O IPO da Lyft — rival da Uber — da perspectiva do taxista
É sempre revelador tentar entender a história também a partir do ponto de vista dos derrotados
Da Redação
Publicado em 1 de abril de 2019 às 13h52.
Última atualização em 1 de abril de 2019 às 14h50.
Faz parte do folclore dos jornalistas a figura do repórter que traça o panorama de um país ou de uma região a partir apenas do relato do taxista que o leva do aeroporto ao hotel. É a maneira mais rápida – e obviamente enviesada – de dar ao seu artigo uma “cor local”, sem maiores esforços de apuração.
No caso da abertura de capital da Lyft , no entanto, a perspectiva do taxista é a que mais tem sido deixada de lado. Pensa-se no consumidor, o que está muito justo, mas é sempre revelador tentar entender a história também a partir do ponto de vista dos derrotados.
Pois bem. A Lyft é a grande inovadora do mercado de transportes, a maior responsável pelo barateamento das corridas (ótimo para usuários, não tão bom para os profissionais, por suposto).
Ué, o pioneiro não é o Uber? Sim e não. O Uber nasceu antes, mas seu modelo de negócios era de propor a contratação de motoristas pelo app. Nos Estados Unidos, esses motoristas privados são regulados de forma diferente, e não podem pegar passageiros na rua. O Uber não ousava penetrar o mercados dos táxis por medo da regulação.
E aí entrou a Lyft – corruptela de lift, carona. A ousadia da empresa fez o Uber “pivotar” seu modelo de negócios. Da mesma forma que a Amazon incorporou um mercado em seu site para combater o crescimento do eBay, o Uber se impôs à Lyft.
Nessa briga que se estende até hoje, e ainda ganhou novos concorrentes, todos se atracam e, curiosamente, todos ganham. Com exceção dos taxistas, que nem estavam na contenda.
E aí você, que é usuário de transportes, diz: é a evolução; os taxistas forneciam um serviço caro, ineficiente, arrogante com os clientes, repleto de desvios de conduta (como no esquisito mercado de compra de licenças). E estará quase absolutamente certo. Só estará errado se achar que esta evolução é natural.
Porque não é. A Lyft, tanto quanto o Uber, a 99 e qualquer um dos novos entrantes no mercado de transportes, é subsidiada pelos acionistas. A lógica é aquela que já ficou famosa na Nova Economia: só há espaço para um protagonista nesse setor, portanto vale a pena comprar crescimento, ou seja, oferecer um serviço muito barato para impedir que os concorrentes se estabeleçam.
Na Velha Economia, isso tem um nome: dumping, abuso de poder econômico para eliminar concorrentes. Na Nova, chama-se de inovação (ou uma das facetas da inovação). O dumping foi proibido no começo do século passado porque os consumidores a princípio são beneficiados pela queda de preços, mas depois da razia de concorrentes correm o risco de ficar na mão de um monopólio.
Este é o grande (talvez único) argumento em prol dos taxistas. O negócio dos transportes via apps é muito mais moderno, vibrante, prático, democrático (no sentido de permitir que qualquer um preste o serviço). Mas sua vitória sobre os táxis se deve ao poder econômico, gente que banca a empresa para que ela forneça viagens mais baratas.
Claro, uma vez que se ganhe escala a eficiência costuma se impor. Os custos diluídos por milhões de viagens se tornam competitivos, e o modelo se prova muito mais lógico do que a criação de uma categoria de motoristas protegidos por regulação.
É a esse ponto que os investidores no IPO da Lyft imaginam chegar. Por enquanto, ela perde 1 bilhão de dólares por ano. O Uber perdeu no ano passado 1,8 bilhão de dólares (um decréscimo no prejuízo em relação aos 2,2 bilhões de dólares de 2017, que pode ser interpretado como boa ou má notícia, pelo lado de se aproximar de uma operação lucrativa ou pelo lado de perder fôlego no crescimento).
Do ponto de vista do taxista, trata-se uma grande conspiração. Alguns grandes investidores decidiram acabar com seu negócio. A abertura de capital apenas troca o pequeno grupo de grandes investidores por um grande grupo de pequenos investidores, todos contra eles. É como se a sociedade tivesse decidido pegar os táxis… de pancada.
No cômputo global, o mundo está alocando parte dos seus recursos para baratear as viagens individuais. É provavelmente uma decisão correta, até tardia, da sociedade moderna. Mas não se trata da atuação de uma “roda invisível do mercado”. Pelo menos por enquanto, é dumping.
*David Cohen é editor-executivo de EXAME
Faz parte do folclore dos jornalistas a figura do repórter que traça o panorama de um país ou de uma região a partir apenas do relato do taxista que o leva do aeroporto ao hotel. É a maneira mais rápida – e obviamente enviesada – de dar ao seu artigo uma “cor local”, sem maiores esforços de apuração.
No caso da abertura de capital da Lyft , no entanto, a perspectiva do taxista é a que mais tem sido deixada de lado. Pensa-se no consumidor, o que está muito justo, mas é sempre revelador tentar entender a história também a partir do ponto de vista dos derrotados.
Pois bem. A Lyft é a grande inovadora do mercado de transportes, a maior responsável pelo barateamento das corridas (ótimo para usuários, não tão bom para os profissionais, por suposto).
Ué, o pioneiro não é o Uber? Sim e não. O Uber nasceu antes, mas seu modelo de negócios era de propor a contratação de motoristas pelo app. Nos Estados Unidos, esses motoristas privados são regulados de forma diferente, e não podem pegar passageiros na rua. O Uber não ousava penetrar o mercados dos táxis por medo da regulação.
E aí entrou a Lyft – corruptela de lift, carona. A ousadia da empresa fez o Uber “pivotar” seu modelo de negócios. Da mesma forma que a Amazon incorporou um mercado em seu site para combater o crescimento do eBay, o Uber se impôs à Lyft.
Nessa briga que se estende até hoje, e ainda ganhou novos concorrentes, todos se atracam e, curiosamente, todos ganham. Com exceção dos taxistas, que nem estavam na contenda.
E aí você, que é usuário de transportes, diz: é a evolução; os taxistas forneciam um serviço caro, ineficiente, arrogante com os clientes, repleto de desvios de conduta (como no esquisito mercado de compra de licenças). E estará quase absolutamente certo. Só estará errado se achar que esta evolução é natural.
Porque não é. A Lyft, tanto quanto o Uber, a 99 e qualquer um dos novos entrantes no mercado de transportes, é subsidiada pelos acionistas. A lógica é aquela que já ficou famosa na Nova Economia: só há espaço para um protagonista nesse setor, portanto vale a pena comprar crescimento, ou seja, oferecer um serviço muito barato para impedir que os concorrentes se estabeleçam.
Na Velha Economia, isso tem um nome: dumping, abuso de poder econômico para eliminar concorrentes. Na Nova, chama-se de inovação (ou uma das facetas da inovação). O dumping foi proibido no começo do século passado porque os consumidores a princípio são beneficiados pela queda de preços, mas depois da razia de concorrentes correm o risco de ficar na mão de um monopólio.
Este é o grande (talvez único) argumento em prol dos taxistas. O negócio dos transportes via apps é muito mais moderno, vibrante, prático, democrático (no sentido de permitir que qualquer um preste o serviço). Mas sua vitória sobre os táxis se deve ao poder econômico, gente que banca a empresa para que ela forneça viagens mais baratas.
Claro, uma vez que se ganhe escala a eficiência costuma se impor. Os custos diluídos por milhões de viagens se tornam competitivos, e o modelo se prova muito mais lógico do que a criação de uma categoria de motoristas protegidos por regulação.
É a esse ponto que os investidores no IPO da Lyft imaginam chegar. Por enquanto, ela perde 1 bilhão de dólares por ano. O Uber perdeu no ano passado 1,8 bilhão de dólares (um decréscimo no prejuízo em relação aos 2,2 bilhões de dólares de 2017, que pode ser interpretado como boa ou má notícia, pelo lado de se aproximar de uma operação lucrativa ou pelo lado de perder fôlego no crescimento).
Do ponto de vista do taxista, trata-se uma grande conspiração. Alguns grandes investidores decidiram acabar com seu negócio. A abertura de capital apenas troca o pequeno grupo de grandes investidores por um grande grupo de pequenos investidores, todos contra eles. É como se a sociedade tivesse decidido pegar os táxis… de pancada.
No cômputo global, o mundo está alocando parte dos seus recursos para baratear as viagens individuais. É provavelmente uma decisão correta, até tardia, da sociedade moderna. Mas não se trata da atuação de uma “roda invisível do mercado”. Pelo menos por enquanto, é dumping.
*David Cohen é editor-executivo de EXAME