MARCO RUFFO: movido pelo desejo de pegar os culpados, um senso de justiça que está acima da legalidade / Divulgação (Netflix/Divulgação)
Da Redação
Publicado em 31 de março de 2018 às 08h46.
Última atualização em 3 de abril de 2018 às 10h56.
É uma escolha ousada fazer uma série ficcional sobre eventos reais. Até que ponto ela está comprometida com a verdade literal dos fatos? Até que ponto ela deveria estar? Tudo isso levanta considerações ricas sobre a relação entre arte e realidade. E mais: sobre o efeito da arte na política. Será que algum espectador tomará a série como fonte para entender a Lava-Jato e a política no Brasil? Quando falamos em Alberto Youssef, será que o rosto evocado pelo nome será o da pessoa real ou de seu equivalente em “O Mecanismo”, Roberto Ibrahim? Será que a opinião pública sobre Lula é impactada pela impressão causada pelo personagem João Higino, que o representa?
São considerações do impacto da obra na cultura, e não sobre a obra em si. E quando vão falar da obra em si, seus críticos nas últimas semanas têm errado o alvo: imaginam que “O Mecanismo” seja um libelo antipetista. Sim, Padilha tomou a decisão provocadora de colocar a expressão “estancar a sangria” na boca de João Higino (Lula). Decisão, decerto, deliberada justamente para gerar revolta e aumentar a audiência. Mas o tom geral da obra nem de longe é enviesada para criticar um partido ou um lado do espectro político.
Pelo contrário: todos os personagens que representam políticos na série têm falas inventadas, que levam sua conduta no mundo real a um grau mais explícito de tramoia. Lúcio Lemes (Aécio Neves), ao ver que a capa da Revista Leia (Veja) denunciando Janete (Dilma) e Higino, ri e exclama em voz alta: “Eu amo essa revista; essa revista me ama!”. Em outra cena, Lemes e Samuel Thanes (Michel Temer) tramam juntos o impeachment. Janete não é inocente, mas acredita estar acima da capacidade da polícia, e por isso nada fará para barrar as investigações, embora Higino a pressione para demitir o Procurador Geral da República. Lemes, não: se virasse presidente, acabaria imediatamente com a operação.
Em diversos momentos, a série (ou seja, a narração, que alterna entre o ex-policial Ruffo e a atual policial Verena, os protagonistas), reitera que todos os partidos, a direita e a esquerda, estão igualmente envolvidos até o pescoço na corrupção. Pintar o esquema como obra da esquerda é uma estratégia dos corruptos de direita, aliados a certos órgãos de mídia, para enganar o povo. Até os panelaços contra a presidente Janete são criticados. “Se o brasileiro resolvesse bater panela pra tudo que acontece de errado nesse país, o carnaval não acabava nunca.”
O real inimigo da série é toda a classe política e, de maneira mais ampla, toda a cultura brasileira. Esse é “o mecanismo”. O clímax da temporada se dá quando Ruffo finalmente descobre sua real natureza: a causa oculta dos desvios do Brasil é a relação promíscua do público e do privado, um a serviço do outro. O pequeno esquema de corrupção da empresa de distribuição de água na sua rua – na qual, para consertar um bueiro que transborda água suja, ou se espera semanas ou se paga por fora – é uma imagem perfeita do grande esquema entre governo federal e empreiteiras. Todo o Brasil é isso, e quem tenta sair dessa lógica é esmagado. O único jeito de vencê-la é não jogar segundo as regras.
“O Mecanismo” expressa a revolta profunda do brasileiro com as instituições. O desejo de fazer terra arrasada, de punir exemplarmente (quem sabe até matar?) os corruptos, sem nenhum acordo e nenhuma tolerância. O anjo vingador que virá arrancar o câncer, matar as ratazanas (ambas imagens usadas pela série). Esse desejo é encarnado por Marco Ruffo, o centro motriz da história.
Todos os personagens de “O Mecanismo” correspondem a pessoas reais, exceto a equipe da Polícia Federativa (equivalente à Polícia Federal) e um procurador do Ministério Público. Desses personagens, apenas três têm sua vida pessoal exposta e podem ser considerados os protagonistas: o policial federativo Ruffo (que logo no início é exonerado), a policial Verena e o procurador Cláudio. Desses, apenas Ruffo e Verena narram a história; ou seja, atuam como sua consciência.
E o centro de tudo é Ruffo. Ele está numa posição singular. Verena e Cláudio são personagens inteiramente fictícios mas que atuam em instituições reais. Ruffo não. Ruffo é um policial exonerado (seu crime foi ter se exaltado quando a Justiça barrou uma investigação sua) que continua a trabalhar na investigação por fora do sistema, ajudando a polícia e o MP em momentos-chave.
Quem Ruffo representa? Quem é esse participante das operações que não está em nenhuma instituição e que é movido, acima de tudo, pela indignação e pelo desejo de pegar os corruptos (e não, como ele repete – para si mesmo ou para nós? – a todo momento, defender um lado do espectro ideológico), que enxerga o Brasil ser engolido pela corrupção e quer – frente à ineficiência e burocracia do sistema – resolver as coisas com as próprias mãos?
É a população brasileira; o público-alvo da série. O povo, o espectador, está ali representado na figura de Ruffo: ele já percebeu que o sistema é inviável, uma “máquina de moer gente”, e que as regras e procedimentos impedem a justiça divina de ser feita – talvez as regras sejam elas próprias pensadas para ajudar a corrupção. O que o move é o desejo de pegar os culpados, um senso de justiça que está acima da legalidade.
Na vida real, o cidadão comum é impotente: pode no máximo protestar. Na série, é a peça-chave: o verdadeiro herói. Diferente do juiz Paulo Riga (Sérgio Moro), que sonha em ser um herói frente às câmeras, mas é incapaz de contrariar o sistema; é Ruffo quem o coloca no caminho correto.
O valor de uma obra não depende de ela expressar uma visão de mundo correta. Mas sempre cabe perguntar: se a visão de mundo da obra fosse colocada em prática no mundo real, qual seria um resultado? Qual seria o resultado prático se a sanha de justiça punitiva e de quebrar as regras vingasse no Brasil, como querem tantos milhões? Um misto de Estado revolucionário e Estado policial, as ferramentas do terror nas mãos de apóstolos da justiça (ou de uma concepção particular dela) todo-poderosos.
Capitão Nascimento de “Tropa de Elite” nos despertou para o “fascismo” que existe no combate à criminalidade. Marco Ruffo representa a mesma coisa em “O Mecanismo”, relacionado ao crime de colarinho branco. Será que o público-alvo perceberá o perigo que mora em seu coração?