A perplexidade é inimiga dos fatos
Como as renúncias fiscais se transformaram em um nó difícil de desatar
Publicado em 4 de julho de 2024 às, 15h43.
Na semana passada o Presidente disse estar bastante assustado com o volume de “renúncias fiscais” no Brasil. Para quem não está muito familiarizado com a expressão, a chamada renúncia fiscal acontece quando o governo decide não arrecadar totalmente ou parcialmente os tributos devidos em uma situação típica. Trata-se de uma política de governo, que tem por objetivo estimular o desenvolvimento econômico de setores ou até mesmo de regiões. Sim, aparentemente é uma ideia boa. E, de fato, como quase tudo neste país, as ideias nascem boas, mas crescem corrompidas.
O assombro do presidente em entrevista concedida no dia 18 de junho não parece ser coerente com as políticas apresentadas pelo seu próprio governo. Isto porque, 10 dias depois, o mesmo presidente sancionou um pacote de bondades em isenções fiscais destinados às montadoras de veículos que terá o custo de mais de R$ 19 bilhões de reais em 5 anos, ou seja, R$ 19 bilhões que deixarão de ser recolhidos aos cofres públicos. Um incentivo setorial a uma jovem indústria de quase 100 anos de presença no país. Não parece fazer nenhum sentido.
As renúncias fiscais no Brasil guardam uma certa semelhança com baldes espalhados por uma casa em que o teto está furado. Se o sistema tributário brasileiro sempre foi confuso e injusto, algumas soluções aparentemente simples - e por vezes equivocadas - foram utilizadas ao longo de muitos anos, para incentivar os mais diversos setores e regiões. A situação é tão caótica que a própria Receita Federal alega não ter a real dimensão da utilização de benefícios fiscais. Só em regimes especiais para o PIS/COFINS temos mais de 200.
Mas por que a renúncia fiscal no Brasil é a regra e não a exceção? Porque é muito mais fácil recorrer a baldes do que consertar o teto. O sistema tributário caótico praticamente elimina qualquer possibilidade de sucesso de medidas de cunho financeiro e as renúncias fiscais podem ser direcionadas aos amigos do rei sem saltar aos olhos da população. Alguns baldes mais especiais são milimetricamente colocados debaixo de setores e regiões que tem mais potencial de organização de interesses. Sendo o teto tão furado e com tantos baldes espalhados, a sociedade praticamente não percebe as benesses e, sendo assim, não cobra sua correta utilização. É um eterno jogo de perde-perde para a população.
Agora, se a renúncia fiscal corresponde àquilo que não é arrecadado, por que dizer que este assunto impacta tanto a vida no dia a dia dos brasileiros? Porque invariavelmente, for força da chamada responsabilidade fiscal, o governo precisa equilibrar as próprias contas. E, se falta dinheiro, as alternativas são cortar despesas ou criar tributos. Nos dois casos a corda acaba arrebentando no lado mais fraco da relação: quem precisa dos serviços públicos (em caso de corte) ou os próprios contribuintes (que precisarão pagar mais impostos).
A inércia do governo em solucionar definitivamente os nós tributários que atrasam o Brasil é tão grande que algumas renúncias se transformaram em “becos sem saída”. Políticas tributárias tão fortemente enraizadas na cultura econômica do país – como o Simples Nacional – guardam um fenômeno tipicamente brasileiro: alguns negócios simplesmente não existiriam formalmente se não fosse o privilégio do próprio Simples Nacional. Outro exemplo está no benefício que permite o abatimento de despesas médicas no imposto de renda da pessoa física – um mecanismo que comprovadamente beneficia apenas aqueles com maior renda em comparação à renda média do país. Como falar em extinguir tal benefício se, nos últimos 9 anos, a tabela do IR foi atualizada apenas 2 vezes (sempre poucos reais restritos à faixa de isenção)? Seriam esses casos clássicos de “ruim com ele, pior sem ele”? São muitos baldes.
Por outro lado, em decorrência da complexidade tributária em que vivemos, vemos a perpetuação de incentivos que comprovadamente em nada acrescentam à atividade econômica – sendo que a maioria deles sequer chega a se traduzir em preços menores ao consumidor final. São incentivos que estimulam empresas e não negócios. São incentivos que levam produções inteiras para regiões sem vocação para o setor – o que acarreta escassez em mão de obra específica e ineficiência logística. No Brasil do manicômio, tributário importa mais que produtividade.
Curiosamente estamos nos aproximando cada vez mais do ponto em que a sociedade não suportará mais aumento na carga tributária. Vimos isso claramente na devolução da MP 1227, que alterava regras para utilização de créditos referentes ao PIS e a COFINS. Ajustar a economia do país pela linha de receitas parece estar cada vez mais inviável. E, se todos concordamos com o presidente perplexo, que é preciso reduzir as renúncias fiscais, devo informá-los que apenas no ano de 2023, de acordo com o TCU, foram instituídos 32 novos benefícios tributários. Estes benefícios representam quase R$214bi em renúncias entre 2023 e 2026. Aparentemente, o presidente perplexo precisa encontrar-se com urgência com o presidente de fato.