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Por que o Brasil não é a Venezuela. E as previsões inúteis, segundo Keynes

"O Brasil experimenta o fenômeno da histerese, um recurso que os economistas trazem da Física. Trata-se de um sistema que conserva as suas características na inexistência de um novo estímulo"

Bandeira do Brasil no Rio de Janeiro (Cesar Okada/Getty Images)
Bandeira do Brasil no Rio de Janeiro (Cesar Okada/Getty Images)
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Coriolano Gatto

Publicado em 1 de março de 2021 às, 15h45.

John Maynard Keynes (1883-1946) ficou conhecido por suas teorias que tiveram enorme impacto em políticas públicas, refinando a compreensão dos ciclos econômicos com um olhar inovador no entendimento do papel do Estado e na necessidade da busca do bem-estar à população. Keynes, um escritor elegante, era irônico com os seus pares e, por vezes, cético com a engrenagem do chamado mercado. “Os economistas atribuem-se uma tarefa fácil demais, inútil demais se, nas estações tempestuosas, a única coisa que conseguem prever é que, quando a tempestade passar, o oceano estará calmo”.

A despeito da farpa de Keynes, o Brasil está longe, muito distante dessa calmaria, mas seria alarmante dizer que há um terremoto à vista em razão dos números elevados causados pela Covid-19 ou por atos irracionais do governo federal que, de forma abrupta, tomou decisões que ainda causam reflexos em toda a economia, especialmente na acentuada desvalorização do real. O habilidoso presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), repetiu em uma conversa durante jantar com banqueiros, semana passada, que ocorreu “uma bolha histérica”  em razão da ingerência do governo na estatal Petrobras, ainda que o mesmo governo tenha estimulado a aprovação do Banco Central independente, e o início do difícil processo de privatização da Eletrobras e dos Correios.  “É fácil laçar um touro dentro de um curral. Experimenta soltar ele”, disse Lira, com a sabedoria de quem é pecuarista.

A economia passou por um teste de estresse com todo o tipo de boato de mudanças no Ministério e a troca de cargos relevantes do governo. Aquele Estado forte, autoritário como nos tempos da ditadura civil militar, veio à tona: um tornado destruidor, arrastando casas, vilas e cidades. Por um átimo de tempo, é inevitável a comparação com o clássico livro “Leviatã”, de Hobbes, “a Bíblia do pensamento”, segundo Elias Canetti em seu clássico ensaio “Sobre os escritores”. O “Leviatã” faz parte dessa coleção de livros “em que afiamos o espírito e não aqueles que nos paralisam porque já foram há muito sugados e esgotados. O que sei com certeza é que esta “Bíblia” não conterá nem a “Política”, de Aristóteles” nem “O Príncipe”, de Maquiavel, e nem o “Contrato Social”, de Russeau”.

O Brasil experimenta o fenômeno da histerese, um recurso que os economistas trazem da Física. Trata-se de um sistema que conserva as suas características na inexistência de um novo estímulo. Na economia, a analogia se depara com um fantasma que a ronda desde meados de 2014: ausência de crescimento e desemprego alto. O choque que a desviou do pleno emprego _ objetivo de toda a política econômica desde que haja crescimento em bases sustentáveis _ causará efeitos duradouros. Como na Física, é a capacidade de preservar uma deformação mesmo com o estímulo.

O Estado legiferante, o Leviatã, voltou com intervenções desnecessárias, enquanto os agentes econômicos aguardam com avidez a aprovação da PEC Emergencial, que visa, além de garantir por quatro meses o auxílio emergencial, à criação de gatilhos, que possibilitem ao governo estabilizar suas contas se houver ameaça ao cumprimento do teto de gastos. Com ela, será possível garantir uma renda mínima aos mais pobres além do Bolsa Família e, ao mesmo tempo, dar segurança à política fiscal, evitando um desarranjo desnecessário.

O Brasil, mesmo diante de números alarmantes pelo novo coronavírus, sempre surpreende dado o crescente mercado de capitais e a criação de novas empresas, negócios inovadores, que não dependem do Estado.  A exemplo do início da pandemia, ano passado, há sempre previsões catastrofistas, com queda do PIB e dólar perto de R$ 6. Parafraseando Keynes, vão errar as previsões, mesmo com todos os desatinos do governo. E não são poucos.

Há quase um consenso entre os especialistas em políticas sociais que o valor a ser dado no auxílio emergencial e Bolsa Família não pode ser inferior a R$ 70 bilhões. Há quem fale até em cifras maiores. E o seu direcionamento deve ser mais elevado para famílias com crianças, que, no futuro, devolverão o investimento à sociedade por meio do emprego e do recolhimento de impostos. Sem esquecer dos idosos, como defende o competente Ricardo Paes De Barros, o PB. É preciso ter pressa na concessão dos benefícios. A extrema pobreza deu um grande salto em janeiro com a extinção do auxílio. Basta lembrar que os mais pobres em 2019 tiveram ganhos de mais de 100% de renda em 2020. E mesmo famílias que não eram pobres, foram beneficiadas pelo auxílio.

Cálculos da FGV Ibre indicam que a PEC Emergencial tem impacto superior a R$ 150 bilhões em 10 anos, o que compensaria em 20 meses o auxílio em um valor bem menor. E o Insper defende um Bolsa Família com maior foco nas crianças, tendo em vista o enorme potencial de retorno.

Ninguém imagina que programas sociais robustos não venham acompanhados de reformas que desidratem as distorções causadas pelo inchaço do setor público e estimulem o investimento em infraestrutura, o que aumenta a produtividade e dá todas as garantias para a nova safra recorde de grãos que vem pela frente. O país, ainda que os governantes se esforcem, traz boas surpresas, sem as mágicas do genial Houdini, o mestre do ilusionismo, nem as atrocidades de regimes autoritários do Leste Europeu. Insisto: é uma covardia o aumento de impostos no Estado de São Paulo, com forte impacto nos pequenos negócios.

Os investidores estrangeiros que deixaram a bolsa e, com isso, ganharam manchetes de jornais, estavam em busca de um fato para embolsar lucros depois da subida vertiginosa do mercado até o início deste ano, depois de amargarem
grandes perdas no início da pandemia. O Brasil, mesmo com todas as incongruências, está muito longe de ser uma Venezuela ou uma Argentina dada a musculatura do mercado consumidor e de um aparato institucional que não dará voz aos “fortões”, que idolatram uma ditadura que sequer conheceram em 1968.

É preciso interpretar os fatos como eles são, olhar para os mercados e a economia real, captando o que significa a convivência com um regime sujeito a solavancos, um Congresso Nacional forte e um Judiciário altivo e ativo _ em alguns momentos com doses desnecessárias de pirotecnia. Registre-se a grande fila de Ofertas Iniciais de Ações, os IPOs, na bolsa de valores, um indicador de solidez.

“Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo.  E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações. Em outras palavras: quase nada  do que acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da informação”.

O trecho do clássico ensaio “O Narrador”, de Walter Benjamin (1892-1940), mereceria uma moldura.

O Brasil jamais será um país de segunda classe. Sobrevivemos a inúmeras crises cambiais, políticas públicas irresponsáveis, hiperinflação e rebeliões militares, verdadeiras quarteladas. E deixamos para trás, como as brumas, o regime totalitário, que tão bem serviu a entes do mundo civil. Nem preciso falar de nomes, cara leitora e caro leitor.

O historiador e jornalista inglês Paul Johnson acendia todos os alertas para os chamados erros lógicos, tão comum em interpretações desconectadas da realidade ou, pior, ditas por intelectuais desonestos:

“Eles fazem sentido, mas podem estar errados”.

*Coriolano Gatto é jornalista e colunista da EXAME.