Por uma escola que valorize o empreendedorismo antropológico
Preparar cidadãos mais críticos, participativos e produtivos na sociedade do século XXI começa na Educação Básica
Publicado em 29 de outubro de 2018 às, 16h57.
Última atualização em 29 de outubro de 2018 às, 16h59.
Segundo pesquisa do LIDE Futuro, 80% dos jovens querem empreender em 10 anos. Outro estudo da Endeavor indica que 3 a cada 4 brasileiros sonham em empreender - é a segunda maior taxa do mundo. No entanto, apenas 9% se preparam para começar seu negócio, índice que sobe para 20% na Argentina e 43% no Chile.
Indo ao encontro desta ideia de estar preparado para empreender, Tibor Navracsics, atual Comissário da União Europeia para a Educação, Cultura, Juventude e Desporto, defende que os sistemas de educação e formação básica da Europa devem dar às pessoas de todas as origens as competências certas para progredir e prosperar profissionalmente, mas também para serem cidadãos engajados e participativos em suas comunidades.
Ao me deparar com os dados do LIDE, Endeavor e a fala de Navracsics, com a qual compactuo, me senti estimulada a compartilhar com vocês os primeiros passos de um novo conceito que venho elaborando: o empreendedorismo antropológico.
Há alguns anos, pesquiso e fomento a educação empreendedora que, ao contrário do que muitas pessoas pensam, não visa puramente formar pessoas capazes de empreender no futuro e ter seu próprio negócio. Mais que isso, seu objetivo é estimular nas crianças e adolescentes competências natas dos empreendedores, que também são fundamentais para o desenvolvimento integral dos seres humanos, tais como autoconhecimento, autogestão, empatia, resiliência, criatividade, uso de tecnologias digitais, autorreflexão humilde, apenas para citar algumas delas.
O empreendedorismo antropológico avança mais um passo quando incorpora a este trabalho educacional um olhar para a sua comunidade, volta às raízes das crianças e adolescentes ao propor que as habilidades desenvolvidas pela educação empreendedora sejam colocadas em prática, sem que se perca de vista o ambiente onde os indivíduos estão inseridos, com todas as suas nuances e heterogeneidade, que forjam e são forjadas por seus integrantes.
O objetivo é estimulá-las a não perder o foco nestes elementos durante o aprendizado e que eles permeiem suas ações futuras, desenvolvendo e ajudando a comunidade na qual cresceram, sempre conhecendo e valorizando seus hábitos e crenças, reconhecendo toda a sua complexidade e diversidade. Ao mesmo tempo em que se desenvolvem como seres humanos, também transformam o entorno, com engajamento e senso de cidadania.
No Brasil ainda não temos a cultura de olhar para nossa comunidade. Acredito que os japoneses representam muito do que o empreendedorismo antropológico ressalta. Quantos de nós não ficamos surpresos ao verem os torcedores do Japão demorarem mais tempo para deixar os estádios, durante a Copa no Brasil, para limpá-los? O empreendedorismo antropológico direciona o olhar para este tipo de atitude, para a comunidade, para o bem de todos.
A criança e o adolescente, portanto, aprenderão, sim, a empreender para fins pessoais, mas sem perder o foco em respeitar, valorizar sua cultura e reverter benefícios para comunidade em que está inserido, sendo efetivamente capaz de exercer sua cidadania. À medida em que cresce pessoalmente, também levará consigo um forte sentimento comunitário, de pertencimento e de engajamento em prol do lugar onde nasceu, cresceu e se desenvolveu, que pode ser visto inclusive como sua cidade ou seu País.
E como é possível levar o empreendedorismo antropológico às escolas?
Realização de trabalho voluntário, promoção de atividades sociais ou culturais que coloquem a comunidade escolar e de seu entorno em diálogo para se conhecerem, valorizarem suas histórias, descobrirem pontos positivos, negativos e o que pode ser feito para melhorar a vida de todos dentro daquele microcosmo. Estes são os primeiros passos para colocar a escola nesta nova direção.
Mas não é somente isso. A escola precisa, na realidade, passar por uma profunda transformação para se adaptar aos novos tempos e reunir o ferramental necessário para formar jovens preparados para assumir o protagonismo de suas vidas, tendo todas as competências cognitivas básicas, socioemocionais e digitais necessárias ao cidadão do futuro.
E que transformações são estas que devemos vivenciar na Educação?
Há tempos falamos que a educação bancária, organizada para atender a sociedade industrial, já não faz mais sentido. Esta fazia sentido quando éramos formados para ter uma única profissão ao longo da vida, onde todo o conhecimento que adquiríamos no ensino superior era suficiente para sustentar nossa trajetória profissional e onde o reconhecimento e respeito a uma hierarquia determinava os valores de uma sociedade.
Hoje, com o mundo em plena ebulição, com o advento da 4ª revolução industrial e, para muitos, com a chegada de uma nova Era, a da Inteligência Artificial, a sociedade e a economia passam a ter uma nova configuração, com novos princípios, valores e oportunidades de geração de renda. Reflete-se também na forma como as crianças e adolescentes estão neste mundo, como eles aprendem, quais são seus interesses e quais oportunidades terão em um futuro próximo.
Dizem que até 2040 muitas das profissões que irão existir ainda não foram inventadas. O ser humano cada vez mais dependerá das tecnologias digitais para se relacionar com o mundo, deverá saber utilizá-las não somente como consumidores, mas também como produtores de novos conhecimentos. Cada vez vai ser mais simples programar e inventar “coisas” para resolver problemas do mundo real.
Ter as competências digitais e as socioemocionais será tão importante quanto ter as competências cognitivas básicas. A BNCC (Base Nacional Comum Curricular) traz esta visão quando apresenta as 10 Competências Gerais: Conhecimento, Pensamento Científico, Crítico e Criativo, Repertório Cultural, Comunicação, Cultura Digital, Trabalho e Projeto de Vida, Argumentação, Autoconhecimento e Autocuidado, Empatia e Cooperação, Responsabilidade e Cidadania.
Na BNCC não há uma orientação específica relacionada as competências digitais. No entanto, as tecnologias digitais são recursos importantes em diferentes momentos dos projetos escolares para pesquisa, estabelecer relacionamentos, buscar parcerias e divulgar resultados.
Por meio destas oportunidades os alunos desenvolvem competências digitais alinhadas às recomendações apresentadas pelo currículo inglês que organiza em três áreas e dois graus de dificuldade para serem trabalhados ao longo de toda a educação básica e de forma transversal.
Programação, Tecnologia da Informação e Alfabetização Digital devem ser o foco do trabalho, envolvendo como principais atividades: aprender a programar, fazer boas pesquisas, trabalhar em comunidades virtuais de aprendizagem, utilizar softwares de produtividade, navegar de forma segura e respeitar a cultura digital.
Para construir um circulo virtuoso que prepare a escola para formar jovens dentro da cultura do empreendedorismo antropológico, todas estas competências devem ser desenvolvidas através de metodologias ativas, priorizando especialmente a aprendizagem baseada em projetos, criando oportunidades aos alunos de pensarem em como resolver problemas do mundo real, relacionados à sua história ou à sua cultura, exercerem a autonomia, estimular a criatividade, fazerem uso de tecnologias digitais, terem tempo determinado para a tarefa e oportunidades de avaliação permanente.
O latim professore quer dizer pessoa que professa, que declara, que manifesta algum saber. Já aluno tem procedência no verbo latino alere, referente a alimentar, nutrir, sustentar; ele é um ‘afilhado’ do professor. O próprio significado da palavra professor já não faz completo sentido, cabendo melhor, acredito, a designação educador, com origem no latim educator - quem alimenta, orienta, prepara, e que também carrega na sua formação o verbo ducare, cujo significado é ‘conduzir para fora’.
Dentro desta visão e considerando este novo cenário pedagógico, os professores também precisam desenvolver novas competências alinhadas com a reconstrução do universo escolar, entre elas instigar os alunos a pensar em problemas do mundo real, se relacionar com outras pessoas, fazer boas pesquisas, trabalhar bem em equipe, utilizar tecnologia digital para diferentes necessidades que se quer promover, pensar e refletir com frequência em seus problemas e nas oportunidades que pode gerar para seu bem-estar pessoal e para sua comunidade.
Preparar os cidadãos do futuro para que sejam expoentes de um novo mundo, focando não apenas na geração de riquezas, mas também, e especialmente, no desenvolvimento comunitário, na preservação da cultura, no cuidado com o meio ambiente e na valorização de uma economia de mercado mais justa para todos serão as premissas para construirmos uma escola capaz de evidenciar o empreendedorismo antropológico, que encontra eco na reflexão do consultor em educação Ken Robinson:
“Nos últimos anos, a população mundial duplicou de 3 bilhões de habitantes para mais de 7. Somos o maior número de habitantes que jamais habitou a Terra. As tecnologias digitais estão transformando nossa forma de trabalhar, jogar, pensar, sentir e nos relacionar. Essa revolução está apenas começando! Os velhos sistemas educativos não foram criados com este mundo em mente. Melhorá-los a partir dos sistemas tradicionais não resolverá os desafios que enfrentamos na atualidade. Não temos que repará-lo, e sim transformá-lo”.