Exame.com
Continua após a publicidade

África do Sul se prepara para eleições legislativas cruciais

Instituto Millenium entrevista Gustavo de Carvalho

África do Sul: país se prepara para eleições (Siphiwe Sibeko/Reuters)
África do Sul: país se prepara para eleições (Siphiwe Sibeko/Reuters)

Na véspera das eleições legislativas desta quarta-feira (29), a África do Sul se prepara para um dos pleitos mais acirrados em três décadas. Com cerca de 27,6 milhões de eleitores convocados, a votação determinará a formação de um novo parlamento e, consequentemente, a nomeação do próximo presidente. O Congresso Nacional Africano (ANC), no poder desde o fim do apartheid, enfrenta um cenário de incerteza e possível perda de maioria absoluta, o que poderá exigir a formação de um governo de coalizão. 

Durante 30 anos, o ANC tem sido o partido dominante, mas a insatisfação crescente devido a casos de corrupção, altos índices de desemprego, pobreza e problemas recorrentes como cortes de água e eletricidade, tem minado a confiança do eleitorado. Pesquisas indicam que o ANC poderá obter entre 40% e 47% dos votos, enquanto partidos como a Aliança Democrática (DA) e os Combatentes da Liberdade Econômica (EFF) ganham força. O Instituto Millenium entrevistou Gustavo de Carvalho, analista político e pesquisador sênior em Governança Africana e Diplomacia no Instituto Sul-Africano de Assuntos Internacionais (SAIIA), para entender melhor o contexto dessas eleições e suas possíveis repercussões.

Gustavo de Carvalho oferece uma visão detalhada sobre o cenário político, econômico e social do país, e as implicações das eleições para o futuro da África do Sul. Ele discute as expectativas para o "day after" e as possíveis mudanças nas relações bilaterais entre Brasil e África do Sul, além das abordagens dos principais partidos sobre questões econômicas e suas propostas para o futuro do país. Leia a entrevista completa a seguir para compreender as dinâmicas políticas e os desafios enfrentados pelos eleitores sul-africanos neste momento crucial. 

Instituto Millenium: Desde o fim do apartheid e a transição para a democracia, a África do Sul aparenta ter um sistema de partidos estável, com grande dominância do ANC. Isso está em jogo agora? Existe de fato uma dispersão do voto entre partidos? A ANC tem risco real de perder a maioria pela primeira vez em trinta anos? 

Gustavo de Carvalho: Estas eleições não são apenas as mais disputadas em 30 anos de democracia na África do Sul. Elas também são um teste importante para o sistema político sul-africano, para ver se ele realmente funciona conforme planejado. Quando a democracia sul-africana foi estabelecida em 1996, seu sistema político foi projetado para incentivar a dispersão de poder entre o executivo e o legislativo. A democracia sul-africana garante que, se nenhum partido conseguir a maioria, deve formar uma coalizão com outros partidos até alcançar 50% dos votos. Esta ideia foi incluída na constituição para assegurar uma coordenação mais forte entre os diferentes poderes e orientações políticas. 

No entanto, este sistema foi raramente testado na África do Sul. O ANC não atua apenas como um partido, mas também como o movimento que mais simboliza a luta contra o apartheid. Assim, nos últimos 30 anos, a simples existência do ANC serviria de motivo suficiente para que grandes segmentos da população votassem nele. Importante lembrar que, nos primeiros 15 anos após a democracia, a África do Sul passou por melhorias significativas nos indicadores sociais e econômicos, além do aumento da provisão de serviços para a maioria da população que anteriormente estava excluída, incluindo negros, mestiços, indianos e outros grupos. Se olharmos por essa perspectiva temporal, a África do Sul viu muitos progressos, e essa é a imagem que o ANC de 2024 tenta transmitir aos eleitores. 

O problema de focar apenas nessa narrativa é que ela ignora o impacto significativo dos últimos 15 anos na economia do país, a diminuição da confiança nas instituições públicas (e no ANC) e os efeitos de um processo endêmico de corrupção em grande escala. Esse processo é tão intenso que ficou conhecido nacionalmente como a "Captura do Estado". O impacto negativo na sociedade e na economia são claros e reconhecidos pelo próprio ANC durante essas eleições. 

Nos últimos 15 anos, a economia estagnou, com crescimento anual do PIB insignificante. O setor de energia, que já foi próspero e motivo de orgulho, sofreu com a falta de investimentos, corrupção generalizada e manutenção limitada, levando a um período de quase 15 anos de apagões programados para garantir que o sistema não colapsasse. As exportações de ouro, diamantes, platina, vinho e frutas cítricas, que se beneficiavam de uma vasta malha ferroviária e portos enormes estrategicamente localizados em dois oceanos importantes, foram prejudicadas. O período da Captura do Estado, intensificado pela pandemia, criou um sistema logístico nacional que estava à beira do colapso. Estas são as questões que os sul-africanos estão levando às urnas. Devemos votar em um partido que está no poder há 30 anos mas com um histórico misto e problemático? 

IM: O que você espera para o "day after"? Alguns analistas preveem que a África do Sul pode entrar em uma era de política de coalizões. Isso seria positivo ou negativo? Baseado nas experiências em governos subnacionais, podemos esperar estabilidade ou instabilidade? O sistema eleitoral e a força dos partidos influenciam nisso? Pode nos explicar como essa dinâmica funciona na África do Sul? 

GC: E é aí que a batalha se torna mais interessante. O DA, que por anos tem sido a oposição oficial, esperava fazer grandes avanços no eleitorado do ANC e potencialmente até vencer com uma ampla coalizão de centro-direita a centro-esquerda. Entretanto, nessas eleições houveram críticas à escolha da liderança do DA, um homem branco de meia-idade e sem muito carisma. Em um país onde os brancos representam apenas 7% da população e com uma história recente de segregação racial extrema, essa decisão distanciou muitos eleitores negros do DA. John Steenhuisen criou uma campanha de pânico que faria até mesmo figuras como Regina Duarte ficarem com medo. 

Além disso, Jacob Zuma, o mentor da Captura do Estado e ex-presidente, rompeu com o ANC nos últimos meses, criando outro partido, o MK, que espera-se que vai tomar muitos dos votos do ANC em redutos como Gauteng (onde ficam Pretória e Joanesburgo) e Kwazulu-Natal (onde fica Durban, o maior porto da África). De fato, o MK pode até vencer em uma dessas províncias se se unir com outro partido de extrema esquerda, o EFF. 

Vários partidos menores também surgiram, como BOSA, Rise Mzamzi e Patriotic Alliance, focando em uma grande parte da população desiludida com todas as outras opções de partidos disponíveis. Esses partidos buscam representatividade no parlamento, potencial influência e participação em eventuais coalizões, e demonstrar capacidade e experiência para o eleitorado em próximas eleições. 

Seguramente haverá uma mudança na política doméstica sul-africana nas próximas semanas, quando um novo parlamento será formado. Com uma porcentagem menor de votos, mas ainda possivelmente a maior, o ANC participará de discussões no parlamento mais competitivas e negociadas. Nos últimos 30 anos, o parlamento era democrático, mas com a maioria do ANC, era praticamente impossível que qualquer projeto de lei apresentado por ele não fosse aprovado. Agora, veremos a formação de um parlamento mais ativo, talvez mais transacional e menos ideológico. A nível nacional, é provável que o ANC vença, mas isso os forçará a negociar com setores mais amplos dentro do espectro político. 

IM: Quais são as principais diferenças regionais na África do Sul e como elas se refletem nas eleições provinciais? Como essas eleições regionais podem nos ajudar a entender o cenário político nacional? 

GC: As diferenças regionais são visíveis. O Cabo Ocidental, onde está a Cidade do Cabo, é governado pelo DA desde o final dos anos 2000 e é a província com melhor desempenho em termos econômicos. Isso traz ao DA a imagem de um gestor eficaz, mas com dificuldades em abraçar completamente o processo de transformação racial nacional. Eles provavelmente vencerão novamente este ano no Cabo, mas com o risco de formar uma coalizão a nível provincial. 

Kwazulu-Natal é um dos maiores campos de batalha nessas eleições, onde dois partidos de extrema-esquerda poderiam vencer a província, um lugar onde o ANC lutou muito para ganhar apoio nos anos 2000. Ao mesmo tempo, a relutância de boa parte da classe média urbana da província em relação ao EFF e ao MK, e também ao ANC, traz uma possibilidade de uma terceira via por meio do DA. 

Gauteng é o maior centro econômico do país, com quatro áreas metropolitanas em um espaço um pouco maior do que o Distrito Federal brasileiro. O ANC terá que lutar muito para manter seu controle na província, com uma situação muito mais mista, refletindo a diversidade da província. Perder Gauteng é possivelmente a maior perda para qualquer partido político no país, pois a província desempenha um papel desproporcionalmente alto na economia sul-africana. 

Todas essas nuances não são apenas sobre raça, mas também sobre etnias. Às vezes pensamos que a África do Sul é um contexto entre negros e brancos, é mais do que isso. Dentro de grupos negros, há pelo menos nove principais etnias, incluindo a maior delas, a Zulu. Dentro das etnias brancas, Afrikaners (descendentes de holandeses) e descendentes de ingleses são as maiores, muitas vezes em desacordo uma com a outra. Mesmo dentre os indianos sul-africanos, há uma grande divisão entre castas e religiões. 

Portanto, não é surpreendente que o voto ainda tenha uma forte correlação racial na África do Sul. Por exemplo, sul-africanos brancos tendem a votar no DA. Muitos Afrikaners olham para partidos que destacam a identidade Afrikaner, como o VFF+. Eleitores negros e indianos historicamente votaram no ANC, mas estão cada vez mais buscando opções. Com o DA não sendo visto como uma opção viável para muitos, há uma gama totalmente nova de partidos menores focando principalmente em eleitores urbanos, especialmente da emergente classe média negra. 

IM: A depender dos resultados das eleições, seja uma nova maioria ANC, um governo de coalizão ou vitória de uma aliança oposicionista, podemos prever mudanças nas relações bilaterais entre Brasil e África do Sul? Se sim, como? Poderia explicar? 

GC: Para as relações Brasil-África do Sul, a próxima administração sul-africana deve continuar com o processo de reaproximação com o Brasil. O ANC sempre foi aberto em seu apoio ao PT no Brasil, o que criou um novo sentido para a relação entre os dois países. Embora Brasil e África do Sul continuem a se ver como parceiros estratégicos, suas relações econômicas poderiam ser melhores. Empresas como a Inbev estão investidas na África do Sul através da compra da SABMiller. Empresas sul-africanas como a Naspers estão investidas no Brasil através da propriedade de empresas como o iFood. Mas essas são exceções, não a regra. 

Brasil e África do Sul continuarão parceiros dentro do BRICS, e cada vez mais trazendo de volta o grupo de Índia, Brasil, África do Sul (IBSA) como um veículo-chave de política externa. A questão agora é: os dois países terão apetite para dar mais substância ao relacionamento? Essa é a pergunta chave. É improvável que, mesmo no contexto de uma coalizão, o ANC desista da política externa como sendo parte central de sua parte no governo. Então, para mim, há uma baixa probabilidade de mudança de direção na política externa da África do Sul na próxima administração. 

Mas enquanto as questões de política externa ou mesmo raça desempenham um papel nas eleições, a economia está no centro do debate. Nos últimos anos, houve intervenções políticas lentas, mas constantes, do governo para melhorar a situação da economia, particularmente em termos de regulamentação, setor de energia, logística e empregos. A África do Sul tem uma das maiores taxas de desemprego do mundo, com um enorme potencial inexplorado. Portanto, a grande questão para os eleitores é: nós confiamos que as ações do ANC desde 1994, e particularmente nos últimos anos, foram suficientes para garantir a eles outro governo? Não surpreende que a narrativa nas campanhas políticas tem se centrado amplamente na necessidade de reconstruir a África do Sul. Muitos partidos políticos trouxeram ideias semelhantes a estas em seus slogans. 

IM: Diante do cenário eleitoral, como os principais partidos estão abordando as questões econômicas? Que mudanças podemos esperar nas políticas econômicas pós-eleição e quais são as projeções para a economia sul-africana? Como essas propostas estão sendo recebidas pela população e pelo mercado? 

GC: O mercado reagiu relativamente bem às pesquisas na última semana, que mostraram que, embora fosse provável que o ANC tivesse que entrar em coalizões, suas perdas eleitorais provavelmente não seriam tão grandes a ponto de aumentar suas dificuldades em formar uma coalizão estável. O Rand, a moeda sul-africana, tem ganhado valor. Isso tem a ver não só com as eleições, mas também com notícias de melhoras no desempenho do setor elétrico e diminuição dos apagões programados. Como estamos agora na véspera das eleições, este é provavelmente o melhor cenário para o mercado, o que mantém uma pressão por mudança, mas de forma mais gradual.