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Por uma educação mais humanizada

"Educação é ajudar as pessoas a lidar com a humanidade delas e, quem sabe, a melhorar nossa imaginação moral e nossa empatia como seres humanos", reflete Pondé

(patpitchaya/Getty Images)
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marianamartucci

Publicado em 10 de março de 2021 às 14h58.

Última atualização em 10 de março de 2021 às 19h48.

Confesso. Nunca fui uma aluna exemplar. Tampouco tinha grande apreço pela escola. Como a maioria dos adolescentes, achava aquilo tudo muito enfadonho, sem graça, sem nenhum propósito.

Hoje, passados 40 anos que estive nos bancos escolares, tenho clareza que faltaram oportunidades onde eu pudesse vivenciar desafios, resolver problemas do mundo real, estimular minha criatividade, o meu poder de comunicação, a solidariedade, dentre outras muitas competências importantes para me sentir parte de um processo de aprendizagem significativa.

Sentia falta de momentos em que eu pudesse enxergar, nem que fosse de uma forma muito superficial, toda a complexidade que as relações estabelecidas em uma sociedade nos trazem. Uma vez escutei que em muitos momentos os estudantes são apáticos, que não querem participar, quando, na verdade, o que faltam são mais oportunidades de engajá-los em situações que eles jamais tiveram a oportunidade de vivenciar!

Todo esse movimento e essa inquietude fez com que o destino me levasse a ser professora! O ingresso na Faculdade de Matemática não foi uma escolha e sim destino, dentre alguns dos vários desafios que a vida me apresentou, mas que com toda a minha irreverência e determinação, se transformou na maior oportunidade da minha jornada: militar por uma educação de qualidade, que faça sentido para cada estudante e que o prepare para um mundo que não é mais VUCA ( V olatile – volátil, U ncertain - incerto, C omplex - complexo e A mbiguous - ambíguo), mas, como dito hoje, um mundo BANI ( B rittle - Frágil), A nxious - Ansioso), N onlinear - Não linear e I ncomprehensible - Incompreensível).

Foi como docente que tive a oportunidade de conhecer a Educação a partir de outra perspectiva, cumprindo a difícil, mas recompensadora, missão de ser mestre, de ensinar, mentorar, dar e receber conhecimento. Sim, receber, porque foi ali, no dia a dia da sala de aula, que entendi o verdadeiro papel da Educação, que não se resume a ensinar teoremas e equações, mas, sobretudo, transformar vidas, abrir janelas, germinar talentos a partir de vocações natas.

Hoje, vejo que não estava equivocada quando decidi promover estratégias de ensino que colocassem os estudantes no centro do processo e como protagonistas na solução de problemas do mundo real. Muito menos quando decidi influir para que outros docentes começassem a trabalhar a partir dessa perspectiva.

O relatório The Future of Jobs 2020 traz muitas das justificativas para promover uma revisão pedagógica. Divulgado em outubro de 2020 pelo Fórum Econômico Mundial, aponta que 40% das habilidades essenciais demandadas dos profissionais de hoje irão mudar em até 5 anos. Entre as 10 principais estão habilidades relacionadas a fatores como transformação digital, autogestão, resolução de problemas complexos, pensamento analítico e inovação, criatividade, originalidade e iniciativa, autonomia tecnológica e capacidade de lidar com pessoas. “Desenvolver competências empreendedoras nas escolas será um diferencial para a carreira desses estudantes”, também pontua a empresária Luiza Helena Trajano em entrevista ao Estadão.

A lista de habilidades técnicas e socioemocionais necessárias para ganhar autonomia ao deixar o núcleo familiar e conquistar um lugar no mercado de trabalho é conhecida, mas quando analisamos a grade curricular das escolas brasileiras, mesmo com a nova roupagem apresentada pela BNCC (Base Nacional Comum Curricular) e pelo Novo Ensino Médio, é fácil constatar que ainda temos um longo caminho pela frente, uma lacuna que precisa ser sanada de imediato, especialmente considerando que, cada vez mais, os desafios comportamentais superam os desafios técnicos, o que pode se reverter em baixa autoestima, inclusive com consequências mais graves, tais como crises de depressão e ansiedade.

Uma pesquisa da consultoria Consumoteca revelou que 35% da geração Z no Brasil já sofreu depressão em algum momento da vida; 55% se identificam como sendo “ansiosos” ou “muito ansiosos”. Uma das principais razões apontadas para o alto nível de ansiedade é a dificuldade de lidar com situações complexas e enfrentar desafios.

Essa não é mais uma regra global. Há muitos países em que a Educação já não é mais a mesma, sendo capaz de priorizar a formação humana, cidadã e social. A Finlândia é um caso clássico. Mas, por aqui, é preciso reconhecer que ainda há um enorme abismo entre o que as empresas procuram e o que nossas escolas entregam, entre a vida real e a vida escolar.

A BNCC foi um importante passo, mas cabe aos professores, gestores, pais e mães se unirem para virar esta página, aprendendo juntos a construir uma nova pedagogia, focada na essência do ser humano, sua existência social e seu lugar no mundo.

Perguntado sobre "qual o verdadeiro sentido da educação?", Luiz Felipe Pondé reflete: "Educação é ajudar as pessoas a lidar com a humanidade delas e, quem sabe, a melhorar nossa imaginação moral e nossa empatia como seres humanos". E em entrevista concedida há 20 anos, o sul-africano Seymour Papert, criador do Logo, linguagem de programação para educação, já antecipava o que os cidadãos do futuro precisam saber: lidar com desafios.

“Precisam saber como enfrentar um problema inesperado para o qual não há uma explicação preestabelecida. Precisamos adquirir habilidades necessárias para participar da construção do novo ou então nos resignarmos a uma vida de dependência. A verdadeira habilidade competitiva é a habilidade de aprender. Não devemos aprender a dar respostas certas ou erradas, temos de aprender a solucionar problemas”, respondeu.

Ainda vivemos muitas incertezas sobre o futuro. Se o ensino voltará a ser 100% presencial, se será híbrido ou mais online, se vai usar mais ou menos tecnologia, esta ou aquela ferramenta, esta ou aquela pedagogia, o que importa é qual educação queremos para nossos estudantes.

Com a triste realidade de boa parte das escolas ainda fechadas ou operando em capacidade limitada, a pandemia nos fez refletir que esta geração tem uma oportunidade ímpar, sem precedentes, de ter acesso a uma nova educação, uma educação que, fazendo uso da Internet, ferramenta mais poderosa que temos no momento, seja capaz de estabelecer novos vínculos, oportunidades de trabalhar entre pares e em rede, ultrapassando os limites dos muros da escola, ampliando a visão de mundo, o senso de justiça, a empatia e o amor ao próximo.

A melhoria da qualidade da educação é uma questão urgente e somente com um novo olhar, muita disposição, coragem e envolvimento de cada um que faz parte desse ecossistema, iremos reverter os resultados educacionais, permitindo que nossos estudantes tenham uma educação mais humanizada e sejam capazes de ter e perseguir seus sonhos.

(*) Diretora do Instituto Crescer e Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP)

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Confesso. Nunca fui uma aluna exemplar. Tampouco tinha grande apreço pela escola. Como a maioria dos adolescentes, achava aquilo tudo muito enfadonho, sem graça, sem nenhum propósito.

Hoje, passados 40 anos que estive nos bancos escolares, tenho clareza que faltaram oportunidades onde eu pudesse vivenciar desafios, resolver problemas do mundo real, estimular minha criatividade, o meu poder de comunicação, a solidariedade, dentre outras muitas competências importantes para me sentir parte de um processo de aprendizagem significativa.

Sentia falta de momentos em que eu pudesse enxergar, nem que fosse de uma forma muito superficial, toda a complexidade que as relações estabelecidas em uma sociedade nos trazem. Uma vez escutei que em muitos momentos os estudantes são apáticos, que não querem participar, quando, na verdade, o que faltam são mais oportunidades de engajá-los em situações que eles jamais tiveram a oportunidade de vivenciar!

Todo esse movimento e essa inquietude fez com que o destino me levasse a ser professora! O ingresso na Faculdade de Matemática não foi uma escolha e sim destino, dentre alguns dos vários desafios que a vida me apresentou, mas que com toda a minha irreverência e determinação, se transformou na maior oportunidade da minha jornada: militar por uma educação de qualidade, que faça sentido para cada estudante e que o prepare para um mundo que não é mais VUCA ( V olatile – volátil, U ncertain - incerto, C omplex - complexo e A mbiguous - ambíguo), mas, como dito hoje, um mundo BANI ( B rittle - Frágil), A nxious - Ansioso), N onlinear - Não linear e I ncomprehensible - Incompreensível).

Foi como docente que tive a oportunidade de conhecer a Educação a partir de outra perspectiva, cumprindo a difícil, mas recompensadora, missão de ser mestre, de ensinar, mentorar, dar e receber conhecimento. Sim, receber, porque foi ali, no dia a dia da sala de aula, que entendi o verdadeiro papel da Educação, que não se resume a ensinar teoremas e equações, mas, sobretudo, transformar vidas, abrir janelas, germinar talentos a partir de vocações natas.

Hoje, vejo que não estava equivocada quando decidi promover estratégias de ensino que colocassem os estudantes no centro do processo e como protagonistas na solução de problemas do mundo real. Muito menos quando decidi influir para que outros docentes começassem a trabalhar a partir dessa perspectiva.

O relatório The Future of Jobs 2020 traz muitas das justificativas para promover uma revisão pedagógica. Divulgado em outubro de 2020 pelo Fórum Econômico Mundial, aponta que 40% das habilidades essenciais demandadas dos profissionais de hoje irão mudar em até 5 anos. Entre as 10 principais estão habilidades relacionadas a fatores como transformação digital, autogestão, resolução de problemas complexos, pensamento analítico e inovação, criatividade, originalidade e iniciativa, autonomia tecnológica e capacidade de lidar com pessoas. “Desenvolver competências empreendedoras nas escolas será um diferencial para a carreira desses estudantes”, também pontua a empresária Luiza Helena Trajano em entrevista ao Estadão.

A lista de habilidades técnicas e socioemocionais necessárias para ganhar autonomia ao deixar o núcleo familiar e conquistar um lugar no mercado de trabalho é conhecida, mas quando analisamos a grade curricular das escolas brasileiras, mesmo com a nova roupagem apresentada pela BNCC (Base Nacional Comum Curricular) e pelo Novo Ensino Médio, é fácil constatar que ainda temos um longo caminho pela frente, uma lacuna que precisa ser sanada de imediato, especialmente considerando que, cada vez mais, os desafios comportamentais superam os desafios técnicos, o que pode se reverter em baixa autoestima, inclusive com consequências mais graves, tais como crises de depressão e ansiedade.

Uma pesquisa da consultoria Consumoteca revelou que 35% da geração Z no Brasil já sofreu depressão em algum momento da vida; 55% se identificam como sendo “ansiosos” ou “muito ansiosos”. Uma das principais razões apontadas para o alto nível de ansiedade é a dificuldade de lidar com situações complexas e enfrentar desafios.

Essa não é mais uma regra global. Há muitos países em que a Educação já não é mais a mesma, sendo capaz de priorizar a formação humana, cidadã e social. A Finlândia é um caso clássico. Mas, por aqui, é preciso reconhecer que ainda há um enorme abismo entre o que as empresas procuram e o que nossas escolas entregam, entre a vida real e a vida escolar.

A BNCC foi um importante passo, mas cabe aos professores, gestores, pais e mães se unirem para virar esta página, aprendendo juntos a construir uma nova pedagogia, focada na essência do ser humano, sua existência social e seu lugar no mundo.

Perguntado sobre "qual o verdadeiro sentido da educação?", Luiz Felipe Pondé reflete: "Educação é ajudar as pessoas a lidar com a humanidade delas e, quem sabe, a melhorar nossa imaginação moral e nossa empatia como seres humanos". E em entrevista concedida há 20 anos, o sul-africano Seymour Papert, criador do Logo, linguagem de programação para educação, já antecipava o que os cidadãos do futuro precisam saber: lidar com desafios.

“Precisam saber como enfrentar um problema inesperado para o qual não há uma explicação preestabelecida. Precisamos adquirir habilidades necessárias para participar da construção do novo ou então nos resignarmos a uma vida de dependência. A verdadeira habilidade competitiva é a habilidade de aprender. Não devemos aprender a dar respostas certas ou erradas, temos de aprender a solucionar problemas”, respondeu.

Ainda vivemos muitas incertezas sobre o futuro. Se o ensino voltará a ser 100% presencial, se será híbrido ou mais online, se vai usar mais ou menos tecnologia, esta ou aquela ferramenta, esta ou aquela pedagogia, o que importa é qual educação queremos para nossos estudantes.

Com a triste realidade de boa parte das escolas ainda fechadas ou operando em capacidade limitada, a pandemia nos fez refletir que esta geração tem uma oportunidade ímpar, sem precedentes, de ter acesso a uma nova educação, uma educação que, fazendo uso da Internet, ferramenta mais poderosa que temos no momento, seja capaz de estabelecer novos vínculos, oportunidades de trabalhar entre pares e em rede, ultrapassando os limites dos muros da escola, ampliando a visão de mundo, o senso de justiça, a empatia e o amor ao próximo.

A melhoria da qualidade da educação é uma questão urgente e somente com um novo olhar, muita disposição, coragem e envolvimento de cada um que faz parte desse ecossistema, iremos reverter os resultados educacionais, permitindo que nossos estudantes tenham uma educação mais humanizada e sejam capazes de ter e perseguir seus sonhos.

(*) Diretora do Instituto Crescer e Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP)

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