Ciência

A carne do futuro poderá ser 100% carne e 0% animal. Servido?

Uma nova onda de startups está reinventando o negócio bilionário da proteína, com promessa de mais sustentabilidade à mesa e livre de sofrimento animal

Memphis Meats: a startup criou tiras de frango em laboratório (Memphis Meats/Divulgação)

Memphis Meats: a startup criou tiras de frango em laboratório (Memphis Meats/Divulgação)

Vanessa Barbosa

Vanessa Barbosa

Publicado em 7 de abril de 2017 às 10h47.

Última atualização em 6 de maio de 2019 às 18h56.

São Paulo - Se você se interessou por essa matéria, altas são as chances de: a) você ser um comedor “hardcore” de proteína animal; b) você ser um vegetariano ou ativista dos direitos dos animais; c) você ser uma pessoa atenta à alimentação, talvez um “flexitariano” em busca de hábitos mais balanceados à mesa (“nem só carne, nem só vegetal”), ou d) quem sabe apenas um curioso sobre inovações científicas preocupado com o futuro do planeta.

Independentemente da sua motivação, há uma microrrevolução em curso que pretende reinventar a produção e o consumo de proteína no mundo e, de quebra, agradar a todos os paladares. Sem matar, a carne do futuro poderá vir do laboratório, ao invés de fazendas e abatedouros.

Saca aquela picanha suculenta do churrasco ou aquelas almôndegas da macarronada de domingo? É o mesmo alimento, só que cultivado em um ambiente estéril e controlado, sem que nenhum animal tenha sido morto no processo, e sem os impactos ambientais comumente associados à agropecuária convencional.

Atentas às oportunidades de mercado, uma série de startups estão capitaneando essas inovações. Em março, a Memphis Meats, sediada em São Francisco, Califórnia, promoveu a degustação de suas primeiras tiras de frango e pato cultivadas em laboratório, apenas um ano depois de ter causado frisson com o lançamento das primeiras almôndegas “sem sofrimento”, em fevereiro de 2016.

Frango cultivado em laboratório da startup Memphis Meat

Frango cultivado em laboratório da startup Memphis Meat (Memphis Meat/Reprodução)

Em Israel, onde 8% da população se diz vegetariana e 5% vegana (não comem carne, mas também evitam qualquer produto à base de animais, incluindo ovos, laticínios, mel e couro), a startup de biotecnologia Super Meat angariou, quase 230 mil dólares (cerca de 720 mil reais), no ano passado, em uma campanha de financiamento coletivo, o dobro do valor pleiteado para dar início ao seu projeto de cultura de carne de frango em laboratório.

O cofundador da startup, Koby Barak, ele próprio um vegano veterano e ativista dos direitos dos animais, afirmou que a carne cultivada da sua empresa será tanto kosher — preparada obedecendo aos requisitos da dieta judaica, que incluem a “não-crueldade” — quanto "vegan-friendly".

Cultivando proteína animal

A ciência por trás desse processo já está bem avançada, graças à extensa pesquisa em engenharia de tecidos no campo médico. Ao invés de cultivar tecido humano para ser transplantado como um substituto para órgãos e partes do corpo doentes ou lesionadas, usa-se amostras de células para crescer gordura e músculo com fins alimentares.

Os especialistas da área dizem que o processo é indolor. Um pedaço de tecido menor que um grão de gergelim é retirado através de um pequeno procedimento de biópsia, sem que o animal sofra ou seja abatido. As células são então colocadas em uma solução com nutrientes químicos, onde vão crescer e se multiplicar, formando o mesmo tecido do animal.

Em agosto de 2013, o primeiro hambúrguer de cultura celular, criado pelo professor Mark Post na Universidade de Maastricht, na Holanda, foi preparado e degustado ao vivo em plena televisão inglesa. Dois anos depois, uma aceleradora investiu 50 mil dólares para que as pesquisas avançassem sobre um sistema completamente livre de animais, sem necessidade de usar soro fetal bovino para cultivar o hambúrguer, como Post fez no começo.

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A expectativa é que os primeiros hambúrgueres da startup fundada pelo cientista, a Mosa Meats, cheguem aos supermercados em 2020, com sabores e texturas semelhantes aos produtos convencionais e, principalmente, a preços competitivos.

Reduzir os custos envolvidos no processo é provavelmente o obstáculo mais crítico para a comercialização da carne de laboratório. Para colocar os desenvolvimentos dos últimos anos em perspectiva, o primeiro hambúrguer de Post custou 330 mil dólares para produzir, e em poucos anos, o custo caiu para pouco menos de 40 reais a unidade, um valor bem mais realista.

Atualmente, meio quilo de carne de frango da Memphis Meat não sai por menos de 9.000 dólares [sim, 9 mil dólares], mas esse custo está caindo rapidamente a cada novo lote, disse ao site Gizmodo Steve Myrick, vice-presidente de desenvolvimento de negócios da empresa. A expectativa é de que, quando as carnes sem abate da marca chegarem às lojas até 2021, o custo coincidirá com o da carne regular encontrada hoje nos mercados.

“À medida que o número de empresas produtoras de carne vegetal e 'limpa' aumenta e as empresas crescem, as economias de escala rapidamente reduzirão os custos desses novos produtos. Eles se tornarão mais baratos do que a carne de base animal com rapidez”, diz a EXAME.com Bruce Friedrich.

Friedrich é fundador da New Crop Capital, fundo de investimento por trás do frango da Memphis Meat, e diretor executivo do The Good Food Institute (GFI), instituição que promove alternativas à carne convencional, ovos e produtos lácteos.

Segundo ele, dentro de algumas gerações, o abate de animais para alimentação será extremamente raro no mundo desenvolvido. No lugar, entraria em cena a "carne limpa", termo cunhado para designar a proteína cultivada em laboratório.

Qualquer semelhança com o termo "energia limpa" não é mera coincidência, na medida em que comunica as principais características da tecnologia — tanto os benefícios ambientais como a diminuição dos agentes patogênicos e dos resíduos de fármacos aplicados na criação de animais em massa.

Só no ano passado, a New Crop Capital investiu 5 milhões de dólares nessa seara. Este ano, até agora, foram mais 1,6 milhão de dólares e, daqui para frente, a meta do fundo é investir ao menos 5 milhões de dólares por ano em novas startups.

Friedrich não está sozinho em seu otimismo sobre a carne high tech. O bilionário Bill Gates, da Microsoft, já investiu nesse mercado e Eric Schmidt, presidente executivo da Alphabet (empresa-mãe do Google), considera os substitutos da carne umas das mais importantes tendências tecnológicas do momento. Não é de se espantar que o Vale do Silício abrigue uma lista crescente de startups empolgadas com as possibilidades desse novo mercado.

A ascensão dos "sangrentos" hambúrgueres a base de vegetais

No jogo para expandir as fronteiras da fabricação de alimentos, as carnes cultivadas em laboratório não estão sozinhas. A ascensão dos "sangrentos" hambúrgueres a base de vegetais das empresas Beyond Meat e Impossible Foods é prova disso. Engana-se quem pensa que o mercado vegetariano e vegano é o público alvo.

Hambúrguer da Beyond Meat

Hambúrguer vegetal da startup Beyond Meat. (Beyond Meat/Divulgação)

O objetivo de ambas é produzir um alimento similar em gosto, aroma e textura às opções convencionais para conquistar especialmente os comedores de carne. Para atrair a atenção do consumidor, elas adotaram abordagens radicalmente diferentes.

A Beyond Meat está empenhada em entrar nas prateleiras dos supermercados —especialmente na seção de carnes — para ficar à vista de milhares de carrinhos de compras de clientes que provavelmente nunca viram ou procuraram um hambúrguer vegetal na vida.

Seu hambúrguer é praticamente indistinguível no visual e no sabor em relação à versão bovina, exceto por ser feito de proteína de ervilha, extrato de levedura e óleo de coco. Ah, e ele também sangra, mas o sangue é de beterraba.

Já a Impossible Foods está usando os meios de comunicação social e chefs famosos para chamar a atenção. "Hoje eu provei o futuro e ele é vegano: este hambúrguer é suculento, sangrento e tem textura real como a carne, delicioso e é muito melhor para o planeta", escreveu o badalado chef nova-iorquino David Chang, fundador do Momofuku em um post no Facebook. "Eu realmente não consigo compreender seu impacto ainda...mas eu acho que isso pode mudar o jogo inteiro", acrescentou.

https://www.youtube.com/watch?v=Og4wIHdzmIE&t=4s

A Impossible Foods diz que a produção de um de seus hambúrgueres exige apenas um quarto da água e 5 por cento da terra necessária para produzir um hambúrguer convencional, e que o processo emite apenas 13% dos gases de efeito estufa emitidos pela produção convencional.

Seu grande diferencial é o molho secreto, que contém uma substância natural chamada leghemoglobina, ou "heme" para abreviar. Heme é o que torna o sangue animal vermelho, e é encontrado em todos os seres vivos, incluindo plantas. A empresa é a primeira do ramo de alimentos a adicionar heme aos seus produtos veganos em um esforço para replicar o sabor, cor e aroma da carne animal.

Até agora, o "Impossible Burger" só é encontrado em oito restaurantes nos Estados Unidos, porém a empresa anunciou que pretende abrir 1.000 restaurantes da marca até o final do ano. Para isso, está abrindo uma fábrica para produzir pelo menos 500 toneladas de hambúrgueres de carne vegetal por mês.

O fim de um império ou sua reinvenção?

Além da tecnologia de ponta, o que une as novas startups de “carne limpa” e de proteína vegetal é a preocupação com o meio ambiente. Números conservadores da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO) indicam que a agropecuária é responsável por 15% das emissões de carbono do mundo e uma das principais fontes de degradação da terra e da água.

Considerando que a demanda global por produtos pecuários deverá aumentar em 70% até 2050 para alimentar uma população estimada em 9,6 bilhões, dá para ter uma ideia de que a conta ambiental será desastrosa se mantidos os atuais padrões de produção e consumo.

Isso não significa que o fim da carne está próximo, mas a indústria global de proteína animal, que movimenta quase 700 bilhões de dólares por ano, vai precisar se diversificar, seja para se adequar aos limites planetários, seja para atender às novas demandas do consumidor. E o tabuleiro já começou a girar.

Em entrevista à rede americana Fox Business News no mês passado, Tom Hayes, CEO da Tyson Foods Inc., segunda maior processadora de carnes do mundo atrás apenas da brasileira JBS, afirmou que vê a proteína de origem vegetal como uma grande parte do futuro da indústria de alimentos. A empresa, que possui 5% das ações da Beyond Meat, lançou recentemente um fundo de capital de risco para investir 150 milhões de dólares em startups de alimentos que busquem proteínas alternativas.

Se depender dos consumidores, esse mercado promete esquentar. A demanda por substitutos de proteína animal é projetada para chegar a 5,9 bilhões de dólares até 2022, com uma taxa de crescimento anual composta de 6,6% a partir de 2016, de acordo com a empresa de pesquisa Markets and Markets.

É fácil digerir essa mudança. Nunca a proteína esteve tanto no centro das atenções como agora. Ela é fundamental para a saúde humana, mas a forma como a cultivamos e consumimos está colocando uma pesada pressão sobre a saúde do planeta e de nossos corpos.

Em grande medida, as inovações no setor de alimentos são uma tentativa de responder a uma das perguntas mais urgentes de nosso tempo: como é possível alimentar uma população que vai chegar a nove bilhões de pessoas em 2050 de maneira acessível, saudável e boa para o ambiente?

Agropecuária: 0,4%

As respostas não são simples e uma coalizão única de empresas, acadêmicos, organizações da sociedade civil e órgãos governamentais também está tentando encontrá-las através da iniciativa batizada de Protein Challenge 2040 (ou Desafio da Proteína 2040), orquestrada pela organização internacional sem fins lucrativos que promove o desenvolvimento sustentável Forum For The Future.

Em entrevista a EXAME.com, Simon Billing, principal assessor de sustentabilidade em alimentos do Forum For The Future afirma que há uma desigualdade da distribuição e acesso à proteína no sistema alimentar global.

"Vivemos em um mundo onde mais de 50% de plantas de boa qualidade, como trigo e soja, é cultivada para alimentar animais, ao invés de ir diretamente para a mesa das pessoas. Enquanto isso, alguns comem mais proteína do que o necessário, enquanto outros enfrentam a desnutrição", disse.

Segundo Billing, o que está em questão aqui não é a carne, mas as fontes de proteína como um todo.

"Existe uma cultura que associa proteína apenas a derivado animal, que acaba virando a estrela do prato. Mas existem outras fontes maravilhosas e diversas. As proteínas vegetais podem proporcionar uma ótima experiência à mesa, além de trazerem benefícios à saúde e ao Planeta. É urgente que a sustentabilidade e as questões da nutrição caminhem de mãos dadas e uma dieta mais balanceada é um caminho para isso”, defende.

A parte mais excitante de tudo isso é que, até o momento, nós só exploramos cerca de 8% das proteínas vegetais do mundo como potenciais substitutas da carne, segundo levantamento do Instituto Bill & Melinda Gates. ­­

Para Jade Perry, analista da área de inteligência da agência de publicidade multinacional J. Walter Thompson, as regras do jogo já foram dadas e, agora, cabe às marcas de alimentos se inspirar nessas iniciativas e colocar a ética e a sustentabilidade na vanguarda do que fazem.

"Eles devem reconhecer que os valores em torno de alimentos estão mudando e que há um maior interesse em alternativas sem carne e sustentabilidade como um todo”, escreveu em um comunicado ao mercado.

Agradar a todos os paladares não será tarefa fácil, é verdade. “O comedor de carne é motivado em grande medida pelo preço, gosto e conveniência”, diz a EXAME.com Gustavo Guadagnini, representante no Brasil do The Good Food Institute. Um dos seus trabalhos é fazer com que as empresas brasileiras importem produtos de proteína alternativa.

“Há um desafio psicológico grande, muitos homens se sentem fragilizados quando dizem que não comem carne. A educação precisa mudar também, ensinar a comer de forma mais balanceada e melhor”, pontua.

O caminho para mudança de comportamento certamente será longo, mas sem dúvida é mais realista do que esperar que o mundo inteiro se torne vegetariano.

Quem sabe, à luz dos sinais de mudança, talvez seja possível encontrar um meio termo para preservar o churrasco da família, reduzir a pressão sobre o planeta, alimentar toda a população em 2050 e ainda poupar a vida de 60 bilhões de animais abatidos anualmente.

Afinal, todo mundo tem o garfo e a faca nas mãos.

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