Benin e as hipocrisias brasileiras
A inconsistência da política de vistos brasileira torna-se ainda mais evidente quando consideramos os profundos laços históricos entre Brasil e Benin
Publicado em 3 de junho de 2024 às, 07h00.
Última atualização em 3 de junho de 2024 às, 18h34.
Por Michael Cerqueira
Na última semana, o presidente do Benin, Patrice Talon, fez uma visita de estado ao Brasil, onde foi recebido pelo presidente Lula e visitou Salvador e São Luís. A visita ganhou destaque quando Talon anunciou que todos os brasileiros negros poderão obter a cidadania beninense, em reconhecimento aos laços históricos entre os dois países. Este gesto, porém, ressalta uma contradição: enquanto o Benin facilita a cidadania para brasileiros negros, o Brasil impõe dificuldades para a emissão de simples vistos de turismo a cidadãos beninenses. Essa discrepância expõe a incoerência entre o discurso brasileiro de solidariedade e reciprocidade com países do sul global, especialmente os africanos, e a prática de sua política de vistos.
Em janeiro, escrevi sobre a inconsistência da política de vistos brasileira. Um exemplo claro é o México: enquanto os mexicanos exigem vistos de brasileiros, nós não impomos a mesma exigência. Durante esse período, o governo adiou três vezes a cobrança de vistos para americanos, australianos e canadenses, minando a credibilidade do Brasil como destino. A inconsistência se torna ainda mais evidente no caso de países africanos. Muitos deles facilitam a entrada de brasileiros, enquanto nós impomos processos burocráticos longos e complexos. O Benin é um desses países. Proclamamos a reciprocidade como um princípio, mas não a praticamos.
A inconsistência da política de vistos brasileira, aliada à discrepância entre discurso e prática, torna-se ainda mais evidente quando consideramos os profundos laços históricos entre Brasil e Benin. A África Ocidental, que abrigava o Reino de Daomé, onde estão os atuais Benin, Gana e Nigéria, foi a principal origem dos escravizados trazidos para o Brasil. Muitas tradições culinárias brasileiras, como o acarajé e o vatapá, têm suas raízes nessas regiões. Além disso, existem conexões diretas, como as comunidades de escravizados brasileiros que retornaram à África, sendo os Agudás no Benin e os Tabom em Gana os exemplos mais notáveis. Durante minha visita ao Benin em 2022, encontrar pessoas com sobrenomes levados por brasileiros que retornaram à África após a escravidão foi um lembrete poderoso de nossos vínculos compartilhados e da necessidade de valorizarmos essa história comum.
Apesar dos profundos laços históricos entre Brasil e Benin, o Brasil toma medidas tímidas para fortalecer essas relações. Enquanto o Benin oferece um serviço de e-visa que facilita a entrada de brasileiros, o processo para os beninenses obterem visto para o Brasil é oneroso e burocrático, desencorajando as visitas. Em muitos casos, é difícil encontrar informações online. Soluções simples como um portal único para aplicações online para vistos, ou mesmo soluções para vistos na chegada são inexistentes no Brasil. Ao chegar no Aeroporto de Guarulhos, encontrar uma placa de boas vindas ou mesmo um banheiro limpo já é quase uma missão impossível. Exigir uma política de vistos coerente com países que compartilham laços históricos tão fortes parecem parece ir muito além da capacidade do nosso serviço diplomático.
Enquanto outros países investem para se promover no exterior, há pouca ou nenhuma referência ao Brasil no Benin. A Casa do Brasil em Ouidah, por exemplo, poderia ser uma referência de conexão entre os dois países. Custaria quase nada ao Governo Brasileiro e está abandonada e sem recursos, refletindo nosso desinteresse em fortalecer esses laços. Essa negligência se estende até alianças estratégicas que deveriam aproximar o Brasil de países com os quais temos fortes ligações culturais. Os cidadãos dos países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), exceto Portugal, precisam de visto para entrar no Brasil, embora nós, brasileiros, tenhamos facilidades para obter visto na maioria desses países. Essa situação destaca a incoerência entre nosso discurso e nossa prática.
Insisto na diferença entre discurso e prática porque a atual gestão, ao reintroduzir a exigência de vistos para turistas de vários países, justificou a medida com argumentos de reciprocidade e coerência na política externa. Para a infelicidade de alguns, a realidade teima em desafiar narrativas. O exemplo do México é apenas um entre muitos. Recentemente, a Namíbia ameaçou começar a cobrar vistos dos brasileiros precisamente porque o Brasil não oferece o mesmo tratamento. Nós exigimos vistos deles, mas eles não exigem de nós.
A visita do presidente do Benin também revela como nos projetamos internacionalmente. O governo atual destaca a importância da diversidade, mas ao receber o chefe de estado de um país como o Benin, uma das fotos oficiais evidencia a divisão racial: todos os representantes brasileiros eram brancos. Essa imagem é uma metáfora perfeita para a discrepância entre nossa retórica diplomática e a realidade. Para além dos discursos de solidariedade e reciprocidade, o Brasil deve avançar para ações concretas que realmente fortaleçam suas relações internacionais. Valorizar a história compartilhada? Ajustemos a política de vistos, para começo de conversa. Investir em infraestrutura de qualidade para divulgar a imagem do Brasil na África como por meio dos Institutos Guimarães Rosa e da Casa do Brasil no Benin.
É hora de deixarmos de depender de princípios de reciprocidade que não seguimos e de uma reputação cada vez mais questionada. Precisamos desenvolver políticas que criem empregos no turismo no Brasil e fortaleçam nossos laços globais, mesmo que isso exija expor a hipocrisia em nossos discursos.