Realidade virtual: pesquisador do Brainn Alexandre Brandão apresentou um conjunto de softwares de RV voltados à reabilitação motora e neurofuncional (David Becker/Getty Images)
Da Redação
Publicado em 18 de abril de 2017 às 09h44.
Tecnologias originalmente voltadas ao entretenimento, como jogos eletrônicos, sensores de reconhecimento de gestos e óculos de realidade virtual (RV), podem ajudar a tornar as sessões de reabilitação mais divertidas e eficazes, auxiliando pacientes com limitações motoras a recuperar, pelo menos em parte, sua autonomia.
Dois projetos com esse objetivo foram apresentados no final de março durante o 4th BRAINN Congress, organizado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) pelo Instituto Brasileiro de Neurociência e Neurotecnologia (Brainn), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPIDs) apoiados pela FAPESP.
Em um simpósio satélite intitulado “Virtual Reality and Neurofunctional Recovery”, o pesquisador do Brainn Alexandre Brandão apresentou um conjunto de softwares de RV voltados à reabilitação motora e neurofuncional. A proposta é tornar a tecnologia mais acessível de modo a beneficiar pacientes que necessitam de tratamentos de reabilitação física de média e longa duração, como é o caso de quem sofre acidente vascular cerebral (AVC).
“Estão em fase de desenvolvimento dois aplicativos de RV para smartphones: o e-Street, que permite ao usuário explorar virtualmente um ambiente urbano e situações como atravessar ruas; e o e-House, que por enquanto possibilita caminhar pela área externa de uma casa para treinar prevenção de quedas durante a simulação de subida e descida de escadas. Em breve, também será possível acessar cômodos internos e simular atividades de vida diária, como abrir uma gaveta ou armário. Além do desenvolvimento constante da interface dos aplicativos, estamos investigando qual a melhor forma para interagir com alguns objetos dentro do ambiente virtual”, contou Brandão, idealizador do projeto e pós-doutorando no Instituto de Física da Unicamp, sob supervisão da professora Gabriela Castellano.
De acordo com o pesquisador, os softwares convencionais de RV para smartphones apenas levam o usuário por um tour virtual pré-definido. Ou seja, é possível direcionar o olhar para onde se deseja navegar, mas não há um controle efetivo sobre o ambiente virtual. Já os programas desenvolvidos na Unicamp, com apoio da FAPESP, possibilitam ao usuário avançar dentro do ambiente virtual à medida que ele movimenta as pernas para simular passos, mas sem sair do lugar.
Para isso, o grupo está desenvolvendo, além dos softwares, também equipamentos de hardware com a ajuda de impressão 3D. Para caminhar pela e-Street, por exemplo, dois sensores de ultrassom são posicionados na região do tornozelo do usuário. Esses sensores funcionam como um sonar capaz de registrar qualquer movimento que simule uma caminhada e enviam o registro, por cabos, para uma pequena placa controladora (conhecida como arduíno) fixada na cintura do usuário. O arduíno, por sua vez, se comunica via Bluetooth com o smartphone, inserido nos óculos de RV. Durante a navegação na e-Street, a direção para explorar as diversas ruas da cidade virtual é determinada pelo movimento da cabeça e rotação de todo o corpo.
Segundo Brandão, os primeiros testes com pacientes que sofreram AVC começaram em março. Embora esse seja o principal e mais desafiador público do projeto, o pesquisador acredita que a tecnologia também poderá beneficiar idosos que sofrem de desorientação espacial (comum em muitos tipos de transtornos cognitivos), ajudar na prevenção de quedas e, possivelmente, na inibição da dor ocasionada por atividade motora.
“Muitas quedas acontecem quando o idoso precisa dividir sua atenção entre uma tarefa motora, como subir escada ou desviar de um objeto na rua, e uma tarefa cognitiva, como olhar para a vitrine de uma loja ou lembrar do trajeto até sua residência. Com esses softwares, será possível treinar a atenção associada ao estímulo motor e antecipar situações que poderiam por em risco a integridade física”, explicou.
Além disso, portadores de fibromialgia e pessoas de todas as idades que apresentam limitações motoras – seja em decorrência de fraturas, cirurgias, lesão medular ou qualquer outro tipo de trauma – podem se beneficiar com sessões de fisioterapia e terapia ocupacional (que costumam envolver tarefas repetitivas) mais lúdicas e estimulantes.
Na avaliação de Brandão, porém, nem todos os pacientes estão preparados para um ambiente altamente imersivo de realidade virtual como o proporcionado pelo uso dos óculos acoplados ao smartphone. Algumas pessoas podem sentir dor de cabeça, tontura e até mesmo enjoo ao usar o equipamento.
Nesses casos, é possível recorrer a uma outra série de aplicativos conhecida como GestureCollection, que Brandão começou a desenvolver em 2012 quando ainda cursava o doutorado na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
Entre eles há o GestureMaps, que possibilita a navegação do usuário a partir da perspectiva do Google Street View. Dessa forma, é possível caminhar por grande parte das cidades do planeta sem sair do quarto ou da clínica de reabilitação.
No GestureChess, o usuário pode controlar um jogo de xadrez com o movimento das mãos. O funcionamento é parecido com o do GesturePuzzle, um quebra-cabeças que permite ao usuário arrastar peças virtuais de um lado para o outro da tela. Já no GestureChair o objetivo é percorrer um labirinto e coletar bolinhas utilizando o movimento dos braços.
Há ainda o RehabGesture, um software voltado ao profissional de saúde encarregado da reabilitação, que pode ser um fisioterapeuta ou terapeuta ocupacional. O programa permite mensurar, em tempo real, os movimentos das articulações do ombro e do cotovelo durante a interação com ambientes virtuais e ainda, registrar os dados para posterior análise e avaliação das dificuldades, além de servir como um banco de dados para quantificar o progresso do paciente.
“Os programas da GestureCollection podem ser instalados em qualquer computador acoplado a sensores do tipo Kinect [o mesmo usado no console de videogame Xbox], que custam em torno de R$ 300”, disse Brandão.
O paciente deve ser posicionado em frente ao sensor, enquanto o profissional de saúde comanda o computador e estabelece os exercícios a serem feitos pelo usuário e o grau de dificuldade. As imagens podem ser acompanhadas pelo monitor, pela TV ou projetadas na parede.
Testes preliminares com os aplicativos estão em andamento no Hospital de Clinicas da Unicamp, sob supervisão do neurologista Li Li Min, e na unidade Mogi Mirim da Rede Lucy Montoro, centro de reabilitação para pacientes com deficiências físicas incapacitantes, motoras e sensório-motoras. Por enquanto, os softwares têm sido usados apenas por especialistas com o objetivo de testar a usabilidade e sugerir melhorias.
Também já foram realizados testes iniciais em ambiente escolar por meio de colaboração com o curso de Licenciatura em Educação Especial da UFSCar e em mais três departamentos: Gerontologia, Terapia Ocpacional e Fisioterapia. Também há projetos em desenvolvimento na Faculdade de Educação Física (FEF) da Unicamp.
Parte da pesquisa conta com a colaboração de Diego Roberto Colombo Dias, atualmente é professor adjunto na Universidade Federal de São João Del Rei (UFSJ). Pedidos de registros para cinco dos softwares desenvolvidos já foram depositados para análise no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI). Segundo informou Brandão, o registro do e-House foi deferido pelo INPI em 2016.
Ainda durante a programação do 4th BRAINN Congress, o pesquisador Glauco Caurin, da Escola de Engenharia de São Carlos (EESC) da Universidade de São Paulo (USP), apresentou sua linha de pesquisa voltada ao desenvolvimento de jogos eletrônicos e membros robóticos que funcionam como ferramentas auxiliares da fisioterapia.
O trabalho é desenvolvido no âmbito do Núcleo de Estudos Avançados em Reabilitação (NEAR), coordenado pela professora da Faculdade de Medicina da USP Linamara Rizzo Battistella.
“O robô atua como um joystick sofisticado. O jogo determina quais movimentos o paciente tem de fazer para alcançar um determinado objetivo – pode ser coletar uma fruta ou impedir que uma bolinha caia de uma plataforma, por exemplo. Quando o paciente não consegue fazer a ação sozinho, o robô aguarda algumas frações de segundo e, então, o auxilia”, contou Caurin.
Como explicou o pesquisador, o grau de ajuda que o robô oferece pode ser modulado pelo fisioterapeuta ou fisiatra responsável pelo tratamento.
A ideia é que o auxílio vá diminuindo à medida que o tratamento avance. Em um dado momento, o robô pode até mesmo oferecer resistência ao movimento para aumentar o tônus muscular.
“O paciente tem domínio completo das ações. O robô sabe antecipadamente qual é o movimento que precisa ser feito para ganhar o jogo, mas, se o paciente não tiver a intenção de fazer essa ação, nada acontece. Ele pode perder de propósito, se quiser. Nossa preocupação é desenvolver o robô de modo que ele não possa machucar ninguém. Em um dos testes de laboratório, mostramos que a máquina tem sensibilidade suficiente para sair do caminho se empurrada com algo frágil, como uma batata chips”, contou Caurin.
O projeto em desenvolvimento na USP de São Carlos tem como foco a reabilitação de punhos e tornozelos, embora o grupo também já tenha criado robôs para auxiliar movimentação de ombros e até um exoesqueleto capaz de auxiliar a movimentação da cintura para baixo.
“O tornozelo proporciona aproximadamente 50% da energia necessária para caminhar. Os flexores plantares do tornozelo contribuem com até 50% de trabalho mecânico positivo em um único passo para permitir a propulsão para frente. Se conseguirmos recuperar esse movimento, portanto, já é uma grande conquista. Qualquer ganho de independência pode melhorar muito as condições de vida do paciente e aliviar a carga de familiares”, comentou o pesquisador.
De acordo com Caurin, estudos internacionais já comprovaram – particularmente no caso dos membros superiores – que a fisioterapia auxiliada por robôs oferece vantagens em relação aos métodos clássicos de reabilitação.
“Com o robô é possível realizar quase dez vezes mais movimentos em uma sessão do que com a ajuda de um fisioterapeuta, pois o profissional também entra em fadiga. Além disso, o videogame ajuda a tornar a atividade mais estimulante. Ainda estamos trabalhando para tornar os jogos menos estáticos e repetitivos, possibilitando ao paciente evoluir de nível”, disse Caurin.
Longe de perder o protagonismo no processo de reabilitação, os profissionais de saúde passam a atuar como supervisores de todo processo.
Para auxiliá-los nessa tarefa, o grupo da USP está desenvolvendo programas de computadores capazes de medir objetivamente variáveis como amplitude de movimento, aceleração e força.
As informações são coletadas enquanto o paciente faz o exercício e são armazenadas ao longo de todo tratamento para mostrar a evolução.
Os protótipos de membros robóticos em estágio mais avançados de desenvolvimento já estão sendo testado em pacientes por meio de uma colaboração com pesquisadores da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP-USP).
Este conteúdo foi originalmente publicado no site da Agência Fapesp.