Algas: coleta de dados abrangeu desde águas equatoriais do Caribe colombiano até a região subpolar da Terra do Fogo, na Argentina (Getty Images)
Da Redação
Publicado em 28 de novembro de 2016 às 09h59.
Última atualização em 8 de dezembro de 2016 às 14h16.
As águas-vivas compõem um grupo de animais aquáticos bastante diverso. Podem ter desde menos de 1 milímetro a mais de 1 metro de diâmetro, além de longos tentáculos que podem atingir mais de 10 metros. Têm diversas cores e formas.
Algumas são bioluminescentes, outras, extremamente venenosas. Há espécies que parecem uma delicada flor enraizada no fundo do oceano, mas se revelam predadores vorazes quando pequenos crustáceos ou larvas de peixe se aproximam. Em comum, além do corpo gelatinoso, a beleza e o mistério que as envolve.
Informações detalhadas sobre 958 tipos morfológicos distintos de águas-vivas que habitam o litoral sul-americano – tanto do lado Atlântico quanto do Pacífico – foram reunidas em um censo publicado este mês na revista Zootaxa, a mais importante da área de taxonomia zoológica.
O trabalho, de 257 páginas, envolveu cientistas de países como Argentina, Chile, Peru, Colômbia e Uruguai, sob coordenação dos brasileiros Antonio Carlos Marques, professor do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP), e Otto Muller Patrão de Oliveira, ex-bolsista FAPESP e, atualmente, professor da Universidade Federal do ABC (UFABC).
A pesquisa foi conduzida no âmbito do Projeto Temático “Dimensões da vida marinha: padrões e processos de diversificação em cnidários planctônicos e bentônicos”, coordenado por Marques e vinculado ao Programa de Pesquisa em Caracterização, Conservação, Restauração e Uso Sustentável da Biodiversidade do Estado de São Paulo (BIOTA-FAPESP).
“A compilação apresentada no artigo inclui animais pertencentes ao filo Ctenophora, onde estão águas-vivas cujo parentesco com outros grupos animais é duvidoso, e ao filo Cnidaria, que abrange hidras, medusas, corais e anêmonas-do-mar. Desse último, porém, foram incluídas apenas as espécies do subfilo Medusozoa, que são aquelas que possuem a fase de medusa, ou água-viva, em seu ciclo de vida”, explicou Marques.
Conforme explicou o pesquisador, o subfilo Medusozoa abrange cinco classes: Cubozoa, Scyphozoa, Staurozoa e Hydrozoa, além da recém-incluída Myxozoa.
As espécies mais venenosas pertencem à classe Cubozoa. Entre elas está a Chiropsalmus quadrumanus, que chega a ter mais de 10 centímetros de diâmetro e pode ser encontrada desde o litoral de Santa Catarina, no Brasil, até a Carolina do Norte, nos Estados Unidos. Diversos pesquisadores investigam, atualmente, se realmente se trata de uma única espécie em toda a extensão do Atlântico ou se, na verdade, são várias espécies morfologicamente semelhantes.
“As cubomedusas são bastante temidas, pois produzem uma toxina muito forte. Algumas espécies causam quadros severos de envenenamento, podendo até mesmo matar. Evidentemente, elas não atacam seres humanos. Os encontros costumam ser casuais”, contou Marques.
Já entre as águas-vivas da classe Scyphozoa encontra-se a espécie Chrysaora lactea, que é bastante abundante no litoral brasileiro e pode ter até 20 centímetros de diâmetro.
“A toxina dela é relativamente tênue, mas causa algum incômodo no local. Há alguns anos, populações gigantescas dessa espécie se aproximaram da costa do Paraná e foram registrados mais de 30 mil casos de envenenamento”, disse Marques.
As espécies da classe Hydrozoa são as mais abundantes do subfilo Medusozoa. Ocorrem em todos os tipos de ambientes marinhos e também em água doce. No mar são mais diversificadas e se caracterizam por ter duas fases de vida muitos diferentes. Inicialmente, vivem como pólipos, organismos bentônicos presos a algas ou rochas no fundo do oceano. Depois, por brotamento (reprodução assexuada), produzem uma medusa (forma sexuada), que se libera do pólipo, amadurece e passa a nadar na coluna d’água. Um exemplo é a Dipurena reesi, que na fase de pólipo forma pequenas colônias em conchas e algas.
“São dois organismos completamente diferentes, mas com o mesmo genoma, coexistindo tanto na forma bentônica quanto na forma planctônica. Isso mostra como o ciclo de vida desses animais é complexo”, comentou Marques.
Já a classe Staurozoa, descrita pela primeira vez por Marques em parceria com o norte-americano Allen Collins (National Museum of Natural History, Smithsonian Institution) em 2004, é a única em Medusozoa com medusas fixas no fundo do oceano durante todo o seu ciclo de vida. Um dos exemplos é a Haliclystus antarcticus, que chega a atingir 5 centímetros de altura.
“Essas espécies habitam principalmente as regiões polares e subpolares, sendo raras em águas mais quentes. Havia uma única espécie com populações permanentes no Brasil, Calvadosia corbini, no litoral do Espírito Santo, mas suas populações podem ter sido extintas após o rompimento da barragem de rejeitos de mineração ocorrido em Mariana (MG), no último ano”, contou o pesquisador.
Já as águas-vivas do filo Ctenophora formam um grupo com poucas espécies, mas de grande importância ecológica, segundo Marques. “Algumas, como a Mnemiopsis leidyi, são conhecidas por serem invasoras em determinadas áreas marinhas, onde chegam a populações gigantescas que comprometem os ecossistemas nativos”, disse.
Ao todo, foram identificados no censo 958 morfotipos, sendo que 800 deles foram identificados no nível de espécie por sua morfologia. Para cada uma delas, há informações sobre a área de ocorrência, os registros anteriores já feitos por outros pesquisadores – alguns há mais de 150 anos – e também dados ecológicos, como tipo de habitat, profundidade em que são encontradas ou os substratos ao qual se fixam quando na fase bentônica.
A coleta de dados abrangeu desde águas equatoriais do Caribe colombiano até a região subpolar da Terra do Fogo, na Argentina, passando pela foz do rio Amazonas, todo o litoral brasileiro e toda a costa do Pacífico sul-americano.
Além de uma extensa revisão da literatura científica, os pesquisadores também incluíram dados de milhares de espécimes depositados em museus de zoologia e outras instituições dedicadas a preservar o conhecimento sobre organismos marinhos.
“Boa parte desse material havia sido coletada pelos diversos autores do artigo, durante cruzeiros oceanográficos, por exemplo. Tivemos o trabalho de recuperar essas coleções, um material rico e importante de ser acessado, e estudar cada uma das amostras. Muitos dados ainda não estavam publicados. Agora, temos uma quantidade enorme de informação organizada, que pode servir de base para diversas investigações futuras”, avaliou Marques.
Segundo o pesquisador, além de ajudar a compreender a evolução e o processo de diversificação desses animais, o conhecimento gerado pela pesquisa auxilia na identificação das regiões mais importantes para conservação.
“Como decorrência desse trabalho, vem sendo feita uma avaliação de quais são as áreas com maior riqueza de espécies, maior complexidade taxonômica [ que abriga espécies de grupos muito diferentes entre si], maior número de espécies endêmicas [que só ocorrem em um determinado lugar] e populações isoladas. Aliado a uma perspectiva geográfica, esse conhecimento permite estabelecer quais regiões são prioritárias para preservação, ao menos baseado nas informações dos cnidários”, explicou Marques.
De acordo com o professor do IB e diretor do Centro de Biologia Marinha (CEBIMar) da USP, ainda restaram informações não incluídas no artigo, além de novos dados que continuam sendo gerados pelo grupo de cientistas sobre áreas pouco exploradas da América do Sul.
“Esse censo está criando, de certa forma, uma vida própria. Vai continuar a crescer e os dados vão sendo melhorados e amadurecidos”, avaliou.
Essa matéria foi originalmente publicada na Agência Fapesp.