Congresso Nacional: controle de gastos públicos e aumento de produtividade dependem da aprovação de propostas no Legislativo (Leandro Fonseca/Exame)
Instituto Millenium
Publicado em 4 de março de 2025 às 06h00.
Por Nicole Alvim*
Para os fãs de filmes de terror, a evolução das contas públicas brasileiras nas últimas décadas não representa nada menos do que um espetáculo. Após a dura recuperação que seguiu o Plano Real e durante a longa bonança promovida pelo boom das commodities, o país viu-se envolto em uma névoa de abundância que camuflou por anos os indícios da catástrofe inevitável. Quando Dilma Rousseff assumiu a presidência da república em 2011, muito anterior à crise de 2015 que destruiria sua reputação como economista, a situação fiscal brasileira, que antes era apenas um buraco preocupante embaixo de um tapete, já tinha tomado a forma de um poço aparentemente sem fundo e impossível de ser preenchido com um mero ajuste.
Em julho de 2015, o artigo “O ajuste inevitável”, de Almeida Jr. et al, revelou um desequilíbrio estrutural dos gastos públicos datado desde 1991, o qual provocava crescimentos da despesa pública a uma taxa muito superior ao crescimento do PIB. Consequentemente, aumentou-se também a receita tributária, em uma tentativa pífia de segurar o trem fiscal desgovernado. Porém, enquanto as crises de 1994 e 2003 puderam ser rapidamente controladas com um reajuste relativamente curto, a situação em 2015 já enfrentava desafios muito mais profundos (Almeida Jr. et al, 2015).
É importante, especialmente, distribuir a responsabilidade conforme for justo. As limitações dos indicadores popularmente utilizados permitiu que, hoje, mesmo intelectuais aparentemente esclarecidos concentrem toda a responsabilidade pela catástrofe econômica na má gestão dos governos Dilma, enquanto rasgam seda para o governo precursor, por seus esforços para “redistribuir” a riqueza nacional em um período de bonança, reduzindo a pobreza e o desemprego enquanto mantinha, aparentemente, um tamanho de Estado “controlado”. Os gastos governamentais em relação ao PIB, percentualmente, cresceram mais entre 2010 e 2014 do que durante todo o período de 1998 até 2010.
A armadilha se encontra em dois importantes fatores. O primeiro deles, o crescimento do PIB. Entre 2000 e 2010, o boom das commodities beneficiou em grande medida o mercado brasileiro, que possuía e ainda possui grande dependência dos bens de baixo valor agregado. Como o PIB reflete, basicamente, a situação do mercado brasileiro e de seus lucros, o PIB cresceu rapidamente no período, a uma média de 4% ao ano. O aquecimento econômico também refletiu no aumento das receitas, permitindo que um grande aumento nos gastos governamentais fosse promovido sem ocasionar déficits ou sequer elevar a relação gasto/PIB. O segundo componente da armadilha foi o tipo dos gastos. O governo nesse período elevou principalmente gastos obrigatórios, mantendo um investimento baixo.
As consequências, então, se tornaram inevitáveis. Enquanto os indicadores populares não demonstravam o verdadeiro perigo, a queda no preço das commodities a partir de 2010 foi um alerta de redução de velocidade para a qual o governo brasileiro, sem freio, não estava preparado. Rapidamente o gasto/PIB começou a revelar a feia realidade, assim como a carga tributária do país, que chegou a 35% em 2014, enquanto a maioria das economias emergentes não chegava a 30%. A tentativa desesperada de reduzir o crescimento dos gastos durante o governo Dilma não apenas foi insuficiente, travada pela rigidez dos gastos, como deu origem a uma teoria, no mínimo, duvidosa de que as “práticas neoliberais” de corte de gastos teriam sido as responsáveis por desaquecer a economia, levando à crise de 2015.
O Relatório de Análise Econômica dos Gastos Públicos Federais, analisando o período, revela bem a problemática da questão.
“[...] a elevada rigidez orçamentária tende a reduzir a eficiência da política fiscal, na medida em que dificulta o estabelecimento de prioridades, a definição e a execução das políticas. Com efeito, quanto maior a participação das despesas obrigatórias e/ou não contingenciáveis no orçamento, mais difícil adequá-lo à realidade econômica e, ao mesmo tempo, prestar serviços públicos com mais qualidade. Nesse contexto, as adequações tendem a ocorrer a partir da redução dos investimentos públicos, o que produz custos econômicos elevados e não se mostra sustentável no tempo.” (Ministério da Fazenda, 2016)
Atualmente, 10 anos depois, a situação permanece longe de ser controlada, como foi demonstrado durante a palestra em comemoração ao lançamento do grupo de pesquisa Estado e Liberdade (ELIB) da Fundação João Pinheiro, pelos pesquisadores Cláudio Burian e Rodrigo Raad. O crescimento da dívida nacional e o risco de insolvência fiscal, apontados por Almeida e colegas desde 2015, tornaram-se hoje ainda mais tangíveis, com margens cada vez menores para amortecer a queda. Estudo do BID de 2019, intitulado “Melhores Gastos para Melhores Vidas”, apontou a mesma questão dos gastos rígidos que o relatório do Ministério da Fazenda de 2016, indicando que o gasto brasileiro permanece extremamente ineficiente e alertando que os gastos previdenciários irão estrangular os gastos essenciais em saúde e educação no longo prazo.
Durante aquele período, o Brasil não apenas desperdiçou o bônus demográfico – uma janela de oportunidade crucial para qualquer economia – mas também viu escapar a maioria de suas chances de crescimento e, mais grave, de alternativas para reverter o cenário. A carga tributária alta em um país de renda média-baixa arrisca aproximar-se perigosamente do ponto máximo da conhecida Curva de Laffer. Próximo a esse ponto, tentativas de elevar as alíquotas dos impostos podem representar um aumento insignificante nas receitas ou mesmo derrubar a arrecadação. Ainda não há um método reconhecidamente sólido para averiguar o quão próximo o sistema tributário de um país pode estar deste ponto máximo, mas é possível formar deduções a partir dos indícios.
Ao se comparar o crescimento real do PIB e da arrecadação na série histórica, é possível perceber que, até 2007, a arrecadação geralmente crescia bem acima do PIB. Após esse período, a variação da arrecadação passou a acompanhar a variação do PIB, muitas vezes crescendo abaixo da renda nacional. Nesse mesmo período, houve uma estabilização e queda da carga tributária no país, que passou de 33,64% para 32,44%. O PIB brasileiro também se estabilizou, com um crescimento de 23,7% entre 2008 e 2023, e um desempenho muito menos impressionante entre 2012 e 2022, de meros 5,3%. A título de comparação, entre 1996 e 2008, o crescimento real havia chegado a 45,4%.
Como o objetivo do sistema tributário é captar parte da riqueza nacional para subsidiar as ações governamentais, o fato de a arrecadação crescer abaixo do PIB é um indicativo de que a eficiência do sistema tributário está diminuindo. A estabilização do PIB também é indicativa de que a economia brasileira está sendo pressionada, o que também pode ser consequência de uma carga tributária desproporcional. Ambos os indícios estão alinhados às consequências esperadas de estar próximo ao ponto máximo da Curva de Laffer. Ainda que os resultados não sejam suficientemente sólidos para afirmar que esse limite foi ultrapassado, certamente servem como um alerta de perigo, demonstrando o risco de se confiar ainda mais no aumento dos impostos como uma alternativa para corrigir o desequilíbrio fiscal.
Fonte: Elaboração própria a partir de dados da Receita Federal, do Banco Central do Brasil e do Sistema de Contas Nacionais Trimestrais
As outras alternativas para controlar as contas públicas sem um agressivo corte de gastos também desapareceram. Com déficits primários frequentes e sem qualquer investimento capaz de reverter essa situação a longo prazo, o aumento do endividamento público torna-se um risco inaceitável. A emissão de moeda acima da taxa normal de reposição já é uma alternativa dúbia em circunstâncias normais, mas o crescimento da inflação, o aumento do risco-país e a elevação constante da taxa de juros tornam a sequer menção dessa alternativa um insulto à população brasileira. Enquanto o “imposto inflacionário” pode ser uma fonte de receita tentadora para o governo, também é a mais cruel forma de arrecadação, estrangulando a população de baixa renda a partir do aumento do custo dos bens essenciais e dos imposto sobre a renda, uma vez que o crescimento nominal dos salários em um sistema de tributação progressiva forçará uma população carente a pagar alíquotas maiores até que a adequação das tabelas seja feita.
Enquanto o perigo se aproxima e as alternativas de solução minguam cada dia mais, a última esperança do país repousa nas mãos de uma classe política morosa e desconectada da realidade econômica. Reformas imprescindíveis, como a reforma da previdência, são amenizadas devido ao medo da perda de votos, e assim apenas postergam a crise, desperdiçando os sacrifícios exigidos dos trabalhadores, cujas aposentadorias tardias serão em vão. Nesse filme de terror, há poucas esperanças de chegarmos a um final feliz, e mais uma vez o mercado brasileiro treme, reconhecendo que, mais uma vez, deverá sozinho tentar reequilibrar a economia quando a crise inevitável finalmente chegar.
*Nicole Alvim é estudante Gestão Pública na Fundação João Pinheiro e membro do Grupo de Estudos Estado e Liberdade (ELIB), da instituição