Ciência

Covid-19 longe do fim: países pobres podem ficar sem vacinação em massa até 2024

A distribuição desigual de vacinas pode diminuir o PIB per capita global em mais de 9 trilhões de dólares neste ano – podendo gerar uma crise ainda maior

Vacina: imunização em massa contra a covid-19 pode demorar (Amanda Perobelli/Reuters)

Vacina: imunização em massa contra a covid-19 pode demorar (Amanda Perobelli/Reuters)

Tamires Vitorio

Tamires Vitorio

Publicado em 27 de janeiro de 2021 às 08h49.

Os países mais pobres do mundo podem demorar mais três anos para conseguir vacinar sua população em massa contra o novo coronavírus – enquanto algumas nações podem nunca alcançar o marco. Ao menos é o que aponta um modelo matemático feito pela inglesa The Economist Intelligence Unit (EIU).

Segundo a previsão, países como o Reino Unido, Estados Unidos, Israel e alguns integrantes da União Europeia vão alcançar a cobertura vacinal necessária para evitar a progressão do vírus até o final de 2021. Outros países desenvolvidos devem chegar nessa situação até o meio de 2022 e países de renda média no final do ano que vem.

No entanto, os 84 países que integram o grupo dos mais pobres do mundo não receberão doses suficientes das vacinas para imunizar a população. Problema esse que deve se manter durante toda a primeira metade desta década. Estão incluídos nessa lista países como Burundi, República Centro-Africana, República Democrática do Congo, Eritreia e Nigéria.

Segundo o relatório do EIU, o principal motivo para a demora é a restrição na produção de imunizantes de grandes companhias farmacêuticas internacionais, que entregarão doses para os países que já a reservaram – em sua maioria, mais ricos – deixando os mais pobres com poucas opções.

Somente alguns Estados africanos podem se beneficiar de sua participação em testes clínicos e garantir um acesso rápido às vacinas – até o momento, no entanto, não existe uma produção primária de imunizantes na África, mas locais para a fabricação deles estão sendo estudados e a ideia é prover doses o mais tardar no final de 2021 ou no começo de 2022.

Um estudo publicado nesta segunda-feira, 25, aponta que a distribuição desigual de vacinas pode diminuir o PIB per capita global em mais de 9 trilhões de dólares neste ano. O principal motivo por trás disso é a demanda de vacinas em países que não vão conseguir realizar campanhas fortes de imunização – o que poderia gerar uma crise econômica e de saúde ainda maior do que a que o mundo vive atualmente.

A corrida dos mais ricos

Os Estados Unidos já reservaram 100 milhões de doses da vacina da farmacêutica americana Pfizer, podendo comprar mais 500 milhões, bem como 200 milhões de doses da vacina da também americana Moderna, com uma oferta adicional para a compra de outras 300 milhões. Juntando os pedidos da AstraZeneca, da Johnson & Johnson, da Novavax e da Sanofi, mais 810 milhões de doses foram reservadas — os acordos de expansão, segundo o jornal americano The New York Times, podem alavancar a quantidade para 2,6 bilhão de doses.

O Reino Unido, por sua vez, já garantiu 357 milhões de doses das mesmas companhias citadas acima, e também fechou um acordo com a companhia francesa Valneva, para comprar mais 152 milhões. E a União Europeia adquiriu 1,9 bilhão de doses das mesmas farmacêuticas e também mais 600 milhões da companhia alemã CureVac.

A maioria das vacinas é administrada em duas doses. Os Estados Unidos são o epicentro da doença no mundo, com mais de 17,8 milhões de infectados e uma população de 328,2 milhões de habitantes. As 2,6 bilhão de doses reservadas, então, seriam o suficiente para vacinar toda a população americana 7,9 vezes, enquanto a União Europeia poderia vacinar o povo por mais de duas vezes, segundo uma análise feita pela EXAME com base nos dados disponibilizados pela UNICEF.

Já a Nova Zelândia assinou acordos com a universidade britânica de Oxford e a AstraZeneca e com a Novavax para trazer uma pacote adicional de 18,3 milhões de doses. Ambas as vacinas requerem duas doses, o que significa que mais de 9 milhões de pessoas poderão ser vacinadas. Antes desses acordos, o país já havia assegurado 750 mil doses da vacina da Pfizer/BioNTech e 4 milhões de doses da vacina da Janssen.

O objetivo da Nova Zelândia é vacinar a sua população de cerca de 5 milhões de pessoas e doar o que não for usado para nações vizinhas – uma ação que, ainda, não foi copiada por outros países.

 

 

Em relação aos países menos desenvolvidos, a Índia, conhecida por ser um dos maiores fabricantes de compostos de vacinas no mundo todo, já assegurou uma quantidade substancial de doses para equilibrar a sua capacidade de manufatura.

Nos próximos anos, a Índia deve ser o país com a capacidade de produzir a maior quantidade de doses de vacinas contra a covid-19, uma vez que o Serum Institute of India tem contratos para a produção em larga de escaça das vacinas da AstraZeneca e da Novavax --- que prometeram ao governo indiano pelo menos metade do que for produzido por lá.

Ao todo, o país já garantiu 200 milhões de doses de vacinas, sendo 100 milhões do Instituto Gamaleya, na Rússia, e outras 100 milhões do próprio instituto indiano.

O Brasil, com 266 milhões de doses garantidas até o momento e uma população de 209,5 milhões de pessoas. A quantidade reservada, então, seria o suficiente para vacinar a todos.

Como alcançar os mais pobres

Mas esforços têm sido feitos para garantir o acesso livre de todos países às vacinas que forem aprovadas. A OMS em parceria com duas ONGs do bilionário Bill Gates criaram uma aliança para garantir bilhões de doses para 92 países pobres e também para países emergentes.

A iniciativa chamada de Covax já reservou 700 milhões de doses para países como Afeganistão, Haiti, Sri Lanka, Indonésia, Quénia, Honduras e Madagascar – o número, embora pareça alto, pode não ser o suficiente para os 172 países que integram a lista. Um bilhão de doses nesse cenário seria capaz de vacinar menos de 20% da população de cada uma das nações mais pobres. Mas o relatório do EUI é cético quanto a iniciativa – segundo o modelo matemático, pode não ser o suficiente e demorar muito tempo.

O Senegal, por exemplo, depende exclusivamente das ações de empresas de fora. Por lá, a biotech Mologic desenvolveu testes caseiros e rápidos que podem custar até 1 dólar. Mas quanto tempo uma vacina pode demorar para chegar até esses locais?

"Não podemos depender somente da boa vontade para garantir acesso à ela. Demorou dez anos para as drogas contra a aids chegar a países mais pobres", afirmou Arzoo Ahmed, do Conselho Britânico Nuffield de Bioética à agência de notícias AP.

Pensando nisso, a AstraZeneca assinou um acordo de 750 milhões de dólares com a A Coalizão Para Inovações em Preparação para Epidemias (CEPI, na sigla em inglês) e com a Gavi Alliance para assegurar 300 milhões de doses para países pobres. E também fez um acordo com o Instituto Serum da Índia, que receberá 400 milhões de doses reservadas para países de baixa e média renda. A farmacêutica garantiu que não obterá lucros em nações mais necessitadas. O mesmo foi prometido pela americana Johnson & Johnson.

A União Europeia assegurou que tentará fazer com que os países mais pobres não fiquem para trás na fila das vacinas. "Ao falarmos sobre uma pandemia global, não tem espaço para 'eu primeiro'", afirmou a presidente para a Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, em junho.

A China também entrou na briga para o desenvolvimento de uma vacina e prometeu doar qualquer uma que tiver sucesso primeiramente para países no continente africano.

As iniciativas das empresas e dos países são promissoras, mas continua difícil mensurar o quão rápido ela chegará em locais mais necessitados e com sistemas de saúde mais frágeis.

 

O custo das vacinas para o Brasil

Por aqui, são realizados testes clínicos para a vacina de Oxford com a AstraZeneca e existe um acordo com o governo brasileiro para a importação de duas milhões de doses, vendidas por 5,25 dólares cada. Com a compra, além de custos de logística e armazenamento, o Brasil deve gastar pouco mais de 59 milhões de reais.

A da Pfizer, por sua vez, passou por idas e vindas – e sua aplicação no Brasil ainda segue uma incógnita. Em entrevista à Globonews, o médico Drauzio Varella afirmou que o imunizante da Pfizer, por ser mantido em -70ºC, não conseguirá ser armazenado em todos os lugares do país – uma preocupação existente desde as fases de testes da vacina.

Um estudo publicado nesta segunda-feira, 25, aponta que a distribuição desigual de vacinas pode diminuir o PIB per capita global em mais de 9 trilhões de dólares neste ano.

A vacina da farmacêutica americana tem também é uma das mais caras disponíveis no mercado – por dose, os países precisam desembolsar cerca de 39 dólares, ou cerca de 206 reais na cotação atual. Em termos de custo, a da Moderna vence disparado: cada dose pode custar de 50 a 74 dólares, o que faz com que seu uso seja limitado para países com rendas maiores.

Para Varella, vacinas como a da Pfizer e a de Oxford são "inviáveis" para o contexto brasileiro exatamente pelo preço delas. "Você pode importar um certo número da Pfizer, talvez nas capitais você consiga manter uma rede de frio para armazená-las, mas, quem conhece um pouco do Brasil, sabe que nós não temos condições nas unidades básicas de saúde", disse. O médico também afirmou que "não é possível acabar com a pandemia com apenas duas vacinas".

A opinião de Varella é também compartilhada por outros infectologistas ouvidos por EXAME. Vacinar a população brasileira em massa com o imunizante de Oxford custará caro para os cofres públicos. A vacina, administrada em duas doses, custará 10,25 dólares por pessoa, e precisa vacinar mais de 209,5 milhões de habitantes no país.

Mas uma opção mais cara, em tempos de pandemia, é melhor do que opção nenhuma. "Se o governo brasileiro topar pagar a conta, acredito que não teremos problemas logísticos para a distribuição, uma vez que a opção da universidade pode ser estocada entre 2 e 8 graus – uma temperatura mais fácil de manter", afirma a médica Silvia Boscardin, do Instituto de Ciências Biomédicas da USP.

Além dos pontos levantados por Varella, outro problema que pode impedir a chegada de outras vacinas no Brasil – além de Oxford e CoronaVac – reside nos países mais ricos. Segundo uma pesquisa da Universidade Duke, nos Estados Unidos, as nações desenvolvidas compraram doses suficientes para vacinar a população mais de uma vez, deixando as mais pobres sem uma cobertura vacinal robusta.

"Para termos os melhores resultados globalmente, precisamos que países ricos e pobres recebam as doses ao mesmo tempo. No entanto, parece que os países mais ricos terão uma campanha de vacinação logo na primeira metade de 2021, enquanto os países mais pobres continuarão esperando", afirmou Andrea D. Taylor, da Universidade Duke, em entrevista à agência de notícias Reuters.

A solução, segundo Varella, é simples: "temos que nos concentrar nas vacinas que podemos fazer a vacinação em massa e temos que ter organização para fazer isso".

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