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Má comunicação em saúde pública: uma enfermidade

A comunicação em saúde pública enfrentou um teste sem precedentes durante a pandemia de COVID-19; entenda

 (HAZEM BADER/AFP/AFP)
(HAZEM BADER/AFP/AFP)

A comunicação em saúde pública, um campo crítico e muitas vezes subestimado, enfrentou um teste sem precedentes durante a pandemia de COVID-19. Inspirado por um relato impactante de um usuário do X (antigo Twitter), que experimentou um raro caso de rabdomiólise após a vacinação contra a COVID-19, proponho uma reflexão sobre os desafios da divulgação científica em tempos de crise. Este incidente, e os comentários que seguiram sua divulgação em redes sociais, permitem refletir sobre os inúmeros erros que cometemos na comunicação científica durante a pandemia, erros que afetaram negativamente a confiança e a perspectiva do público em relação à ciência em um momento crítico da história. Não estivemos à altura do desafio e hoje enfrentamos os efeitos disso. 

O indivíduo sofreu de rabdomiólise, um distúrbio decorrente da vacina de mRNA, que provocou inflamação severa e infarto em sua musculatura esquelética. Este quadro clínico, que pode levar à perda de força muscular e até insuficiência renal devido à liberação massiva de produtos da degradação celular, é multifatorial. Suas causas variam desde o uso de substâncias como álcool e cocaína, passando por esforços físicos extremos, até infecções como dengue ou leptospirose. Importante lembrar que as vacinas de mRNA também estão associadas com miocardite, um mecanismo semelhante à rabdomiólise, mas ocorrendo no músculo do miocárdio (o coração), com outros desdobramentos clínicos específicos. 

O caso clínico descrito encontra respaldo na literatura médica. Felizmente, essas complicações vacinais são muito raras. 

Este incidente não só evidencia a complexidade das reações imunológicas individuais, mas também destaca a importância de um acompanhamento clínico rigoroso e uma comunicação transparente sobre os potenciais efeitos colaterais das vacinas. 

Muitos aspectos nesse relato de mídia social chamaram a atenção. São múltiplas camadas que, de certa forma, resumem o que foi esse período nebuloso da pandemia para a comunicação em ciência e, claro, suas consequências em saúde pública. A politização da ciência, a omissão de informação pelos divulgadores, a disseminação de desinformação por ignorância, as fake news deliberadas... ingredientes de um indigesto banquete servido diariamente por anos nas mídias sociais. 

O incidente aconteceu em outubro de 2021. Em um contexto onde numerosas pessoas se expõem ao ridículo e abdicam de sua autoestima em busca de uma popularidade efêmera e ilusória no mundo virtual, destaca-se o fato de que o paciente mencionado no caso relatado no Twitter permaneceu calado até o momento. Isso pode ser interpretado como uma forma de resignação e cuidado pessoal diante da exposição pública, ou pelo temor de ter sido alvo do controverso fenômeno de "cancelamento" nas redes sociais, algo que ele nega. 

Não há na história recente do país um movimento organizado antivacina. Ou melhor, não havia. Podemos afirmar que a emergência desse movimento resulta da combinação de múltiplos fatores: Tecnologias ainda não amplamente conhecidas pelo público geral, o uso das redes sociais por uma população com limitada formação educacional (no sentido técnico, conforme indicado pelo relatório PISA, e não de forma depreciativa) para debater temas de elevada complexidade científica, desonestidade de órgãos oficiais, políticos algo oligofrênicos e/ou inescrupulosos, cientistas e comunicadores em ciência com agendas políticas próprias, lobby da indústria farmacêutica, entre outros. Aspectos que tornaram nossa sociedade fragmentada, fazendo dela um terreno fértil para todo tipo de manifestações antiéticas e intelectualmente baixas, como o movimento antivacina. 

Entretanto, muitos se enganam ao culpar exclusivamente o outro lado pela degradação do debate público, seja na política ou na ciência. O que pensa uma pessoa normal (no sentido gaussiano) que quer se informar sobre uma nova doença a qual está matando seus familiares, quando lê nos perfis de instituições brasileiras centenárias que uma vacina tem eficácia de 100% em prevenir mortes, mas olha para o lado e vê seu vizinho idoso morrer de COVID após ter sido vacinado? O que pensa ela ao ficar sabendo de (raros) casos de trombose decorrentes de vacina de adenovírus como vetor viral, uma síndrome denominada VIIT ou Vaccine-induced Immune Thrombotic Thrombocytopenia, mas é chamada de "antivacina" quando fala sobre o assunto? A desonestidade e a truculência afastam e dificultam a imprescindível confiança na pessoa ou instituição que deveria instruir. 

Ao ler hoje alguns dos mais de 600 comentários do tuíte em questão, todo aquele sentimento de desesperança e tristeza na época em que era ativo na comunicação científica pelo Twitter voltou. A sensação de que o tempo passou e o entendimento sobre ciência continua igual ou pior. A maior parte dos comentários descreve achados típicos de VAERS achando que são efeitos colaterais da vacina. O VAERS é o acrônimo de Vaccine Adverse Event Reporting System, gerenciado em conjunto pelo CDC (Centers for Disease Control and Prevention) e pelo FDA (Food and Drug Administration), a agência reguladora federal de saúde e vigilância sanitária dos EUA, criado em 1990 para detectar possíveis problemas de segurança com os imunizantes.  

A ideia é ter um sistema de alta sensibilidade, mas baixa especificidade para fazer a curadoria dos eventos relatados abertamente. Se toda uma população estiver vacinada, todas as mortes, infartos agudos do miocárdio e AVCs, por exemplo, serão em pessoas vacinadas. E as agências especializadas investigam se o número de eventos de cada uma das doenças aumentou após as vacinas em comparação ao histórico daquela população. Foi assim que se descobriu a grave VIIT citada acima ou a não grave miocardite em jovens. Eventos extremamente raros na ordem de um caso para cada 1 milhão de vacinados. E foi assim também que vimos que as vacinas não aumentaram infartos agudos do miocárdio nem AVCs. 

Vacinar-se contra a COVID-19 foi, como toda atitude em nossas vidas, uma troca. Um trade-off de probabilidades. Trocava-se a probabilidade mais alta de um evento grave relacionado à doença pela probabilidade muito mais baixa de um efeito adverso causado pela vacina. Uma assimetria de risco que indubitavelmente vale o investimento, para se usar um padrão de pensamento de investidor ou trader, atividade do perfil que inspirou essas reflexões. Em todas as situações a conta fecha, mesmo quando o resultado não era tão evidente aos olhos nus e sem acesso a dados de saúde pública, como em crianças e adolescentes. 

O resultado foi tão satisfatório que as vacinas não apenas puseram fim à pandemia, mas também salvaram milhões de vidas. É uma obrigação de todos os envolvidos na divulgação científica apresentar as informações de maneira adequada, expondo não apenas a realidade não idealizada ou maquiada, mas também os riscos e benefícios envolvidos. Se não seguirmos por essa abordagem, corremos o risco de adotar uma postura paternalista e arrogante, presumindo que a população não é capaz de compreender uma comunicação realista, mesmo que complexa. Porque, se isso for verdade, o próprio conceito de democracia deixa de fazer sentido. 

Toda essa comunicação malfeita, politicamente contaminada e com vestígios de desonestidade e autoritarismo deixou uma sequela. No entanto, que essa sequela seja semelhante à do autor do tuíte, ou seja, reversível. E que possamos nos recuperar o mais rápido possível. 

ps: O autor do texto recebeu múltiplas doses da vacina contra a Covid-19. Da mesma forma, sua esposa e suas duas filhas também foram vacinadas - a mais nova delas de 3 anos.