O menino da lavoura que se tornou CEO
A pandemia demonstrou que existem eventos extremos que, embora imprevisíveis, podem acontecer. Aprendemos que podemos trabalhar e que a qualidade permanece
Publicado em 4 de março de 2022 às, 14h43.
Última atualização em 4 de março de 2022 às, 14h43.
Por: Fabiana Monteiro
AURÉLIO PAVINATO - Diretor-presidente da SLC Agrícola S.A.
Nasci em 1967, na comunidade do Barreiro do município de Vista Gaúcha, no Rio Grande do Sul. Sou filho de pequenos produtores rurais, que possuíam uma colônia (uma propriedade de 25 hectares), onde era possível o cultivo somente em 15 hectares. Eu e meus sete irmãos crescemos trabalhando na lavoura, em uma época em que a operação agrícola era, basicamente, manual. Então, para capinar era preciso a enxada; para lavrar a terra, o arado de boi. A mecanização ainda não tinha chegado para os pequenos como nós, mas era dali que tirávamos o nosso sustento.
Estudei no Barreiro até a quarta-série, pois, lá, não era possível ir além disso. Este era o limite para todas as crianças dali, que, depois, seguiam suas vidas no campo. Mas, daquela comunidade, fui o primeiro a tomar a atitude em subir o morro, andar cinco quilômetros e continuar a quinta série em uma escola de Vista Gaúcha. Levantava cedo, ia para a aula de manhã, retornava por volta de meio-dia e meia, almoçava e seguia para trabalhar no campo. Esta foi minha rotina desde cedo. Aos sete já ia para a lavoura capinar e, a partir dos nove, lavrava com o arado de boi.
Era um bom aluno e me destacava em Matemática. Foi por isso que o professor desta disciplina procurou meu pai e falou: “Por que você não leva o Aurélio para estudar no colégio agrícola de Frederico Westphalen?”. Era uma escola federal, que tinha um sistema de internato, onde não precisaria pagar a mensalidade nem a alimentação. Meu pai acolheu a sugestão, me levou para fazer o exame de seleção e fui aprovado. Naquele momento, o objetivo era me formar e conseguir um trabalho. Na época, tinha muita oportunidade para técnico agrícola na região. Mas, durante o Ensino Médio, surgiu uma excursão para a Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Era somente para o terceiro ano, e eu ainda estava no segundo. Contudo, consegui uma vaga e fui junto.
Foi assim que descobri que ali tinha casa de estudante sem precisar pagar e restaurante universitário onde se desembolsava 50 centavos por refeição. Percebi que era possível fazer faculdade e foi daí que despertou em mim este sonho. Quando chegou o momento, fiz o vestibular, fui aprovado e, entre 1986 e 1990, fiz a graduação em Agronomia. Ainda bem que passei na primeira tentativa, pois, do contrário, teria de começar a trabalhar e seria difícil retomar aquele projeto. Durante o segundo semestre do curso, consegui a monitoria de Morfologia Vegetal e, com isso, passei a dispor de uma pequena receita. Era o suficiente para me manter por lá e me fazer independente financeiramente do meu pai. Depois, conquistei uma bolsa para pesquisa e, quando terminei a graduação, fui direto para o mestrado em Ciência do Solo, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Defendi minha dissertação em 1993, mesmo ano em que entrei na SLC Agrícola.
Em contínua atualização
Concluí o mestrado em julho de 1993, mas, em março daquele ano, fiquei sabendo pelos professores Celso Aita e Carlos Alberto Ceretta que a SLC Agrícola estava procurando um mestre em Ciências do Solo e que as entrevistas seriam em Santa Maria. O objetivo da empresa era montar um departamento de planejamento agrícola e desenvolver tecnologicamente seu negócio. Na época, o mais natural seria defender minha dissertação e seguir trabalhando em pesquisa ou em alguma instituição de ensino superior. Não era comum um mestre ir para a produção. Neste ponto, a SLC já estava pensando à frente, aspirando montar uma equipe técnica mais qualificada. Isso coincidia com o meu objetivo profissional. Portanto, aquela oportunidade “caiu como uma luva”. Credenciei-me à vaga, fui o escolhido e comecei de fato em agosto. Desta forma, mudei de cidade, fui para Horizontina, onde ficava a sede da empresa, e congelei o projeto de doutorado.
De lá para cá, são quase três décadas de história, sendo duas delas trabalhando na produção. Comecei como assessor técnico, depois como gerente de Planejamento Agrícola, gerenciando as fazendas do Sul do País concomitantemente, e depois diretor de Produção e diretor de Operações. Finalmente, em 2012, fui escolhido CEO da empresa, mais precocemente que sonhara. Bem antes deste dia chegar, a SLC vendeu sua fábrica de máquinas de Horizontina para a John Deere e, em 2003, trouxe sua sede para Porto Alegre. Imediatamente tirei da gaveta o projeto do doutorado e me inscrevi na UFRGS. Fiz o doutorado enquanto trabalhava, foram quatro anos e meio de dedicação exclusiva ao trabalho e estudos, inclusive utilizei 2 meses de férias para escrever a tese, com muito apoio da empresa desenvolvi os projetos de pesquisa nas fazendas e, finalmente, em janeiro de 2009, pude enfim defender com sucesso minha tese, encerrando esta parte da jornada acadêmica.
Neste ínterim, a empresa abriu seu capital (em 2007) e foi quando deixei a gerência e me tornei diretor de produção (2008). Agora, como administrador, tinha também que me capacitar e este passou a ser o foco. Fiz alguns cursos internos e, em 2010, participei do Programa de Desenvolvimento de Liderança Individual (PDLI), oferecido pelo Centro de Excelência Empresarial (CENEX), aqui em Porto Alegre. Em 2012, fiz o Skills Tools and Competencies (STC), da Fundação Dom Cabral em parceria com a Kellogg School of Management. Era um curso intensivo de três semanas em Nova Lima (MG), outras três em Evanston (no Estado de Illinois), às margens do Lago Michigan. Em seguida, em 2016, cursei ainda o Programa de Gestão Avançada (PGA) – outra parceria da Dom Cabral com o Instituto Europeu de Administração de Empresas (Insead), da França – e, neste atual momento, participo do Owner/President Management, na Harvard Business School. São três módulos. Fiz o primeiro em 2019 e não foi possível continuar por conta da pandemia. Mas já tenho tudo programado para seguir em 2022 e concluí-lo em 2023. Tive a oportunidade de fazê-lo no formato remoto, mas não quis, pois o presencial é uma boa oportunidade de renovar o networking.
Assim, sigo me capacitando, pois o aprendizado contínuo é fundamental. É o momento em que nos atualizamos, nos reciclamos e nos inteiramos das novidades. Valorizamos isso dentro da SLC, tanto que mudamos nossas regras de patrocínio e hoje a empresa auxilia no pagamento de qualquer curso que o colaborador queira fazer. Incentivamos também aos nossos diretores para que a cada três ou quatro anos façam um curso de atualização, MBA ou mestrado. É importante destinar parte do tempo para iniciativas deste tipo.
O sucesso não vem para quem faz apenas o básico
Sucesso vem com muito trabalho e muito estudo, pois as duas coisas andam juntas. A isso se junta a resiliência, para enfrentar as dificuldades que aparecem ao longo do caminho. O sucesso vem depois de superadas as dificuldades, e não apenas fazendo o básico. É como um grande atleta no esporte. O craque é aquele que se diferencia nos momentos decisivos. E o segredo está naquilo que acabei de listar (trabalho, estudo e resiliência) somados a um quarto fator, que é a existência de um projeto a longo prazo.
A jornada até o sucesso é quase sempre longa, e não é preciso percorrê-la sozinho. No meu caso, tive muitos que me ajudaram. A começar pelo meu pai, um analfabeto que por mais de uma vez olhou para mim e disse: “Filho, estude!”. Esta frase simples, vinda de quem veio, valia (e vale) mais que longos discursos. Tive o apoio também do meu professor do ensino básico, Celir Cereza, que viu em mim o que outros não viram e orientou meu pai a me levar para continuar os estudos em Frederico Westphalen. Depois, durante a faculdade, sou muito agradecido aos meus mestres, os professores Celso Aita e Carlos Alberto Ceretta, com quem desenvolvi pesquisas em Santa Maria. E, em seguida, durante o mestrado e o doutorado, o professor João Mielniczuk, da UFRGS, referência no manejo de solo sustentável, homem de ampla visão sistêmica e referência de comportamento. A estes cinco rendo homenagens, pois foram importantes ao longo de minha história e formação. Além disso, gostaria de homenagear aos colegas e acionistas da SLC, pela oportunidade de desenvolver minha carreira profissional em uma empresa de muito sucesso.
Depois de plantar, chegou a fase da colheita
Os desafios vão mudando conforme o momento que vivemos. No começo, quando começamos a trabalhar é preciso construir uma marca, conquistar o respeito dos colegas e ter capacidade de influenciar. Não foi diferente para mim como técnico. Depois, gerenciando as operações, tive que conseguir a colaboração entre as fazendas, coordenar o desenvolvimento da produção, e melhorar o sistema produtivo e o desempenho econômico. Até então, era um líder técnico em função do profundo conhecimento agronômico que dispunha. Depois que me tornei diretor, o escopo aumentou, ainda assim fui conquistando terreno passo a passo. E, enfim, me vi diante do meu desafio maior, quando fui colocado como CEO. Era ainda muito jovem, com apenas 45 anos, e, de novo, a preocupação era deixar uma marca e me tornar líder exemplar.
Ao longo do itinerário profissional que venho seguindo, sempre trabalhei com metas de cinco anos. Este foi o período que estabeleci para que me consolidasse na posição de presidente. E, ao fim dele, me orgulhei da evolução conquistada e renovei o projeto, agora com mais maturidade e perspectivas promissoras. Nisso já vai completar dez anos e agora considero que estamos na fase da colheita, e os próprios indicadores da empresa mostram isso. O nosso sucesso tem sido fantástico.
Quando houve a abertura de capital da SLC, em 2007, a receita líquida da empresa era R$ 270 milhões. Em 2012, assumi como CEO e fechamos o ano com faturamento de R$ 1 bilhão. Em 2020, esse índice foi superior a R$ 3 bi, com previsão de dobrar até 2022. Contribuí com estes números. Implantei uma série de mudanças que se mostraram vitais para o sucesso que estamos experimentando hoje, que vai além dos números. Desenvolvemos um sistema de comunicação mais eficiente, tanto internamente quanto com o mercado, investimos em treinamento e melhoramos a retenção do time.
Se há dez anos nossa taxa de turnover era acima de 40% ao ano, nos últimos quatro anos mantemos em torno de 15%. Reduzimos também acidentes (hoje a taxa é de 1,9 acidente com afastamentos para cada 1 milhão de horas trabalhadas) e aumentamos a satisfação dos nossos colaboradores, conforme pesquisa que realizamos a cada dois anos (84% de satisfação em 2020). Contratamos também uma consultoria para trabalhar conosco, que tem uma metodologia que conecta fortemente as estratégias a longo prazo da empresa com as metas do time. Então, hoje, todas as nossas lideranças – diretores, gerentes, coordenadores – possuem objetivos vinculados às nossas estratégias e fazemos uma revisão todos os anos. Tudo isso está gerando resultados muito bons e contribuindo para nossa rentabilidade, sucesso e reconhecimento, pois acumulamos vários prêmios do mercado como uma das melhores companhias do agro ao longo destes anos.
Não caí em nenhuma das armadilhas do caminho
Se posso destacar três qualidades que contribuíram para que eu chegasse até aqui, diria que foi valorizar sempre a cooperação, investir nas relações interpessoais e ter uma visão holística do sistema. Isso valeu quando era técnico e continua valendo agora, como CEO. Muitas são as armadilhas pelo caminho, mas não caí em alguma delas. A pressa ou a ânsia por crescimento faz parte deste grupo. Quando isso acontece, é fácil atropelar o tempo das coisas, impedindo que mesmo bons projetos não alcancem a maturação. Não são poucos os profissionais que, pela pressa exagerada por crescer na carreira, não se preparam o suficiente para dar o próximo passo. Às vezes, uma promoção pode significar um retrocesso.
Outra emboscada é a falta do autoconhecimento, e esta é ainda mais perigosa que a primeira. Você pensa que dará conta do desafio que lhe foi proposto e acaba se dando mal. Isso prejudica a carreira e, normalmente, leva a um step back. Quantos conhecemos que estavam em uma evolução interessante e, de repente, dão um passo em falso e regridem profissionalmente? Alguns nem conseguem se recuperar do tombo, cuja a origem é a falta de autoconhecimento. É preciso ter consciência do passo que se está dando e do terreno em que se está pisando.
Digo que as habilidades que eram eficientes no passado, continuam o sendo agora. Obviamente que o mundo mudou, mas se olharmos para os grandes líderes de outrora, encontraremos neles qualidades, ainda hoje, essenciais, como visão holística, visão a longo prazo, boas relações interpessoais e espírito agregador. Estes são o que entendo como os principais pontos que colocaram grandes líderes na história e que seguem valendo. Hoje o mundo é mais veloz e oferece mais conhecimento, mas não é isso que te torna líder hoje. No passado, talvez bastasse conhecer mais que os outros para ser alçado ao posto de liderança. Isso já não é suficiente. Não há líder genuíno, que não tenha espírito agregador e visão do todo e a longo prazo. O conjunto disso é o que, para mim, define um grande líder.
Já de um liderado, espero, obviamente, visão de negócio e visão do mundo em que vivemos. O segundo ponto é formação básica. Não estou falando em conhecimento da área específica em que atuará, pois isso está intrínseco, mas de formação geral, capacidade que permitirá aprender qualquer atividade que se venha a exercer na empresa. Além disso, é preciso que tenha um projeto a longo prazo. Quando não se tem isso, joga-se tudo para o alto diante de qualquer dificuldade menor e a curto prazo. Também não adianta ser competente e não ser agregador, pois assim não se constrói um time. Eis as características do profissional que tanto buscamos quando olhamos para fora quanto para as nossas promoções internas.
Apesar dos percalços, é preciso sonhar
A pandemia demonstrou que existem eventos extremos e que eles, embora imprevisíveis, podem acontecer. Aprendemos com ela que podemos trabalhar remotamente e que nada muda em termos de qualidade. Nos tornamos mais eficientes, mais digitais por conta da Covid-19, e apesar dela. E, de novo, confirmamos que eventos drásticos levam a inovações, rupturas e benefícios futuros. Mas, apesar dos percalços, é preciso sonhar grande, construir um projeto e olhar para frente. Viver do passado, jamais! Isso para mim é uma mensagem das mais importantes, especialmente para os mais jovens. Estes devem ter um propósito e, obviamente, direcionar seus esforços para estudar, trabalhar, edificar algo e deixar um legado e sua marca na história.
Uma última confidência. Conheci minha esposa, Taciane, quando comecei a trabalhar. Casamo-nos em janeiro de 2003 e hoje temos três filhos: Pedro Ricardo (14 anos), Luis Eduardo (12) e João Gabriel (8). Lembra que disse antes que não se trilha um caminho bem-sucedido sozinho? Agora reitero que o sucesso da minha trajetória está suportado no apoio que venho recebendo da minha família. Sei o quanto ela, Taciane, abdicou dos seus projetos em favor dos meus, pois muitas foram as vezes ao longo desta jornada em que estive ausente, por conta de viagens ou demais compromissos. Ela, que é arquiteta de formação e construiu uma carreira na área de Engenharia de Segurança do Trabalho e Engenharia Ambiental, foi a parceira que esteve comigo em todos os momentos. É uma grande mulher – em todos os sentidos, como esposa e profissional –, que tenho a felicidade em ter ao lado e que me ajudou a chegar até aqui.