“Harmonia entre os poderes dura até Bolsonaro estar fora do jogo”, prevê Carlos Pereira
Instituto Millenium conversou com o cientista político sobre o aniversário de 1 ano do 8 de janeiro, e seus desdobramentos
Publicado em 9 de janeiro de 2024 às, 14h19.
Um ano após os atos de 8 de janeiro, o cientista político e professor titular da FGV, Carlos Pereira, atualiza suas visões e perspectivas sobre os fatos e seus desdobramentos políticos. Em 2023, 1 dia após o episódio, Pereira concedeu entrevista ao Millenium, prevendo fortalecimento das instituições e redução da polarização.
Hoje ele mantém sua avaliação, e acrescenta uma previsão: “Isso vai durar até Bolsonaro ser punido, estar fora do jogo. Enquanto ele for visto como uma ameaça, essa unificação de forças (entre os três poderes) vai continuar.” Confira abaixo a entrevista completa.
Instituto Millenium: Em entrevista ao Instituto Millenium, há exato 1 ano, você avaliou que as instituições brasileiras sairiam fortalecidas após o episódio de 8 de janeiro de 2023. Um ano depois, mantém esta avaliação?
Carlos Pereira: Sim. Não tenho dúvidas de que a tentativa de fragilizar as instituições teve um efeito rebote de fortalecer essas mesmas instituições. Houve uma reação unificada dos três poderes, que gerou ações unificadas. A própria Suprema Corte era vista como 11 ilhas isoladas, mas depois do que ocorreu, passou a ser vista como um continente unificado, contra um inimigo comum, no caso, o Bolsonaro e o bolsonarismo. O bolsonarismo conseguiu atrair pra si essas reações, e as respostas foram rápidas, inclusive com a centralização dessas ações em alguns ministros. Enquanto esse inimigo comum não estiver fora do jogo, vai ser difícil essas organizações gastarem energias com outros temas.
IM: Não apenas o Judiciário está na mesma página. Hoje, parece haver equilíbrio também entre lideranças do Executivo e Legislativo. Até onde isso é positivo para a pacificação do país, e quando passa a prejudicar o sistema de freios e contrapesos? Acredita que esse equilíbrio é sustentável no médio prazo?
CP: Isso vai durar até Bolsonaro ser punido, estar fora do jogo. Enquanto ele for visto como uma ameaça, essa unificação de forças vai continuar. E não estou fazendo juízo de valor, acho que existem aspectos positivos e negativos nisso.
O fortalecimento do Judiciário pode gerar excessos, enfraquecimento de seu dever de impor limites pro governo atual. Existem riscos de um comportamento mais relapso em relação aos problemas do governo.
Mas quanto mais rápido neutralizarem Bolsonaro, mas rápido eles começarão a colocar energias em limitar o novo governo.
IM: No passado, você previu que as punições após o evento de 8 de janeiro de 2023 ajudariam a estabilizar a situação. Hoje, diante das críticas sobre excessos judiciais e a morte de um detento, como avalia a atuação do judiciário neste contexto? Acredita que houve um uso excessivo de autoridade ou uma ação necessária para prevenir novos incidentes?
CP: Acho que devemos interpretar dentro de um contexto específico, em que o Judiciário tomou pra si a pauta da defesa da democracia. Excessos foram cometidos também na Lava Jato, no Mensalão, mas isso era tolerado pela sociedade em nome de um bem maior, de um inimigo comum. Da mesma forma, os excessos atuais serão tolerados até esses atores perceberem que estão fora de risco, que derrotaram o inimigo. Faz parte do jogo.
IM: Ainda acredita na tendência de que a polarização diminua, com enfraquecimento paulatino dos radicais, já que a maioria da população se posiciona de forma contrária às invasões?
CP: Com certeza. Já diminuiu. Não compro essa ideia de que houve um aprofundamento da polarização. A grande maioria dos eleitores de Bolsonaro foram contra as invasões. Existem extratos de eleitores de várias regiões que votaram nele, mas hoje avaliam o governo Lula como ótimo ou bom.
Não acredito que a polarização veio pra ficar. Ela é episódica. O Brasil já teve outros momentos de polarização, como na época que antecedeu a ditadura militar. Se o governo entregar resultados, melhora dos índices socioeconômicos, a tendência é que a polarização diminua ainda mais, e a política volte ao seu normal. Mas se acontecerem novos resvalos de corrupção, falhas, erros grosseiros, a tendência é que a polarização seja aquecida novamente.
IM: Um ano depois, acredita que os responsáveis pelos atos já foram punidos? Agentes federais e de segurança deveriam ter sido responsabilizados por invasões sem resistência do patrimônio público?
CP: O jogo não está resolvido ainda. Os atos não aconteceram por acaso. Faltam os organizadores, a inteligência, o próprio ex-presidente Bolsonaro... mas esse processo demora, porque é muito difícil comprovar responsabilidade dessas pessoas. Isso é normal, aconteceu também na invasão do Capitólio, nos Estados Unidos.
Não compro essa ideia de que o governo deixou acontecer para lucrar politicamente. Já teve CPI, e esse tipo de acusação não se sustentou. Hoje quem acredita nesta narrativa são apenas os apoiadores mais radicais de Bolsonaro, da mesma forma que aconteceu com a narrativa de golpe, no impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. O extrato da direita que votou em Bolsonaro apenas como uma forma de evitar Lula não vai comprar essa ideia.
IM: Considerando o anúncio do governo Lula sobre a construção do 'Museu da Democracia' na Esplanada dos Ministérios, focado nos ataques de janeiro de 2023, como você avalia a construção e instrumentalização política da memória histórica do Brasil?
CP: Óbvio que vai virar instrumento político. Mas isso não foi um evento trivial, foi muito único na história do Brasil. A ideia é muito positiva para que a gente relembre e não repita os erros do passado. A Alemanha, por exemplo, tem vários museus que resgatam memórias dos erros do passado.
Obviamente, cada ator político vai tentar puxar a brasa pra sua sardinha, mas isso faz parte da política. Não é por isso que vamos negar a validade da construção de um espaço para que o 8 de janeiro seja rememorado.