Causalidade na área da saúde: pesticidas repetem a história do cigarro?
Ao longo dos últimos anos, a Anvisa tem banido alguns dos pesticidas mais utilizados no mercado brasileiro
Da Redação
Publicado em 22 de fevereiro de 2023 às 08h30.
O conteúdo desse blog é gerenciado pelo Insper Metricis , o núcleo do Insper especializado em realizar estudos sobre estratégias organizacionais e práticas de gestão envolvendo projetos com potencial de gerar alto impacto socioambiental.
Por Giovanni De Paola*, Sophie Magri Levy** e Raphael Muszkat Besborodco***
A atribuição de relação entre causa e efeito permeia a história da medicina. Para citar apenas dois exemplos, um caso clássico é o de John Snow [1], que investigou a associação entre o fornecimento de água e a incidência de cólera em Londres em meados de 1800. Mais recentemente, temos os estudos sobre a efetividade de vacinas contra a covid-19, que aleatorizaram os participantes entre grupos tratado e os que receberam placebo. No entanto, nem sempre esse processo de atribuição causal, principalmente por intermédio de estudos baseados em aleatorização, é factível.
Ao longo dos últimos anos, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) tem banido alguns dos pesticidas mais utilizados no mercado brasileiro. Muitos deles são protagonistas no cultivo da soja: não apenas são mais eficientes na eliminação de pestes, como alguns também apresentam um risco menor de contaminação do solo se comparados a substitutos próximos. A tomada de decisão pela Agência se deu consideravelmente pela forte associação desses mesmos pesticidas à maior incidência da Doença de Parkinson [2] – doença neurodegenerativa que mais cresce no mundo.
Não apenas a agência sanitária brasileira, como a de muitos outros países se utilizaram de uma vasta literatura que associa o aumento da incidência da Doença de Parkinson à exposição a determinados pesticidas [3]. Contudo, mesmo se tornado um possível consenso entre grande parte dos pesquisadores, ainda não é possível afirmar que a exposição aos pesticidas causa a doença [4]. Esse é exatamente o argumento utilizado pelo EPA, agência sanitária estadunidense, para a não proibição de certos herbicidas [5]. Ainda que inúmeros sejam os estudos publicados em revistas acadêmicas de qualidade sobre associações positivas, a ausência de evidências sobre efeitos causais faz com que órgãos técnicos do governo americano relutem em tomar uma ação preventiva quanto ao banimento desses mesmos produtos.
As decisões sobre o banimento desses pesticidas, junto às pressões políticas e contínuos debates, remete à história do cigarro e sua longa jornada para ser rotulado oficialmente por entidades públicas como causador de câncer [6]. A década de 1950 se viu diante de um longo debate entre médicos, estatísticos e figuras importantes da indústria do tabaco quanto ao uso do cigarro causar câncer. De forma similar à Doença de Parkinson, os experimentos usuais (Randomized Control Trials) para se estimar efeitos causais em medicina não eram factíveis no estudo do cigarro. Motivado por essa razão, um dos estatísticos mais influentes da época, Ronald Fisher, contestou as campanhas governamentais sobre o cigarro e seus possíveis malefícios [7]. Para o estatístico britânico, a dificuldade de se poder falar de causa no sentido mais estrito da palavra demandaria um comportamento distinto do governo local: o de permanecer imóvel até que evidências efetivamente causais surgissem [8].
A história acabou por não dar razão a Fisher, quando em meados da década seguinte, a comunidade médica já acenava em consenso quanto ao cigarro causar câncer [9]. O caso do cigarro ilustra precisamente a dificuldade em torno de decisões como as do banimento de certos herbicidas pelo mundo: nem sempre os policy-makers têm as respostas exatas para as perguntas de interesse. Entretanto, o caso também traz lições valiosas sobre certas tomadas de decisão. A demora em se reconhecer os malefícios do cigarro pela ausência de evidências causais acometeu inúmeros usuários que possivelmente não teriam fumado. Ainda que existam dúvidas sobre a causalidade acerca dos pesticidas e possam existir custos por sua proibição, o benefício da dúvida não pode ser ignorado. Poupar trabalhadores rurais do desenvolvimento de uma doença como a de Parkinson é a tentativa de não transformar pesticidas importantes em antagonistas históricos e a busca por não se repetir a história do cigarro.
*Giovanni De Paola é economista graduado pelo Insper e mestre em Economia pela Escola de Economia de São Paulo (EESP-FGV). Doutorando em economia pela Universidade de Rochester.
**Sophie Magri Levy é economista e mestre em Políticas Públicas, tendo obtido ambas as titulações pelo Insper. Doutoranda em economia pela Universidade de Rochester.
***Raphael Muszkat Besborodco é médico pela Universidade Santo Amaro.
O conteúdo desse blog é gerenciado pelo Insper Metricis , o núcleo do Insper especializado em realizar estudos sobre estratégias organizacionais e práticas de gestão envolvendo projetos com potencial de gerar alto impacto socioambiental.
Por Giovanni De Paola*, Sophie Magri Levy** e Raphael Muszkat Besborodco***
A atribuição de relação entre causa e efeito permeia a história da medicina. Para citar apenas dois exemplos, um caso clássico é o de John Snow [1], que investigou a associação entre o fornecimento de água e a incidência de cólera em Londres em meados de 1800. Mais recentemente, temos os estudos sobre a efetividade de vacinas contra a covid-19, que aleatorizaram os participantes entre grupos tratado e os que receberam placebo. No entanto, nem sempre esse processo de atribuição causal, principalmente por intermédio de estudos baseados em aleatorização, é factível.
Ao longo dos últimos anos, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) tem banido alguns dos pesticidas mais utilizados no mercado brasileiro. Muitos deles são protagonistas no cultivo da soja: não apenas são mais eficientes na eliminação de pestes, como alguns também apresentam um risco menor de contaminação do solo se comparados a substitutos próximos. A tomada de decisão pela Agência se deu consideravelmente pela forte associação desses mesmos pesticidas à maior incidência da Doença de Parkinson [2] – doença neurodegenerativa que mais cresce no mundo.
Não apenas a agência sanitária brasileira, como a de muitos outros países se utilizaram de uma vasta literatura que associa o aumento da incidência da Doença de Parkinson à exposição a determinados pesticidas [3]. Contudo, mesmo se tornado um possível consenso entre grande parte dos pesquisadores, ainda não é possível afirmar que a exposição aos pesticidas causa a doença [4]. Esse é exatamente o argumento utilizado pelo EPA, agência sanitária estadunidense, para a não proibição de certos herbicidas [5]. Ainda que inúmeros sejam os estudos publicados em revistas acadêmicas de qualidade sobre associações positivas, a ausência de evidências sobre efeitos causais faz com que órgãos técnicos do governo americano relutem em tomar uma ação preventiva quanto ao banimento desses mesmos produtos.
As decisões sobre o banimento desses pesticidas, junto às pressões políticas e contínuos debates, remete à história do cigarro e sua longa jornada para ser rotulado oficialmente por entidades públicas como causador de câncer [6]. A década de 1950 se viu diante de um longo debate entre médicos, estatísticos e figuras importantes da indústria do tabaco quanto ao uso do cigarro causar câncer. De forma similar à Doença de Parkinson, os experimentos usuais (Randomized Control Trials) para se estimar efeitos causais em medicina não eram factíveis no estudo do cigarro. Motivado por essa razão, um dos estatísticos mais influentes da época, Ronald Fisher, contestou as campanhas governamentais sobre o cigarro e seus possíveis malefícios [7]. Para o estatístico britânico, a dificuldade de se poder falar de causa no sentido mais estrito da palavra demandaria um comportamento distinto do governo local: o de permanecer imóvel até que evidências efetivamente causais surgissem [8].
A história acabou por não dar razão a Fisher, quando em meados da década seguinte, a comunidade médica já acenava em consenso quanto ao cigarro causar câncer [9]. O caso do cigarro ilustra precisamente a dificuldade em torno de decisões como as do banimento de certos herbicidas pelo mundo: nem sempre os policy-makers têm as respostas exatas para as perguntas de interesse. Entretanto, o caso também traz lições valiosas sobre certas tomadas de decisão. A demora em se reconhecer os malefícios do cigarro pela ausência de evidências causais acometeu inúmeros usuários que possivelmente não teriam fumado. Ainda que existam dúvidas sobre a causalidade acerca dos pesticidas e possam existir custos por sua proibição, o benefício da dúvida não pode ser ignorado. Poupar trabalhadores rurais do desenvolvimento de uma doença como a de Parkinson é a tentativa de não transformar pesticidas importantes em antagonistas históricos e a busca por não se repetir a história do cigarro.
*Giovanni De Paola é economista graduado pelo Insper e mestre em Economia pela Escola de Economia de São Paulo (EESP-FGV). Doutorando em economia pela Universidade de Rochester.
**Sophie Magri Levy é economista e mestre em Políticas Públicas, tendo obtido ambas as titulações pelo Insper. Doutoranda em economia pela Universidade de Rochester.
***Raphael Muszkat Besborodco é médico pela Universidade Santo Amaro.