Margaret Magdesian: cientista é fundadora e CEO da startup (Concordia Univeristy/Brendan Hart/Reprodução)
Da Redação
Publicado em 10 de julho de 2017 às 11h40.
Última atualização em 10 de julho de 2017 às 17h24.
A guinada para o empreendedorismo na vida da bioquímica Margaret Magdesian veio da insatisfação com um equipamento científico. Trata-se da placa de Petri, usada em pesquisas com microrganismos e culturas celulares, mas que, como modelo de tecidos humanos, deixava muito a desejar.
“A ciência avançou e a placa de Petri continua a mesma há mais de 100 anos. As células que crescemos hoje em laboratório nesses instrumentos não representam corretamente as células do corpo humano. Não são um modelo eficiente, ainda mais para os neurônios”, disse em palestra no Instituto Butantan no dia 26 de junho de 2017.
Magdesian é graduada em Farmácia e Bioquímica (1996) e fez o doutorado em Ciências Biológicas (Bioquímica, 2001), ambos na Universidade de São Paulo. Em 2008, foi convidada para trabalhar no laboratório de David Colman, diretor do Programa de Neuroengenharia da McGill University.
No Canadá, Magdesian iniciou o desenvolvimento de uma alternativa para a placa de Petri. O resultado são dispositivos com base em silicone que funcionam como moldes para o crescimento de células de forma organizada, de modo similar ao que ocorre no corpo humano.
A inovação recebeu diversos prêmios no Canadá, Estados Unidos e na França e foi considerada uma das 10 principais descobertas científicas de 2016 pela revista Québec Science. A crescente demanda de dispositivos por outros cientistas levou Magdesian à criação de uma empresa, a Ananda Devices, da qual é CEO, para a produção de dispositivos biocompatíveis para facilitar a pesquisa com células.
Um exemplo é o Neuro Device, empregado para a cultura de neurônios. O dispositivo tem duas câmaras nas quais são cultivadas as células nervosas. As câmaras são conectadas por microcanais que ajudam a direcionar a extensão de axônios – parte do neurônio responsável pela condução dos impulsos elétricos. Populações celulares podem ser crescidas em diferentes compartimentos, favorecendo coculturas e o estudo da interação entre neurônios e outros tipos celulares.
Com menos de um ano de existência, a empresa já vendeu mais de 3 mil dispositivos para cientistas de países como Canadá, Estados Unidos e Brasil, auxiliando trabalhos nas áreas de neurociência, imunologia, parasitologia, câncer e células-tronco.
Na palestra “O futuro das culturas celulares”, no Instituto Butantan, Magdesian, que apresentava sua inovação para uma plateia de alunos e professores, havia também um componente emocional. Foi durante seu doutorado na USP que a cientista começou a carreira acadêmica. “Foi no Brasil que aprendi a cultivar qualquer tipo de célula em qualquer ambiente, algo fundamental para desenvolver os dispositivos para cultura celular”, disse.
Leia a seguir a entrevista de Magdesian à Agência FAPESP:
Agência FAPESP – Que necessidade a levou a desenvolver esses dispositivos para estudos celulares?
Margaret Magdesian – A principal foi a falta de um instrumento que permitisse fazer a cultura de células de forma mais eficiente e com exatidão. Isso leva a problemas como a dificuldade de reprodutibilidade de pesquisas. Um levantamento feito pela Nature com 1.576 pesquisadores indicou que mais de 80% tentaram e falharam na reprodução de experimentos feitos em outros laboratórios. Mais da metade dos cientistas não conseguiu nem mesmo reproduzir estudos publicados por eles mesmos. Nas ciências biológicas, por exemplo, isso ocorre, entre outros fatores, porque cada cultura celular tem uma organização ou padronização diferente. Precisamos melhorar isso. Fui para o Canadá, em 2008, como professora visitante na McGill, para fazer pesquisas sobre o cérebro. Basicamente, estávamos tentando testar como cada neurônio reage de forma individual a uma lesão. Queríamos reconectar neurônios lesionados, mas era quase impossível estudá-los porque na placa de Petri os neurônios não se organizam como no cérebro. Formam-se emaranhados e é muito difícil identificar axônios individuais. Mesmo com um microscópio de força atômica de alta precisão à nossa disposição, a limitação ainda era a cultura celular, que não representa o tecido original. Eu sabia que, se a cultura não estivesse organizada como no cérebro, passaria anos sem ter resultado algum. Foi aí que veio a ideia de fazer um molde com compartimentos para que a cultura crescesse de forma mais semelhante ao que ocorre no corpo humano. Interagindo com engenheiros e físicos, chegamos a esses novos dispositivos.
Agência FAPESP – Quais são as vantagens dos dispositivos Ananda Devices em relação a outros instrumentos para cultura celular, como a própria placa de Petri?
Margaret Magdesian – Minha sugestão é que todo cientista primeiro olhe para uma fatia do tecido que estuda, depois olhe para sua cultura de células. As células crescidas em placas de Petri não se organizam como as células do corpo humano. Este modelo é ineficiente. Nos últimos 100 anos os microscópios evoluíram para máquinas altamente avançadas, capazes de analisar diversos resultados, mas a automação de testes celulares ainda não é possível porque cada placa de Petri forma uma cultura celular de organização diferente, irreprodutível. Com neurônios isso fica mais evidente porque no cérebro os neurônios se organizam em circuitos precisos de comunicação. Quando você tira os neurônios do corpo para cultivá-los em uma placa de Petri, eles perdem a forma, ficam desorganizados como fios de macarrão em um prato. Pior, em cada placa de Petri os neurônios formam um circuito diferente e nenhum resultado se reproduz. Esta é uma das razões porque mais de 90% das drogas testadas em células falham em testes clínicos. O que fizemos foi basicamente dar o equivalente de estrutura que tem no cérebro para que esse “minicérebro” portátil se organizasse. Com isso, é possível identificar a resposta em cada neurônio individual e quantificar essa resposta para ter resultados reprodutíveis.
Agência FAPESP – Como se pode estudar o comportamento de estruturas tão complexas como neurônios fora do cérebro, em um dispositivo sintético?
Margaret Magdesian – Atualmente são usadas placas de Petri de plástico, uma superfície lisa e sintética. Nossos dispositivos são moldes de silicone biocompatível, o mesmo usado em implantes, com estruturas 3D que possibilitam melhor organização e padronização das culturas celulares. Comecei fazendo um dispositivo para minha pesquisa e outros pesquisadores se interessaram. Uma vez brincaram que eu fazia o Feng Shui para células, mas eu apenas organizo a cultura em microambientes favorecendo a comunicação celular e distribuição de nutrientes, tentando reproduzir as condições do ambiente natural. Uso tecnologia de ponta para microfabricação de micro e nanoestruturas e, ao comercializar os dispositivos prontos, torno essa tecnologia acessível a qualquer laboratório. Para criar um molde novo é preciso usar uma tecnologia sofisticada, mas uma vez que você tem os moldes – e é por isso eu estou aqui no Brasil –, mesmo sem ter toda a estrutura para fabricação, muitos poderão usar. Cada um custa em média 47 dólares canadenses [cerca de R$ 114]. Não é caro comparado a comprar um microscópio eletrônico e traz diversas vantagens como reduzir o uso de reagentes, o tempo de imagem e o uso de animais para experimentação científica.
Agência FAPESP – Como ficou a sua pesquisa após o invento?
Margaret Magdesian – Com os dispositivos, finalmente pudemos ter axônios isolados. Em vez de testar um ou dois axônios por dia, com o dispositivo eu testo 120 axônios por dia. Sendo que são resultados muito mais confiáveis e menos subjetivos, por usar um modelo que permite que todos os neurônios tenham mais ou menos o mesmo tamanho e o número de conexão entre eles também seja semelhante. É um sistema muito mais organizado e parecido com o do corpo humano e que permite gerar dados muito mais reprodutíveis. No fim, tivemos resultados 50% mais rápidos do que antes. Houve 90% da redução de custos com reagentes, porque o nosso dispositivo é menor em volume do que outros usados anteriormente, então precisa usar muito menos reagentes. E a reprodutibilidade aumentou para 95%.
Agência FAPESP – E em que ponto dessa história a Ananda Devices foi criada?
Margaret Magdesian – Estava no Canadá há seis anos e uma empresa alemã me ligou dizendo que queria comprar 10 mil dispositivos. Parecia ótimo, né? Só que, na época, estava fazendo tudo à mão. Aí o pessoal da McGill disse que, se eu quisesse fabricá-los precisaria criar uma empresa. E eu, que passei a minha vida inteira com um microscópio, perguntei: como é que se abre uma empresa? Disseram para perguntar na Faculdade de Administração. Chegando lá, descobri que havia um concurso aberto para startups. Era só mandar o meu business plan. Não fazia ideia de como deveria ser um plano de negócios, mas aprendi e fui uma das vencedoras da Dobson Cup Innovation Competition. Um dos jurados era um dos fundadores do Yahoo e outro também era profissional de empresa de tecnologia do Vale do Silício. Ambos se ofereceram para investir na minha ideia. Em outubro de 2015, saí da McGill e passei a me dedicar exclusivamente à Ananda.
Agência FAPESP – Na sua opinião, por que é tão raro um cientista virar empreendedor?
Margaret Magdesian – Acho que é uma questão de foco. Quando você começa a sua tese, você só pensa nela. Depois, na publicação. Raros cientistas pensam na patente, mas acham que as indústrias vão comprar a patente e o produto vai vender sozinho. Mas não é assim. Nós, como cientistas, não damos o devido valor, ou não temos a compreensão, do que é o empreendedorismo, da dificuldade em vender alguma coisa, do quanto é preciso desenvolver em tempo ou em manuais, por exemplo. E é bem nessa fase que eu estou agora.
Agência FAPESP – Quais foram as suas dificuldades?
Margaret Magdesian – A maior dificuldade é usar linguagem popular e não linguagem científica. A primeira vez que me reuni com investidores, falei que era de uma empresa de nanoengenharia, que usava microscopia de força atômica para estudar neurodegeneração. Ninguém sabia o que era tudo isso. Então, aprendi a falar. Hoje, quando me perguntam o que eu faço, digo que fabrico minicérebros em um chip. Aí entendem e podem se interessar em investir ou não.
Agência FAPESP – A senhora passou por várias linhas de pesquisa. Isso ajudou a empreender?
Margaret Magdesian – Eu fiz a iniciação cientifica no Instituto Butantan, tive bolsa da FAPESP, trabalhei com veneno de cobra em biologia molecular. Depois fiz mestrado e doutorado no laboratório do professor Walter Colli e da professora Maria Julia Manso Alves, no Instituto de Química da USP. Fiz um pós-doutorado curto com eles e logo passei em um concurso de docência na UFRJ [Universidade Federal do Rio de Janeiro]. Durante o doutorado, estudei a interação do Trypanosoma cruzi com células de mamíferos, e foi quando aprendi realmente a cultivar qualquer tipo de célula. Porque eram vários tipos celulares para testar invasão do parasito. Quando me mudei para o Rio de Janeiro, a ideia era utilizar todo esse aprendizado para estudar os neurônios, uma célula com a qual, na época, ainda não tinha trabalhado. Quando cheguei ao Canadá, a experiência que acumulei foi fundamental para poder desenhar os dispositivos celulares. Porque eu trabalhava com os engenheiros. Eu era a parte biológica do projeto multidisciplinar. Os engenheiros produziam uns dispositivos cheios de tubos e de óleo e eu dizia que não podia para evitar a contaminação da cultura celular.
Agência FAPESP – Tem gostado da vida de empreendedora?
Margaret Magdesian – Eu gosto muito de ciência, mas, desde que comecei minha carreira acadêmica, nunca me vi muito como professora. E na carreira acadêmica, ou você vira professora ou você vira o quê? Não tem opção. Quando eu estava preparando os slides para o plano de negócios pedi que todos os cientistas que usaram meus dispositivos me mandassem fotos. Nesse momento eu vi que meus dispositivos estavam acelerando as pesquisas em neurociências, em imunologia, em parasitologia, câncer e estudos com células-tronco. Olhei para as gavetas do meu laboratório cheias de dispositivos e percebi que eu tinha duas opções: continuar na universidade, desenvolver mais um dispositivo e publicar mais um artigo científico para melhorar meus índices de produtividade, ou pegar todos os dispositivos das gavetas e distribuir para várias pessoas no mundo publicarem novos artigos científicos e acelerar as pesquisas. O impacto que eu vou ter como empreendedora tem muito mais a ver com o que me motivou a entrar na ciência, lá no começo, que foi usar a ciência para desenvolver novas terapias para pacientes. O impacto de um empreendedor na ciência é enorme, pois democratiza a ciência. Imagine se os reagentes, enzimas, células e anticorpos não fossem comercializados. Para cada item do laboratório teve um cientista-empreendedor, como eu, que trouxe este produto para acelerar pesquisas e encontrar soluções para diferentes doenças. O Brasil precisa de cientistas-emprendedores.