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Cyberbullying: a violência real do mundo virtual

Padrões e estereótipos de gênero são reforçados também em violências on-line contra mulheres e meninas

Todas as formas de violência, habilitadas digitalmente, trazem consequências seríssimas para as pessoas que as vivenciam (Future Publishing / Colaborador/Getty Images)
DR

Da Redação

Publicado em 13 de dezembro de 2021 às 10h13.

*Por Daniela Grelin

Quando iniciamos nossa peregrinação pelo período brumoso da pandemia, vivemos, cada um à sua maneira, uma verdadeira revolução em nossa maneira de trabalhar, estudar, conviver e nos comunicar. Naquele momento inicial de experiência pandêmica, testemunhamos muitas previsões desejosas, do tipo “sairemos bem mais fortes desta”, normalmente com um fundo instrumental melancólico nas peças publicitárias.

Neste dezembro, passados quase dois anos do início da nossa experiência com a Covid-19, à medida em que assimilamos de vez o que passamos a chamar de ‘o novo normal’, podemos fazer um balanço das transformações sob vários aspectos.

O historiador israelense Yuval Harari, caracterizou a experiência humana com a Covid-19 um sucesso científico e um fracasso político. No que diz respeito à equidade de gênero e às violações dos direitos humanos, o período foi um fardo para as mulheres e uma grande preocupação para todos nós.

Enquanto a saúde física de nossa população enfrentou um tsunami, deixando uma torrente de vidas e oportunidades perdidas, a saúde moral de nossa sociedade, se aferida pela nossa capacidade de reduzir inequidades, passa pela fase aguda de uma moléstia crônica.

Segundo estudos do Fórum Econômico Mundial e da ONU Mulheres, a experiência pandêmica teve um efeito revelador e amplificador sobre as vulnerabilidades que historicamente atingem as mulheres, paralisando, ou até levando ao retrocesso, conquistas duramente alcançadas ao longo das últimas décadas. Um recorte bastante contundente desta realidade pode ser observado a partir do prisma do universo virtual. Esse espaço omnipresente, que reflete e retroalimenta a nossa cultura, os nossos valores e os nossos comportamentos, traz um panorama inquietante.

Uma pesquisa recente da Decode em parceria com o Instituto Avon [1] nos traz um retrato dessa dimensão ampliada das relações humanas, a partir da análise de 286 mil vídeos e 154 mil menções, comentários e reações na forma de curtidas, compartilhamentos e repercussões. O estudo traz um relato único quantificando a ocorrência, a evolução e as consequências das desqualificações, humilhações, perseguições, assédios e exposições que têm como alvo as mulheres e meninas no ambiente digital. Todas estas formas de violência, habilitadas digitalmente, trazem consequências seríssimas para as pessoas que as vivenciam, causando traumas emocionais, adoecimentos psíquicos, ideação suicida e cerceamento da liberdade individual.  Em se tratando de meninas e mulheres, a violência do espaço digital reafirma padrões e estereótipos de gênero (expectativas sobre como mulheres devem se comportar) danificando a reputação e a autoimagem bem como impedindo a liberdade de expressão, a dignidade e o bem-estar nos espaços virtuais.

As violências que acontecem em espaços digitais têm como principais características a exposição da vítima a amplas audiências, a perenidade das informações e a falta de controle sobre a repercussão dos conteúdos compartilhados.

Uma das facetas mais cruéis da violência virtual se manifesta na produção, distribuição e consumo de materiais encontrados em plataformas pornográficas, dos quais estimados 20% fazem alusão a diferentes formas de violência contra meninas e mulheres, e 16% trazem conteúdos relacionados às mesmas violências.  Entre eles, são muito comuns vídeos que trazem descritivos como “sexo com menina dormindo/bêbada/drogada”, “gravação por baixo da saia no transporte público”, “câmera escondida”, “exposição da ex-namorada/ pornografia de vingança” e até mesmo “estupro”.  Plataformas pornográficas dispõem conteúdos relacionados à violência de gênero com frequência – a cada dez vídeos publicados, dois revelam alguma menção à violência contra meninas e mulheres. Essas plataformas obtêm um volume expressivo de usuários diariamente, representando um dos maiores tráfegos de acessos de toda a internet. Vídeos de meninas e mulheres sendo violentadas enquanto estão inconscientes (dormindo, medicadas, alcoolizadas ou sob efeito de drogas) apresentaram um volume expressivo de visualizações: cerca de 25,9 bilhões somente nos últimos dois anos.

Convido-os a examinar estes números com um olhar crítico. Pois o espaço virtual, assim como o tempo, não são necessariamente nossos aliados. São uma dimensão poderosa de amplificação das nossas escolhas, podendo ter um efeito construtivo ou destrutivo, a depender do uso que fazemos deles. Os algoritmos, comercialmente indexados, não agem como nossos ‘bibliotecários pessoais’, mas como curadores publicitários que muitas vezes têm o efeito de rentabilizar a difusão de fake news, pornografia abusiva e violências diversas. Ao mesmo tempo, possibilitam uma combinação perversa de anonimato dos produtores e consumidores de conteúdo misógino e, ao mesmo tempo, exposição e responsabilização de suas vítimas.

Cabe lembrar que os algoritmos são meios de automatização de decisões, desenvolvidos por pessoas e corporações - estes, por sua vez movidos, por valores os mais diversos, interesses e intenções.

Não se trata de vilanizar a internet, mas de propor uma discussão crítica sobre a economia da atenção, visando adaptar o ambiente regulatório e o controle social exercido sobre seus principais atores com a mesma agilidade e impacto que a revolução tecnológica imprime à realidade social. Quem sabe, ao refletirmos criticamente sobre esta realidade, inspirados por essa consciência, possamos utilizar a nossa inventividade coletiva e avanço tecnológico a nosso favor, fortalecendo espaços de acolhimento e articulação para uma sociedade mais equilibrada e justa.


[1] Além Do Cyberbullying: A Violência Real Do Mundo Virtual. Decode e Instituto Avon. Pesquisa realizada entre 01/2019 a 03/2020 com segundo tomada entre 2020 e 2021.

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*Por Daniela Grelin

Quando iniciamos nossa peregrinação pelo período brumoso da pandemia, vivemos, cada um à sua maneira, uma verdadeira revolução em nossa maneira de trabalhar, estudar, conviver e nos comunicar. Naquele momento inicial de experiência pandêmica, testemunhamos muitas previsões desejosas, do tipo “sairemos bem mais fortes desta”, normalmente com um fundo instrumental melancólico nas peças publicitárias.

Neste dezembro, passados quase dois anos do início da nossa experiência com a Covid-19, à medida em que assimilamos de vez o que passamos a chamar de ‘o novo normal’, podemos fazer um balanço das transformações sob vários aspectos.

O historiador israelense Yuval Harari, caracterizou a experiência humana com a Covid-19 um sucesso científico e um fracasso político. No que diz respeito à equidade de gênero e às violações dos direitos humanos, o período foi um fardo para as mulheres e uma grande preocupação para todos nós.

Enquanto a saúde física de nossa população enfrentou um tsunami, deixando uma torrente de vidas e oportunidades perdidas, a saúde moral de nossa sociedade, se aferida pela nossa capacidade de reduzir inequidades, passa pela fase aguda de uma moléstia crônica.

Segundo estudos do Fórum Econômico Mundial e da ONU Mulheres, a experiência pandêmica teve um efeito revelador e amplificador sobre as vulnerabilidades que historicamente atingem as mulheres, paralisando, ou até levando ao retrocesso, conquistas duramente alcançadas ao longo das últimas décadas. Um recorte bastante contundente desta realidade pode ser observado a partir do prisma do universo virtual. Esse espaço omnipresente, que reflete e retroalimenta a nossa cultura, os nossos valores e os nossos comportamentos, traz um panorama inquietante.

Uma pesquisa recente da Decode em parceria com o Instituto Avon [1] nos traz um retrato dessa dimensão ampliada das relações humanas, a partir da análise de 286 mil vídeos e 154 mil menções, comentários e reações na forma de curtidas, compartilhamentos e repercussões. O estudo traz um relato único quantificando a ocorrência, a evolução e as consequências das desqualificações, humilhações, perseguições, assédios e exposições que têm como alvo as mulheres e meninas no ambiente digital. Todas estas formas de violência, habilitadas digitalmente, trazem consequências seríssimas para as pessoas que as vivenciam, causando traumas emocionais, adoecimentos psíquicos, ideação suicida e cerceamento da liberdade individual.  Em se tratando de meninas e mulheres, a violência do espaço digital reafirma padrões e estereótipos de gênero (expectativas sobre como mulheres devem se comportar) danificando a reputação e a autoimagem bem como impedindo a liberdade de expressão, a dignidade e o bem-estar nos espaços virtuais.

As violências que acontecem em espaços digitais têm como principais características a exposição da vítima a amplas audiências, a perenidade das informações e a falta de controle sobre a repercussão dos conteúdos compartilhados.

Uma das facetas mais cruéis da violência virtual se manifesta na produção, distribuição e consumo de materiais encontrados em plataformas pornográficas, dos quais estimados 20% fazem alusão a diferentes formas de violência contra meninas e mulheres, e 16% trazem conteúdos relacionados às mesmas violências.  Entre eles, são muito comuns vídeos que trazem descritivos como “sexo com menina dormindo/bêbada/drogada”, “gravação por baixo da saia no transporte público”, “câmera escondida”, “exposição da ex-namorada/ pornografia de vingança” e até mesmo “estupro”.  Plataformas pornográficas dispõem conteúdos relacionados à violência de gênero com frequência – a cada dez vídeos publicados, dois revelam alguma menção à violência contra meninas e mulheres. Essas plataformas obtêm um volume expressivo de usuários diariamente, representando um dos maiores tráfegos de acessos de toda a internet. Vídeos de meninas e mulheres sendo violentadas enquanto estão inconscientes (dormindo, medicadas, alcoolizadas ou sob efeito de drogas) apresentaram um volume expressivo de visualizações: cerca de 25,9 bilhões somente nos últimos dois anos.

Convido-os a examinar estes números com um olhar crítico. Pois o espaço virtual, assim como o tempo, não são necessariamente nossos aliados. São uma dimensão poderosa de amplificação das nossas escolhas, podendo ter um efeito construtivo ou destrutivo, a depender do uso que fazemos deles. Os algoritmos, comercialmente indexados, não agem como nossos ‘bibliotecários pessoais’, mas como curadores publicitários que muitas vezes têm o efeito de rentabilizar a difusão de fake news, pornografia abusiva e violências diversas. Ao mesmo tempo, possibilitam uma combinação perversa de anonimato dos produtores e consumidores de conteúdo misógino e, ao mesmo tempo, exposição e responsabilização de suas vítimas.

Cabe lembrar que os algoritmos são meios de automatização de decisões, desenvolvidos por pessoas e corporações - estes, por sua vez movidos, por valores os mais diversos, interesses e intenções.

Não se trata de vilanizar a internet, mas de propor uma discussão crítica sobre a economia da atenção, visando adaptar o ambiente regulatório e o controle social exercido sobre seus principais atores com a mesma agilidade e impacto que a revolução tecnológica imprime à realidade social. Quem sabe, ao refletirmos criticamente sobre esta realidade, inspirados por essa consciência, possamos utilizar a nossa inventividade coletiva e avanço tecnológico a nosso favor, fortalecendo espaços de acolhimento e articulação para uma sociedade mais equilibrada e justa.


[1] Além Do Cyberbullying: A Violência Real Do Mundo Virtual. Decode e Instituto Avon. Pesquisa realizada entre 01/2019 a 03/2020 com segundo tomada entre 2020 e 2021.

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