Exame.com
Continua após a publicidade

Pensando no presente sem se esquecer do futuro

Na coluna desta semana, confira a história de Bernardo Lustosa, CEO da ClearSale

Bernardo Lustosa, CEO da ClearSale (Histórias de Sucesso/Reprodução)
Bernardo Lustosa, CEO da ClearSale (Histórias de Sucesso/Reprodução)

Apesar de vir de uma família de médicos, sou da área de Exatas, característica que trago comigo desde a infância, quando gostava de brinquedos de montar e de jogos. Sou mineiro, tenho orgulho disso e nunca fiz questão de perder nem o meu sotaque. Nasci em Juiz de Fora, Zona da Mata mineira, em 1976, e, aos 17 anos, saí de casa para cursar Estatística na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Na minha cidade natal, torcemos para os times de futebol do Rio de Janeiro. Eu mesmo continuo vascaíno, e meu filho, Arthur, de 15 anos, também. Além dele, tenho a felicidade de ser pai de Thaís, de 8 anos.

Deixei Juiz de Fora em 1994, levando comigo não só um grande desejo por liberdade, o deslumbre de morar sozinho e de fazer as coisas do meu jeito. Antes de chegar a Campinas, abriram-se outras possibilidades em meu caminho. Fui também aprovado na Academia da Força Aérea, mas decidi que não queria ser militar. Cheguei ainda a me matricular e frequentar por um dia o curso de Computação da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Contudo, quando saiu o resultado do vestibular da Unicamp, não tive dúvida de qual escolha fazer. Além disso, ao iniciar o curso, descobri que nasci para a Estatística. Sempre pensei probabilisticamente, e esta formação se encaixou com as minhas habilidades. A turma inicial era de 70 pessoas e, destas, apenas 45 se formaram. Da minha parte, aproveitei bastante este período e interagi muito com as áreas de Artes, Humanas e Biológicas. Fiz cursos na Unicamp inteira durante o período de minha graduação, realizada entre 1994 e 2000.

Naquela época esse era o curso que formava os profissionais de inteligência artificial. Hoje eles também vêm da Engenharia e da Computação, mas, naquele tempo, vinham praticamente só da Estatística. Tanto que houve uma grande demanda por esta formação naquele período. Então, ao terminar a graduação, já comecei diretamente neste nicho. Aliás, eu já atuei em muitos lugares. Trabalhei na varejista C&A na área de inteligência artificial para vendas diretas, depois no banco Ibi, também com inteligência artificial para o marketing, verificando quem era mais propenso a responder às campanhas de mala direta. Eram modelos ultracomplexos, muito mais que os da área de crédito, que é o core de uma instituição bancária.

Mas eu tinha comigo que não queria trabalhar em uma área adjacente a um banco, e sim na área de risco, ou seja, no core da organização. Foi quando um amigo, que ainda hoje trabalha na Caixa Econômica Federal, falou que estava aberto um concurso para uma carreira especial para nível superior e, caso eu passasse, seria possível atuar exatamente na área que queria. Fiz o concurso e passei. Mas, novamente, caí na área de marketing. Por aquela ocasião, houve mudanças e o governo federal acabou com a carreira especial e houve redução salarial de, aproximadamente, quatro vezes. Por conta disso, entre 2007 e 2008, tive de buscar outras alternativas além da Caixa. Assim, acabei fazendo consultoria, sendo professor, comprando carros em leilão para revendê-los e elaborando um robô para operar no mercado financeiro. Tudo isso enquanto já fazia, por fora, toda a parte de algoritmos que a ClearSale necessitava. Ainda nessa época, fiz mestrado em Economia. Certamente foi a época em que eu mais trabalhei na vida.

Das dificuldades iniciais à consolidação

No meu primeiro dia de trabalho na C&A conheci o Pedro Chiamulera. Eu ainda não sabia, mas estava frente a frente com o meu futuro sócio na ClearSale. Eu fazia a análise do sistema dele para descobrir oportunidades de venda por catálogo. Ele desenvolveu este sistema e era um terceirizado. Quando ele vendeu um projeto contra fraude para o Submarino, começou com a ideia de que precisava incluir inteligência artificial. E eu era a pessoa que ele conhecia que fazia isso, pois já vinha desenvolvendo algoritmos para prevenção de fraude fazia algum tempo. Trabalhei nas horas vagas, fiz tudo que precisava, tanto o modelo estatístico quanto o de rede neural.

Quando fui formalmente para a ClearSale, o Pedro não tinha dinheiro para pagar por tudo o que eu tinha feito. Dessa forma, já entrei com 10% da empresa. Só que, naquele momento, não tinha lucro, só prejuízo. Na batalha para fazer aquilo dar certo, passei a vender consultoria de inteligência artificial para empresas como Pão de Açúcar (Brasil), Ripley (Argentina) e Falabella (Chile), e com isso eu consegui cobrir o prejuízo, comprar mais 12% da companhia e levá-la adiante.

Depois das dificuldades iniciais, a ClearSale engrenou. Desde 2008, quando entrei, até 2023, no momento que escrevo este texto, a empresa cresceu 600 vezes. Eu não era o CEO, mas o Pedro me dava muita liberdade de compartilhar a gestão com ele no dia a dia. Criamos uma cultura muito forte e despertamos em nossos colaboradores o senso de pertencimento e o sentimento de dono, o que tem permitido que alcancemos nossas metas e objetivos. Mais do que palavras, criamos um programa de incentivo de longo prazo, em que eles realmente são nossos sócios. Inovamos, diversificamos e crescemos a cada dia. Hoje, se alguém está solicitando um cartão de crédito pela internet, abrindo uma conta-corrente, comprando um serviço de TV a cabo, por trás está a ClearSale, pois tudo isso é passível de fraude. Assim, buscamos garantir nossa perenidade.

Em 2018, quando estávamos diversificando para o mercado de telecom, os bancos tentaram fazer algo usando o mesmo modelo de negócio. Então, precisávamos de uma iniciativa diferente. Eu tinha feito uma viagem para Israel e, nessa época, estava cuidando só de estratégia e inovação. Mas, como sócio, acompanhava os indicadores, que por três meses seguidos mostravam menos receita e mais custos. Foi quando o Pedro quis que eu assumisse como CEO. Concordei, mas pedi 15 dias. Durante aquela quinzena, projetei um planejamento e a minha meta era chegar em dezembro com a rentabilidade que nos colocaria nos trilhos, pois considerava perdido aquele ano. Mas, para a minha alegria, acabamos batendo a meta do ano inteiro. Diante do novo desafio, senti a necessidade de formação, e fui buscá-la. Eu, que já tinha cursado o mestrado em Economia com ênfase em Finanças na Universidade Católica de Brasília (2006-2008) e doutorado em Administração de Empresas na Fundação Getulio Vargas (2010-2013), busquei atualização, fazendo o Programa Executivo da Universidade de Stanford (2019). Toda esta carga de conhecimento foi abrindo minha cabeça para a inovação e estratégia, que são as minhas verdadeiras paixões.

Não se pode ceder em tudo para um cliente

Esta passagem para CEO é um dos turning points da minha carreira. A partir dali, já não podia culpar ninguém. O que acontecesse seria culpa minha. Mas, embora a decisão final dissesse respeito só a mim, sempre fui aberto e participativo. Outros momentos decisivos aconteceram dez anos antes, em 2008, quando propus a mudança de modelo de negócio; em 2015, quando decidimos internacionalizar a empresa; e em julho de 2021, quando concluímos nossa Oferta Pública Inicial (IPO) e ingressamos no Novo Mercado da B3. Fizemos nossa oferta em sete meses. Para isso, contamos com a coordenação dos bancos Itaú BBA, Bank of America, BTG Pactual e Santander e conseguimos levantar quase R$ 800 milhões. Todos estes momentos foram muito desafiadores. Mas em todos fomos muito bem-sucedidos.

Mas os desafios não param. Atualmente, o custo de capital está altíssimo e o mercado fala: “Eu não quero nem saber: gere caixa”. Não posso entrar nesta armadilha de só gerar caixa e não pensar no futuro. Sempre gerei caixa. Sei fazer isso. Mas como é que eu vou endereçar os produtos futuros que tenho de lançar para a perenidade da empresa? A pressão pelo curto prazo é uma armadilha cruel, porque daqui a pouco baixa a taxa de juros e o mercado não estará mais se importando com o curto, mas sim com o longo prazo. E como fica você que ajustou toda a sua empresa para o curto prazo? No meu discurso na B3, por ocasião da abertura de capital, disse que é o que fazemos na empresa que vai refletir no nosso valor de mercado. Portanto, não será o preço da ação que direcionará as ações que tomamos internamente. Isso é muito importante. É o que o Jeff Bezos fala: “Meus executivos têm de estar preocupados com o primeiro trimestre de daqui a três anos, e não deste, senão a empresa para”.

Outro comportamento que corrigi lá atrás, é deixar de ser seduzido por discursos de entrevista. Hoje, na ClearSale, não levamos para uma entrevista quem não passa em uma prova de raciocínio lógico e analítico elaborada por mim. Eles chamam de “Prova do Bernardo”. Aprendemos também ao longo desta jornada que não podemos ceder em tudo para um cliente, principalmente se está pedindo algo que se choca contra nossos valores. Brigamos pelo que gera valor para ambos. Como as grandes organizações são compartimentalizadas, cada um só está olhando um indicador. E eu falo: “Não estou atendendo só a sua área, mas a sua empresa como um todo”. Isso é muito difícil, mas não podemos ceder. Já vi empresas quebrarem de tanto cederem preços e depois não conseguirem cumprir o negócio.

Pensando no presente sem se esquecer do futuro

Como uma empresa especializada em oferecer soluções contra fraudes digitais, temos muitos desafios e oportunidades pela frente, especialmente no que diz respeito às ciladas associadas ao Pix e ao WhatsApp. Também trabalhamos para oferecer uma melhor experiência de compra com cartão de crédito no e-commerce, pois é muito chato quando o banco te bloqueia. De forma genérica, tem muita oportunidade de cyber security também, na parte relacionada a phishing, e na batalha pelo fim desse negócio de login e senha. Hoje todo mundo pode, com um token que está no telefone, se logar e, em último caso, fazer um cadastro. É preciso democratizar o varejo eletrônico, e ainda tem muito trabalho por fazer nesta área.

Nesta condição de empresa prestadora de serviço, jamais poderemos perder a noção de que quem executa as ações são as pessoas. Podemos fazer a reunião, mas quem executa são os liderados. Não se preocupar com pessoas é um erro. Existe uma frase simples que ouvi certa vez: “Cultura é o que você faz ou tolera”. Se você como líder não se preocupa com a pessoa ou tolera determinados comportamentos, como discriminação e preconceito, isso vai acontecer por toda a empresa. Nunca se esqueça que são as pessoas que estão fazendo o seu negócio.

Como líder, tenha foco em rentabilidade, mas esteja ciente de que parte dessa renda deve ser usada para financiar um futuro, e que este vai ser diferente. Se você focar 100% na rentabilidade, você vai perder o futuro. E se focar 100% no futuro, você quebra. Portanto, a inovação deve ser autossustentável. Uma parte gera valor hoje, margem, rentabilidade, mas você já tem de saber que vai gastar parte disso para construir um futuro. Se você não dosar essas visões no mercado de hoje, com as transformações que estão em curso, não sobreviverá como organização.

Busque ter ao seu lado liderados que, de certa forma, te complementam. Se é bom em criação, tenha ao seu lado quem é bom em execução. Se é bom em execução, prefira alguém que estude os possíveis caminhos. No meu caso, tenho comigo um time complementar altamente capacitado e aderente à nossa cultura. Meu maior erro foi contratar profissionais que atendiam ao primeiro princípio, mas não ao segundo. Era um ano de problema até que houvesse o desligamento, e voltava tudo à estaca zero. Portanto, é preciso pensar no presente, mas, ao mesmo tempo, no futuro.

A desconfiança trava negócios e processos

Gostaria que alguém tivesse me dito lá atrás (e que eu tivesse levado a sério): “Confie mais nas pessoas. Não passe muito tempo desconfiando, porque esse tempo é inútil. Somente uma quantidade ínfima das pessoas vão te causar problemas, e quando isso acontecer, você se afasta delas. Mas quase a totalidade vai merecer a sua confiança e as coisas irão funcionar bem. Então vá em frente e acredite”. Digo isso porque eu tinha uma visão de que tudo que eu fosse fazer, deveria fazer sozinho, simplesmente porque eu confiava apenas em mim. Mas eu estava errado. Aprendi que essa postura de desconfiança trava negócios e a evolução do processo, e que vale muito mais a pena inspirar pessoas do que simplesmente desconfiar delas.

Sempre acreditei extremamente na liberdade de trabalho e detesto o sistema de ponto. Nunca gostei, por isso adorei o fato de existir o home office. As melhores ideias que tive foram às 6h, antes de eu ir para o escritório. No momento em que se coloca um sistema de ponto, é como se fosse ligada a chave do pensamento na empresa, na hora que você bate o ponto, e desligada na saída. E o ser humano não é assim. Temos ideias o tempo todo. Sou um pouco polêmico nesse aspecto de liberdade. Evidentemente, é preciso ser responsável e entregar o que tem de ser entregue. Dar liberdade para as pessoas é essencial. Também acredito no valor de se montar times bons. Só trabalho com os melhores, pois não tem espaço ao meu lado para gente ou profissional ruim.

Uma vida de oportunidades

Acredito também que a vida é um caminho de aprendizados. Talvez, de tudo que aprendi, o de maior significado foi não perder tempo com gente que não te agrega, reunião inútil e empresas que você não acredita, mesmo como clientes. Isso toma muito tempo. Toma muita vida. Tem um professor de Harvard que propôs um exercício singular. Durante uma aula ele pediu para que os presentes estimassem quantas semanas de vida cada um teria. Exemplo: “vou viver mais 40 anos, então isso equivale a 2087 semanas”. Então, sete dias depois, vai lá, retira a folhinha que indica 2087 semanas e deixe a de 2086 semanas. Depois 2085, 2084, 2083... Isso tangibiliza a finitude da vida e faz com que nós não percamos tempo com coisa ruim. “Vou a essa reunião só para me verem lá?”. Não! Busque estar com pessoas que realmente te interessam, converse com elas sobre outros assuntos. Enfim, não perca tempo com gente que não te agrega, que te deixa mal. Tem muita gente boa e bem-intencionada; e muita empresa também. Se é para jogar a vida fora, vá jogar tênis. Só não perca tempo, que é o seu bem mais precioso.