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Judicialização da saúde: garantia de acesso ou regressividade?

No Brasil, diversos estudos avaliam os impactos das decisões judiciais que obrigam o poder público a fornecer medicamentos, insumos, cirurgias, entre outros

 (Pablo_K/Thinkstock)
(Pablo_K/Thinkstock)
I
Impacto Social

Publicado em 22 de fevereiro de 2022 às, 09h00.

Por Vanessa Boarati*

A judicialização da saúde é um fenômeno mundial, com especificidades regionais. No Brasil, diversos estudos avaliam os impactos das decisões judiciais que obrigam o poder público a fornecer medicamentos, insumos, equipamentos, cirurgias, entre outros. De um lado, há trabalhos que avaliam efeitos benéficos dessa judicialização como instrumento de pressão e garantia de acesso aos serviços públicos de saúde. Por outro lado, a maior parte dos estudos identificam efeitos negativos do “modelo brasileiro de judicialização”, em particular, em razão dos efeitos regressivos, impacto orçamentário, gestão do orçamento e compras do SUS. Para se ter uma ideia desse fenômeno no Brasil, estima-se que os custos para a União com a compra de medicamentos judicializados aumentou 1.200% entre 2010 e 2016, de R$ 122,6 milhões para R$ 1,6 bilhão.

Em minha tese, com dados do Sistema da Coordenação das Demandas Estratégicas do SUS no Estado de São Paulo (S-Codes), verifico um crescimento anual de 26% nos gastos, entre 2011 e 2017, sendo um quarto dessas provenientes de pacientes portadores de Diabetes Mellitus (DM). A motivação principal dos pedidos judiciais era a requisição da insulina análoga, em média, 770% mais cara que a insulina humana, medicamento substituto disponível no SUS e no Programa Farmácia Popular (PFP). São incluídos, ainda, por conveniência do paciente, medicamentos disponibilizados gratuitamente pela política pública, mesmo não havendo evidências de escassez. Segundo análise por georreferenciamento, a maior parte (85%) desses demandantes eram provenientes de regiões de menor vulnerabilidade social, hospitais privados com médicos particulares (63%) e advogados privados (80%), corroborando o caráter regressivo dessa judicialização.

Elaboramos, ainda, duas análises com base em modelos de regressão não lineares de escolha binária. Nosso objetivo foi entender, em nível municipal, as variáveis associadas à maior probabilidade de judicialização. Identificamos que as variáveis de acesso ao SUS e despesa com saúde são negativamente associadadas (embora de magnitude ínfima) à probabilidade de judicialização. A oferta de médicos, por sua vez, é positivamente relacionada à probabilidade de judicialização. Esses resultados parecem corroborar que a judicialização é mais impactada pela prescrição médica, que por problemas de escassez do SUS.

Adicionalmente, investigamos as principais características associadas àqueles que buscam acesso aos medicamentos para o tratamento do DM por meio do expediente da justiça gratuita (20%). Com base no CEP da residência do paciente (autor da ação) e uma análise de georreferenciamento, avaliamos as características associadas a este litigante. Nossa análise aponta um perfil associado à maior vulnerabilidade e à receita de médico originária do SUS.

Em resumo, nossos resultados comprovam que, ao menos para o Estado de São Paulo e pacientes diabéticos, a judicialização não decorre da escassez de medicamentos e é prioritariamente de pacientes de maior renda, com acesso a advogado e médico particulares. De outro lado, quanto aos pacientes que buscam o acesso via justiça gratuita, há perfil relativamente distinto, com maior probabilidade de litigantes de maior vulnerabilidade (menor renda).

*Vanessa Boarati é doutora e mestre em Economia pela Universidade de São Paulo. É professora no Insper de Economia da Saúde, Coordenadora Executiva de Apoio à Pesquisa e Coordenadora-Adjunta no Centro de Regulação e Democracia. É pesquisadora dos núcleos de Direito, Saúde e Políticas Públicas e Regulação Econômica.