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Insegurança tributária como consequência

A incidência do ICMS sobre tarifas de concessionárias de energia elétrica pelo uso de suas redes de transmissão e distribuição tem sido tema de intensos

 (Natee Meepian / EyeEm/Getty Images)
(Natee Meepian / EyeEm/Getty Images)

A incidência do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) sobre a Tarifa de Uso do Sistema de Transmissão (TUST) e a Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição (TUSD) tem sido tema de intensos debates no âmbito jurídico brasileiro ao longo dos anos. Para aqueles que não estão familiarizados com o tema, TUST e TUSD são tarifas que se referem aos valores cobrados pelas concessionárias de energia elétrica pelo uso de suas redes de transmissão e distribuição. O ICMS é aquilo que vocês já conhecem (ou não). 

A questão central girava em torno da interpretação do conceito de "operação de circulação de mercadoria" para fins de incidência do ICMS. Enquanto os contribuintes defendiam que a TUST e a TUSD não representam uma efetiva circulação de mercadorias, os Estados argumentavam que essas tarifas sempre estiveram intrinsecamente ligadas à prestação do serviço de fornecimento de energia elétrica, que, para fins tributários, é considerado como mercadoria. Só não gosta de ICMS quem não gosta de uma boa e eterna discussão. 

E esta, especificamente, já durava anos – muitos anos. A definição do tema 986, no Superior Tribunal de Justiça (STJ), no último dia 13 de março, apenas escancarou a insegurança jurídica que, infelizmente, somos forçados a conviver no Brasil. Após reiteradas decisões favoráveis aos contribuintes, uma mudança de entendimento acabou por definir que sim, TUST e TUSD integram a base de cálculo do ICMS. Seria o fim da história, se aqui não fosse o Brasil. 

Em junho de 2022 foi publicada a Lei Complementar nº 194, que alterou a Lei Complementar nº 87/96 para expressamente retirar TUST e TUSD da base de cálculo do ICMS. Seria o fim da história, de novo,, mas aqui continua sendo o Brasil. Uma liminar no Supremo Tribunal Federal (STF) suspende a eficácia do dispositivo aprovado democraticamente e sim, nós continuamos pagando ICMS sobre TUST e TUSD quase dois anos depois da edição da Lei Complementar. Aqui realmente é o Brasil. 

Mas eu contei essa história toda, para apresentar a vocês outro conceito: o consequencialismo judicial no direito tributário. Não, não desista de ler aqui, eu prometo que não é tão chato. Se estamos em um manicômico tributário, o consequencialismo é o responsável pelo controle na portaria. 

De acordo com o consequencialismo, as decisões tributárias devem ser tomadas levando em consideração não apenas as regras e princípios formais do sistema tributário, mas também os resultados práticos que essas decisões irão produzir para a arrecadação pública e para o desenvolvimento econômico. Na prática, pode significar uma “licença” para cobranças ilegais que serão mantidas até certa data – afinal, quando o judiciário precisar decidir sobre o tema, o Estado argumentará que qualquer decisão negativa a eles poderá impactar o orçamento e a capacidade de manutenção de serviços públicos essenciais. É uma cilada. 

Quando as decisões no âmbito tributário são tomadas buscando minimizar os efeitos de eventuais impactos negativos na arrecadação, toda a sociedade perde. Isto porque viramos as costas para as normas e abraçamos os argumentos de uma ilegalidade temporária institucionalizada. Traduzindo? Uma mensagem de que sim, vale a pena cobrar algo ilegalmente porque não há consequencias. Quase uma conclusão irônica, quando paramos para pensar sobre o que era almejado com a utilização do princípio.  

Mas e quando as consequências são nefatas aos contribuintes? Era de se esperar que o mesmo racional fosse aplicado, mas, lembrem-se, aqui é o Brasil. Embora chocante, não espanta ninguém ouvir declarações de que os contribuintes “apostaram” em determinado entendimento, que “assumiram o risco” e, portanto, deveriam arcar com as... consequências. Fica mais irônico ainda. 

Para além de revisões de entendimento, que, ressalte-se, são bem-vindas e fazem parte do próprio caminho da sociedade – afinal, a ninguém interessa um ordenamento que não refine seus argumentos – fazê-lo com base na pressão exercida por entes públicos pode demonstrar quão expostos e frágeis os contribuintes estão nesta relação.  

Pior do que estar em um manicômio tributário, é constatar como é frágil a segurança jurídica que deveria nos proteger de interpretações com arroubos meramente arrecadatórios. A insegurança jurídica tributária tem impactos negativos significativos sobre a economia e o ambiente de negócios de um país, desestimulando investimentos, prejudicando a competitividade e dificultando o crescimento econômico. Por isso, é fundamental contar com medidas que promovam a estabilidade e a previsibilidade do sistema tributário. Do início ao fim. Das leis às decisões judiciais. Caso contrário, não ironicamente, amargaremos as consequências.