dicotomia afeta a promoção da democracia e dos direitos humanos na região?
Félix Maradiaga: A ambivalência na política externa do Brasil e de certos setores da esquerda sul-americana, ao defenderem os direitos humanos internamente mas mostrarem uma atitude diferente em relação a regimes autoritários no exterior, pode enfraquecer a promoção da democracia e dos direitos humanos em toda a região. Isso mina a universalidade dos direitos humanos ao permitir que sejam interpretados de acordo com conveniências políticas, em vez de mantê-los como princípios inalienáveis e universais. Esta contradição pode prejudicar os esforços para fomentar a democracia e os direitos humanos na América Latina, já que enfraquece a coerência e a credibilidade na defesa desses valores.
IM: Diante dos desafios enfrentados pela oposição na Nicarágua, quais estratégias você propõe para unificar as forças contrárias ao regime de Ortega? Além disso, qual é o papel ideal das organizações internacionais e da comunidade global neste esforço de unificação?
FM: A unidade da oposição frente a um regime como o de Ortega é complicada por várias razões, principalmente devido à diversidade dos setores que se opõem à ditadura na Nicarágua. Por exemplo, a oposição inclui pessoas com uma tradição liberal e antissandinista, como é o meu caso, mas também indivíduos corajosos que vêm da esquerda e que em algum momento apoiaram Ortega, mas que hoje estão do lado certo da história. Além disso, existem setores estudantis, camponeses, indígenas, movimentos feministas e setores conservadores ligados à empresa privada. Nesse sentido, acredito que a estratégia principal consiste em uma oposição unida em torno de um plano de nação e uma estratégia comum, em vez de estar organizada dentro de uma mesma plataforma. Esta é a proposta que tenho apresentado em várias ocasiões, e tenho confiança em que de fato está se consolidando uma oposição que, apesar das diferentes vozes, mantém seu foco nos mesmos objetivos.
Quanto à sua segunda pergunta: o papel fundamental das organizações internacionais é fazer valer o direito internacional, em particular o direito interamericano e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que Ortega tem pisoteado e ignorado. É muito preocupante que um regime autoritário cometa crimes contra a humanidade e graves violações dos direitos humanos sem enfrentar consequências significativas. Nossa principal exigência é que se façam valer as mesmas convenções e tratados dos quais a Nicarágua é signatária, por exemplo, em matéria de erradicação da tortura, respeito à propriedade privada, a detenção arbitrária e outros direitos fundamentais, como o direito à nacionalidade. É inaceitável que no século XXI tenham sido declarados apátridas vários nicaraguenses. Não pedimos intervenção nem ingerência da comunidade internacional, mas sim solidariedade democrática baseada nas normas internacionais.
IM: Você enfatizou a necessidade de eleições livres e justas como um pilar da democracia. Quais medidas específicas são necessárias para estabelecer estas condições na Nicarágua? Como os exilados políticos, como você, podem contribuir para esse processo?
FM: A deterioração institucional na Nicarágua é tão grave que atualmente não é possível realizar eleições livres nas condições existentes. Os retrocessos são tão significativos que, para considerar eleições, primeiro devemos abordar a restituição dos direitos da oposição nicaraguense, incluindo a possibilidade de retornar ao país, a capacidade de se organizar em partidos reconhecidos como legítimos (hoje declarados ilegais), e a possibilidade de exercer a oposição política sem medo de serem assassinados ou encarcerados. Sem essas condições fundamentais, é praticamente impossível pensar em um processo eleitoral.
Dado que essas condições ainda não foram restabelecidas, a importância da oposição política no exílio e da diáspora nicaraguense é de grande magnitude. Embora a atenção principal deva se concentrar em manter a capacidade de resistência cívica dentro do território nicaraguense, as oposições no exílio desempenham um papel crucial na incidência internacional, na organização política e na preparação das condições e capacidades necessárias para reconstruir o país em um cenário de transição democrática. Ao longo da história, houve numerosas experiências de grupos de oposição no exílio que desempenharam um papel fundamental na restauração da democracia em seu momento. Naturalmente, o grande desafio reside em não perder o contato com a população que permanece no país e que hoje sente que vive em uma espécie de prisão devido ao que a Nicarágua se tornou sob o governo de Ortega.
IM: Você destacou a importância de superar a violência para alcançar a mudança na Nicarágua. Como você visualiza o processo de reconciliação e transição para um sistema democrático? Existem exemplos de outros contextos históricos que você considera como modelos?
FM: Na Nicarágua, devemos partir do fato de que houve uma transição democrática falha e incompleta. Após duas guerras civis em 1979 contra Somoza e a guerra civil da década de 80, muitas feridas ficaram abertas na sociedade nicaraguense. Por essa razão, o principal desafio de um eventual processo de reconciliação e transição é abordar os grandes temas pendentes que ficaram sem resolução, principalmente a questão da justiça. Cometeu-se o erro de pensar que se poderia alcançar uma transição democrática sem prestar atenção na busca pela verdade e memória, assumindo que a impunidade era um mal necessário. O que acabou acontecendo foi o retorno da ditadura sandinista e um retrocesso nos modestos avanços democráticos.
É verdade que os processos de transição democrática são complexos e não podem abordar todos os problemas da sociedade de uma vez, mas considero que a tarefa fundamental é restabelecer o Estado de Direito, o império da lei e a restituição das liberdades básicas, o que só é possível consolidando um sistema de justiça imparcial. Os temas de reconstrução pós-conflito relacionados à macroeconomia e aos direitos de propriedade são importantes, mas estão subordinados à capacidade de estabelecer um Estado de direito.
Os exemplos históricos mais relevantes são, paradoxalmente, os mesmos aprendizados que tivemos na transição democrática nicaraguense. Em outras palavras, aprender com nossos próprios erros. Indubitavelmente, o maior erro foi permitir um ambiente de impunidade que depois gerou o colapso da incipiente democracia pela qual tanto lutamos.
Finalmente, erradicar a cultura da violência é um trabalho longo e doloroso que infelizmente levará gerações, mas que começa com o reconhecimento de que a cultura da paz não surge espontaneamente. A paz deve ser uma política pública e, ao mesmo tempo, um objetivo nacional. A paz não é apenas a ausência de conflito, mas a consolidação de um contrato social que respeite as liberdades individuais e dê às pessoas a certeza de que existe um Estado de Direito que trata a todos igualmente. Enquanto esse contrato social estiver falho, a possibilidade de explosão da violência continuará sendo uma ameaça constante.
IM: Sua experiência na prisão levou a reflexões sobre a importância da literatura em tempos de adversidade, citando exemplos como 'Dom Quixote' e 'O Príncipe', que foram escritas em condições de encarceramento. Como essa experiência moldou sua abordagem política e pessoal?
FM: De fato, em algumas ocasiões mencionei o quão cruel e inumano foi meu período na prisão, onde nunca tive acesso a nenhum tipo de literatura. Não me permitiram ter nem mesmo um pedaço de papel ou um lápis. Até me foi negado o direito de ter uma bíblia ou ao menos ler alguma carta familiar ou fazer alguma ligação telefônica. Na minha cela, nem sequer existia um travesseiro, um cobertor ou uma fotografia da minha filha. O objetivo da ditadura era o isolamento total e absoluto, chegando até a realizar meu julgamento dentro das mesmas instalações carcerárias e proibindo-me de falar com meu advogado. É por essa razão que eu refletia sobre como, até na história medieval, respeitava-se o direito de um prisioneiro ter acesso à literatura, algo que em nenhum momento me foi permitido.
No entanto, a lição aprendida nesse deserto é que o ser humano pode sobreviver mesmo em situações tão extremas como as que vivemos no centro de auxílio judicial conhecido popularmente na Nicarágua como El Chipote. A conclusão mais importante é que o regime queria encher nossos corações de ódio e ressentimento, sabendo que nesse terreno do ódio é onde eles tinham vantagem. Mas aqueles de nós que amamos a liberdade e acreditamos no direito à dignidade humana sustentamos que não podemos partir do ódio ou do ressentimento para construir sociedades diferentes. No meu caso, sempre me concentrei em garantir que essas condições extremas de privação de literatura, luz solar e isolamento total não quebrassem minha capacidade de buscar o perdão e a reconciliação com aqueles que me torturaram. Estive sempre comprometido com justiça, a liberdade e a convicção de que os seres humanos podem chegar a um acordo usando a razão e o direito como a pedra angular de sociedades livres de violência.
Félix Maradiaga, reconhecido líder da oposição na Nicarágua e crítico ferrenho do regime de Daniel Ortega, emergiu como uma voz proeminente pela democracia e pelos direitos humanos em sua terra natal. Aos 47 anos, tendo enfrentado prisão política e sobrevivido a tentativas de assassinato, Maradiaga ocupa a posição de primeiro palestrante confirmado para a 37ª edição do Fórum da Liberdade, que se realizará nos dias 4 e 5 de abril de 2024 na PUCRS, em Porto Alegre. Sua experiência pessoal, marcada por acusações criminais fabricadas, campanhas difamatórias e um encarceramento desumano que culminou em sua deportação e na perda forçada de sua nacionalidade, reflete a repressão política enfrentada por muitos na Nicarágua sob Ortega. Hoje, vivendo como apátrida nos Estados Unidos, Maradiaga continua a lutar pela liberdade e justiça.
Na entrevista, Maradiaga enfatiza a necessidade de unificar a oposição na Nicarágua, que abrange uma gama diversificada de grupos, desde liberais até ex-aliados de Ortega, para enfrentar efetivamente o regime. Ele destaca o papel vital das organizações internacionais e da comunidade internacional em apoiar a transição democrática, apontando para a sua própria luta e a dos exilados políticos como um exemplo da resistência contra a tirania. Maradiaga também discute as condições necessárias para a realização de eleições livres e justas na Nicarágua, destacando a importância da reintegração dos direitos políticos e civis. Além disso, reflete sobre sua experiência prisional, apontando a ausência de acesso a qualquer forma de literatura como um meio de isolamento extremo imposto pelo regime. Este relato reforça sua mensagem sobre a resiliência humana e a importância da não-violência, do perdão e da reconciliação no processo de construção de uma sociedade democrática.
Instituto Millenium: A política externa do Brasil e de alguns setores da esquerda sul-americana revela uma contradição: enquanto defendem os direitos humanos internamente, com frequência adotam uma abordagem de não-intervenção em relação a regimes autoritários no exterior, caso da Nicarágua. Em sua opinião, como essa dicotomia afeta a promoção da democracia e dos direitos humanos na região?
Félix Maradiaga: A ambivalência na política externa do Brasil e de certos setores da esquerda sul-americana, ao defenderem os direitos humanos internamente mas mostrarem uma atitude diferente em relação a regimes autoritários no exterior, pode enfraquecer a promoção da democracia e dos direitos humanos em toda a região. Isso mina a universalidade dos direitos humanos ao permitir que sejam interpretados de acordo com conveniências políticas, em vez de mantê-los como princípios inalienáveis e universais. Esta contradição pode prejudicar os esforços para fomentar a democracia e os direitos humanos na América Latina, já que enfraquece a coerência e a credibilidade na defesa desses valores.
IM: Diante dos desafios enfrentados pela oposição na Nicarágua, quais estratégias você propõe para unificar as forças contrárias ao regime de Ortega? Além disso, qual é o papel ideal das organizações internacionais e da comunidade global neste esforço de unificação?
FM: A unidade da oposição frente a um regime como o de Ortega é complicada por várias razões, principalmente devido à diversidade dos setores que se opõem à ditadura na Nicarágua. Por exemplo, a oposição inclui pessoas com uma tradição liberal e antissandinista, como é o meu caso, mas também indivíduos corajosos que vêm da esquerda e que em algum momento apoiaram Ortega, mas que hoje estão do lado certo da história. Além disso, existem setores estudantis, camponeses, indígenas, movimentos feministas e setores conservadores ligados à empresa privada. Nesse sentido, acredito que a estratégia principal consiste em uma oposição unida em torno de um plano de nação e uma estratégia comum, em vez de estar organizada dentro de uma mesma plataforma. Esta é a proposta que tenho apresentado em várias ocasiões, e tenho confiança em que de fato está se consolidando uma oposição que, apesar das diferentes vozes, mantém seu foco nos mesmos objetivos.
Quanto à sua segunda pergunta: o papel fundamental das organizações internacionais é fazer valer o direito internacional, em particular o direito interamericano e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que Ortega tem pisoteado e ignorado. É muito preocupante que um regime autoritário cometa crimes contra a humanidade e graves violações dos direitos humanos sem enfrentar consequências significativas. Nossa principal exigência é que se façam valer as mesmas convenções e tratados dos quais a Nicarágua é signatária, por exemplo, em matéria de erradicação da tortura, respeito à propriedade privada, a detenção arbitrária e outros direitos fundamentais, como o direito à nacionalidade. É inaceitável que no século XXI tenham sido declarados apátridas vários nicaraguenses. Não pedimos intervenção nem ingerência da comunidade internacional, mas sim solidariedade democrática baseada nas normas internacionais.
IM: Você enfatizou a necessidade de eleições livres e justas como um pilar da democracia. Quais medidas específicas são necessárias para estabelecer estas condições na Nicarágua? Como os exilados políticos, como você, podem contribuir para esse processo?
FM: A deterioração institucional na Nicarágua é tão grave que atualmente não é possível realizar eleições livres nas condições existentes. Os retrocessos são tão significativos que, para considerar eleições, primeiro devemos abordar a restituição dos direitos da oposição nicaraguense, incluindo a possibilidade de retornar ao país, a capacidade de se organizar em partidos reconhecidos como legítimos (hoje declarados ilegais), e a possibilidade de exercer a oposição política sem medo de serem assassinados ou encarcerados. Sem essas condições fundamentais, é praticamente impossível pensar em um processo eleitoral.
Dado que essas condições ainda não foram restabelecidas, a importância da oposição política no exílio e da diáspora nicaraguense é de grande magnitude. Embora a atenção principal deva se concentrar em manter a capacidade de resistência cívica dentro do território nicaraguense, as oposições no exílio desempenham um papel crucial na incidência internacional, na organização política e na preparação das condições e capacidades necessárias para reconstruir o país em um cenário de transição democrática. Ao longo da história, houve numerosas experiências de grupos de oposição no exílio que desempenharam um papel fundamental na restauração da democracia em seu momento. Naturalmente, o grande desafio reside em não perder o contato com a população que permanece no país e que hoje sente que vive em uma espécie de prisão devido ao que a Nicarágua se tornou sob o governo de Ortega.
IM: Você destacou a importância de superar a violência para alcançar a mudança na Nicarágua. Como você visualiza o processo de reconciliação e transição para um sistema democrático? Existem exemplos de outros contextos históricos que você considera como modelos?
FM: Na Nicarágua, devemos partir do fato de que houve uma transição democrática falha e incompleta. Após duas guerras civis em 1979 contra Somoza e a guerra civil da década de 80, muitas feridas ficaram abertas na sociedade nicaraguense. Por essa razão, o principal desafio de um eventual processo de reconciliação e transição é abordar os grandes temas pendentes que ficaram sem resolução, principalmente a questão da justiça. Cometeu-se o erro de pensar que se poderia alcançar uma transição democrática sem prestar atenção na busca pela verdade e memória, assumindo que a impunidade era um mal necessário. O que acabou acontecendo foi o retorno da ditadura sandinista e um retrocesso nos modestos avanços democráticos.
É verdade que os processos de transição democrática são complexos e não podem abordar todos os problemas da sociedade de uma vez, mas considero que a tarefa fundamental é restabelecer o Estado de Direito, o império da lei e a restituição das liberdades básicas, o que só é possível consolidando um sistema de justiça imparcial. Os temas de reconstrução pós-conflito relacionados à macroeconomia e aos direitos de propriedade são importantes, mas estão subordinados à capacidade de estabelecer um Estado de direito.
Os exemplos históricos mais relevantes são, paradoxalmente, os mesmos aprendizados que tivemos na transição democrática nicaraguense. Em outras palavras, aprender com nossos próprios erros. Indubitavelmente, o maior erro foi permitir um ambiente de impunidade que depois gerou o colapso da incipiente democracia pela qual tanto lutamos.
Finalmente, erradicar a cultura da violência é um trabalho longo e doloroso que infelizmente levará gerações, mas que começa com o reconhecimento de que a cultura da paz não surge espontaneamente. A paz deve ser uma política pública e, ao mesmo tempo, um objetivo nacional. A paz não é apenas a ausência de conflito, mas a consolidação de um contrato social que respeite as liberdades individuais e dê às pessoas a certeza de que existe um Estado de Direito que trata a todos igualmente. Enquanto esse contrato social estiver falho, a possibilidade de explosão da violência continuará sendo uma ameaça constante.
IM: Sua experiência na prisão levou a reflexões sobre a importância da literatura em tempos de adversidade, citando exemplos como 'Dom Quixote' e 'O Príncipe', que foram escritas em condições de encarceramento. Como essa experiência moldou sua abordagem política e pessoal?
FM: De fato, em algumas ocasiões mencionei o quão cruel e inumano foi meu período na prisão, onde nunca tive acesso a nenhum tipo de literatura. Não me permitiram ter nem mesmo um pedaço de papel ou um lápis. Até me foi negado o direito de ter uma bíblia ou ao menos ler alguma carta familiar ou fazer alguma ligação telefônica. Na minha cela, nem sequer existia um travesseiro, um cobertor ou uma fotografia da minha filha. O objetivo da ditadura era o isolamento total e absoluto, chegando até a realizar meu julgamento dentro das mesmas instalações carcerárias e proibindo-me de falar com meu advogado. É por essa razão que eu refletia sobre como, até na história medieval, respeitava-se o direito de um prisioneiro ter acesso à literatura, algo que em nenhum momento me foi permitido.
No entanto, a lição aprendida nesse deserto é que o ser humano pode sobreviver mesmo em situações tão extremas como as que vivemos no centro de auxílio judicial conhecido popularmente na Nicarágua como El Chipote. A conclusão mais importante é que o regime queria encher nossos corações de ódio e ressentimento, sabendo que nesse terreno do ódio é onde eles tinham vantagem. Mas aqueles de nós que amamos a liberdade e acreditamos no direito à dignidade humana sustentamos que não podemos partir do ódio ou do ressentimento para construir sociedades diferentes. No meu caso, sempre me concentrei em garantir que essas condições extremas de privação de literatura, luz solar e isolamento total não quebrassem minha capacidade de buscar o perdão e a reconciliação com aqueles que me torturaram. Estive sempre comprometido com justiça, a liberdade e a convicção de que os seres humanos podem chegar a um acordo usando a razão e o direito como a pedra angular de sociedades livres de violência.