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Ghiblinomics e a Regulação

O problema da IA vai um pouco além: todos estão usando a IA para “criar” personagens

Claudio D. Shikida
Claudio D. Shikida

Colunista - Instituto Millenium

Publicado em 2 de abril de 2025 às 23h14.

A febre dos últimos dias foi a de usar o ChatGPT 4.0 para transformar sua foto em um desenho no estilo dos personagens do estúdio japonês, Ghibli (pronuncia-se “jiburi”), empreendimento de Hayao Miyazaki. Fazendo uma pesquisa rápida entre jovens de 18 a 20 anos, notei que pouquíssimos conhecem o trabalho de Miyazaki. Presumo que a febre só tenha acometido aqueles com, pelo menos, mais de 30 anos de idade. Em outras palavras, tem gente que nem sabe o que o algoritmo lhe proporciona, enquanto outros - como eu - divertem-se sendo transformados em um personagem de um imaginário filme de Miyazaki.

No sábado, pelas redes sociais, vi que Miyazaki se queixou. Ao invés de enxergar no processo em que a IA te coloca no universo Ghibli como uma homenagem, um tributo à sua obra, o famoso e difícil diretor enfurece-se (existe um ótimo documentário sobre ele, com legendas, na NHK World que recomendo fortemente) e não é difícil entender o porquê. Quando o custo de se reproduzir uma arte cai, o incentivo, para o artista, é que ele produza menos a arte que mais lhe agrada para ganhar na escala de produção. Este argumento foi bem explicado em um artigo de Tyler Cowen e Alex Tabarrok, nos anos 2000 [Cowen, T., & Tabarrok, A. (2000). An Economic Theory of Avant-Garde and Popular Art, or High and Low Culture. Southern Economic Journal, 67(2), 232–253].

O problema da IA, contudo, vai um pouco além e isto é o que provavelmente mais incomoda Miyazaki: todos estão usando a IA para “criar” personagens de si mesmos, de seus animais domésticos, filhos, amigos etc, aparentemente sem nenhum pagamento para seu Studio Ghibli. Mesmo que haja - e eu não sei se há - um acordo entre a empresa do OpenAI e o Studio Ghibli, os assinantes da ferramenta não estão gastando mais do que seu tempo e o tempo dos computadores na geração das imagens, sem qualquer ganho financeiro para Miyazaki.

Uma pergunta frequente quando falamos de regulação é se devemos estabelecer direitos de propriedade sobre mais ou menos dimensões de uma criação. Em 2000, o falecido James Buchanan (Nobel de Economia de 1986) e Yong J. Yoon publicaram um artigo famoso [a referência é esta: Buchanan, J. M., & Yoon, Y. J. (2000). Symmetric Tragedies: Commons and Anticommons. The Journal of Law and Economics, 43(1), 1–14.] no qual chamavam a atenção para uma tragédia até então pouco estudada: a Tragédia dos Anti-Comuns (o termo parece ter sido criado pelo professor de Direito, Michael Heller). Os mais familiarizados com a Economia conhecem a Tragédia dos Comuns que acontece, por exemplo, quando bois e vacas se alimentam da grama de um terreno sobre o qual não há direitos de propriedade. O resultado? A grama se esgota rapidamente. A solução? Alocar o direito de propriedade sobre o terreno para alguém ou algum grupo pois, para evitar que o recurso perca todo seu valor rapidamente, o dono do terreno, no mínimo, colocará uma cerca e cobrará, de alguma forma, pelo seu uso.

Agora, o que seria uma Tragédia dos Anti-Comuns? É o problema oposto: há excesso de direitos de propriedade (em Direito se diz “direito de uso”, mas é o mesmo significado do “direito de propriedade” da Economia). Pense, por exemplo, nas exigências de patente até sobre o formato arredondado da borda de um celular ou sobre o movimento de passar a tela. Quando há muitos direitos de propriedade, a inovação fica travada. O fenômeno que humoradamente chamei de “Ghiblinomics” levanta esta questão: o regulador deve aumentar os custos para a inovação criando direitos de propriedade sobre qualquer modificação? Ou não? Este é mais um exemplo no qual a Regulação pode impedir a inovação ou estimulá-la e o desafio maior é que inovações nem sempre são enquadráveis em regulações antigas. Dependendo da mudança tecnológica, é necessário criar-se novas regras e, para que as mesmas sejam as melhores possíveis para a sociedade, é necessário realizar um cálculo não-trivial de custo-benefício.

O leitor que milita no serviço público brasileiro pode se perguntar sobre se não deveria existir um direito de propriedade para cada nota técnica gerada nas análises de processos ou pareceres jurídicos. Imagino que se fôssemos pelo caminho de regular tudo, possivelmente prenderíamos muitos servidores públicos, juízes etc. por não respeitarem os direitos autorais. Belo desafio para o regulador, não?

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