A era do descontentamento pressiona por mudanças de crenças
Em momento de forte transição, criar condições para uma riqueza compartilhada exige mais que boas intenções
Publicado em 27 de janeiro de 2022 às, 10h50.
Última atualização em 31 de maio de 2023 às, 15h22.
Um dos assuntos mais comentado nos principais veículos globais na semana passada foi a carta anual de Larry Fink, executivo chefe do principal fundo de investimentos do mundo, a BlackRock, para os CEOs das empresas que movem a economia global.
Na sua linha argumentativa, Fink aprofunda posicionamentos de comunicados anteriores e reforça sua crença na agenda ESG. A novidade da carta de 2022, é o destaque dado ao “S”, social. Com U$ 1 trilhão na sua carteira de investimentos, o executivo sai em defesa dos direitos dos trabalhadores de pressionarem seus empregadores por melhores remunerações e condições de trabalho. E afirma a urgência dos ambientes corporativos, em um mundo ainda afetado pela pandemia, de responderem a questões como equidade racial, assistência infantil e saúde mental, além das mudanças nas expectativas geracionais relacionadas ao trabalho.
“Trabalhadores exigindo mais de seus empregadores é uma característica essencial do capitalismo eficaz. Isto impulsiona a prosperidade e cria um cenário mais competitivo para o talento (...) "As empresas que não se adaptam a esta nova realidade e não respondem aos seus trabalhadores o fazem por sua conta e risco. A rotatividade aumenta as despesas, diminui a produtividade e corrói a cultura e a memória corporativa" (...) "Esses temas estão agora no centro do palco para os CEOs, que devem estar atentos sobre como usam sua voz e se conectam em questões sociais importantes para seus funcionários".
A “fórmula Larry Fink”, cria ondas de espasmos no centro onde o dinheiro grosso é decidido, mas não faz cócegas no caos social provocado pela desigualdade recorde que um sistema altamente concentrador e ganancioso foi capaz de gerar, assunto recorrente de economistas ganhadores do Nobel como Jean Tirole, Joseph Stiglitz e Amartya Sen, ou daqueles que se transformaram em celebridades como Thomas Piketty ou Mariana Mazzucato.
Fink toca em um ponto importante, como a deterioração da relação entre trabalhadores e empregadores virou uma das fontes do caos social que vivemos, em especial quando as curvas de pesquisas mostram a constância de baixas remunerações, aumento da carga de trabalho e das condições precárias que a grande massa de trabalhadores se submete diariamente. Mas, reparar os dutos ainda que na direção certa, é insuficiente para entender e encaminhar soluções para a disparada da desigualdade e o lento crescimento global.
Muitas agendas e siglas foram criadas nos últimos anos na tentativa de reverter este quadro, mas poucos avanços foram de fato conquistados. Da agenda 2030 da ONU ao ESG, passando pelas COPs, coalizões, tratados e pactos de governos ou empresariais, o que temos é insuficiente para deter o agravamento das crises ambiental, social, econômica e agora democrática, que fraturam a perspectiva de futuro das novas gerações.
O que a pandemia mostrou é que os esforços para superar problemas críticos, como o caos ambiental e socioeconômico que o mundo atravessa, exigem além de pactos estruturais, que mobilizem comunidades e conhecimentos diferentes canalizados na busca de soluções multidimensionais, vontade política, visão processual e revisão de crenças que sustentam modelos geradores de ambientes desestabilizadores.
Se nos últimos 250 anos, avançamos em quase todos os indicadores sociais, como Joseph Stiglitz mostra em seu livro Povo, Poder e Lucro, as últimas décadas mostram uma deterioração das condições que promoveram essas conquistas. Conquistas que vem “das verdadeiras fontes de riqueza que são a produtividade, a criatividade e a vitalidade do povo, conquistados pela economia, política e organização social, além dos tecnológicos e científicos, que forneceram as bases para a enorme elevação do padrão de vida que ocorreu nos dois últimos séculos”[1]. E onde ele se pergunta: como chegamos neste estado de risco, onde o fundamentalismo do livre mercado representa uma ameaça sem obstáculos para reconstruir, eu diria inventar, a prosperidade compartilhada.
Nada diferente do que coloca Philip Alston, no relatório 2020 da ONU Extremy Poverty and Humans Right (Extrema Pobreza e Direitos Humanos), ao traçar um risco no chão quando defende que “a pobreza é uma escolha” e propor que as organizações internacionais se comprometam com ferramentas de medições e indicadores que reorientem a definição da linha de pobreza, as noções de bem-estar e vida digna e que sejam capazes de propor enquanto há tempo, “um amplo painel de indicadores multidimensionais” para fazer frente aos desafios que a sociedade global já enfrenta agravados pela pandemia do coronavírus.
Com tantas opiniões, estudos, dados, pessoas e análises especializados na mesa, fica a pergunta: por que é tão difícil mudar as crenças que nos levam a sustentar este quadro desolador?
Pouca gente dominando as principais instâncias de poder e ganhando muito dinheiro, é uma resposta honesta. Mas, não responde por que uma massa imensa de pessoas que não ganham nem uma fração desse dinheiro, continuam defendendo um sistema desestabilizador.
[1] Povo, Poder e Lucro. Joseph Stiglitz. São Paulo: Record, 2020.