Mesa em Reykholt: um chef e um pequeno grupo começaram a experimentar o poder de cozinhar nas fontes geotérmicas
Da Redação
Publicado em 24 de março de 2018 às 08h27.
Última atualização em 24 de março de 2018 às 11h06.
Reykholt, Islândia – De pé na lama do campo de gêiseres Myvatn, no norte da Islândia, Kolla Ivarsdottir ergueu a tampa de seu forno de pão improvisado. O equipamento foi feito com o tambor de uma velha máquina de lavar roupa e enterrado na terra geotermicamente aquecida. Ao nosso redor, as poças borbulhavam e soltavam colunas de vapor, alimentadas pelo calor de vulcões em formação.
Ivarsdottir, mãe de três filhos que vende seu pão em um mercado de produtos regionais, colocou a mão dentro do forno e retirou uma caixa de leite cheia do produto que havia acabado de assar: um pão de lava feito com centeio, doce e denso, produzido na terra quente daqui há séculos. Ela o cortou ainda quente em fatias finas. E avisou que é melhor comê-lo “completamente coberto com um pedaço de manteiga fria, tão grosso quanto sua mão, e uma fatia de salmão defumado da mesma espessura”. Ficamos só com o pão com manteiga, ainda assim uma combinação incrível.
“Muitas pessoas cozinham outras coisas desse jeito?”, perguntei olhando para as fontes naturais de calor à minha volta.
“Não muitas. Algumas vezes um ganso que foi caçado, mas, em geral, apenas o pão de lava”, ela respondeu.
Achei surpreendente para um país com abundância de energia e voltado para a conservação que também é pioneiro da culinária nórdica moderna. Nesta era de slow-food e sous-vide, não seria possível imaginar uma refeição inteira feita somente em fornos geotermais naturais da Islândia?
No último verão, fiz mais do que imaginar: decidi testar minha ideia, uma missão que me levou a um grande passeio pelas riquezas culinárias do país.
Quando liguei para o crítico de restaurante e exportador de peixes Kjartan Olafsson, minha fonte para todas as coisas relacionadas à Islândia, ele estava colhendo feno para os cavalos que o levavam, junto com a mulher, a uma incursão na natureza selvagem. Nesta região em que o clima muda rapidamente e não há muitas terras aráveis, a sabedoria popular de colher feno enquanto o sol está brilhando é uma profissão de fé bastante arraigada.
“Tenho a pessoa certa para você”, afirmou ele.
Seguindo sua sugestão, eu imediatamente comecei uma viagem de oito horas de carro até Reykholt, uma vila no sudoeste. Embora tenha algumas das maiores paisagens da terra, a Islândia é um país pequeno; com 16 horas de volante é possível completar o circuito.
No dia seguinte, em Reykholt, conheci Jon Sigfusson, cozinheiro do Friedheimar, um restaurante que fica sob o mesmo teto da fazenda futurista coberta de mesmo nome. Cerca de vinte por cento dos tomates da Islândia são colhidos ali, de pés imensos, tão altos quanto um sobrado, sob lâmpadas douradas em estufas aquecidas geotermicamente. Todo o cardápio do restaurante, incluindo os coquetéis, tem os tomates como base.
Sigfusson e sua mulher, Asborg, voltaram a Reykholt, sua aldeia natal, depois de criar os filhos em Reykjavik. O casal queria um ritmo mais lento de vida. Ele não previu o sucesso desenfreado que o restaurante de tomates teria, mas ainda mantém um estilo de cidade pequena, mais em sintonia com a natureza.
“Eu me mudei para cá porque quero a luz da lua, as estrelas, as auroras boreais”, contou Sigfusson.
Nesse espírito low-tech, nosso grupo – Olafsson, sua mulher, Karitas, minha mulher, Melinda e eu – criamos um plano para cozinhar no forno do gêiser local, uma característica de muitas cidades rurais da Islândia. Fizemos uma curta viagem de carro a partir do restaurante; o forno fica em uma ladeira com vista para sul e o oeste, um panorama de grandes rios e campos de lava. À distância, o vulcão ativo Hekla impera sobre a planície.
“A água que estamos tomando um dia foi chuva e neve nessa geleira de 700 anos”, contou Sigfusson, apontando para o oeste, para as montanhas da Cordilheira Mesoatlântica.
Estávamos de pé na colina acima de Reykholt, no ponto onde o gêiser da cidade foi coberto de concreto com um telhado com acabamento cru, onde se via uma chaminé desconjuntada. Daquela fonte, a vila canaliza o vapor e a água quente que fornece parte das necessidades de calor e energia da comunidade moderna.
Parte do vapor também é desviado para o forno comunitário da vila, onde Sigfusson propôs que preparássemos nossa refeição. É uma maneira muito mais segura de cozinhar em calor geotérmico do que andar na ponta dos pés entre gêiseres em ebulição.
Ele abriu o forno do gêiser, apoiando a tampa com um mourão para que eu pudesse olhar lá dentro com segurança. O vapor que saía era tão quente quanto o de uma sauna e, no fundo do forno, ainda estava muito mais quente (cerca de 93°C). O cheiro era um pouco sulfuroso, mas isso faz parte quando você mexe com o calor do centro da Terra.
Concordamos em nos reunir na manhã seguinte para cozinhar um cardápio local, incluindo trutas do rio Tungufljot, ali perto, e cordeiro islandês alimentado com capim, uma raça local que possui a mesma suculência salgada do famoso “agneau de pré-sale” francês, criado em prados com pântanos de água salobra.
Para a sobremesa, Sigfusson sugeriu “abrystir”, um pudim feito com o primeiro leite (o colostro, que é cheio de nutrientes) produzido por uma vaca leiteira. “Sempre que uma de nossas vacas dava cria, minha avó pegava parte daquele leite e colocava em uma chaleira dentro de uma panela com água quente. Era tão rico que rapidamente se tornava um creme brulê sozinho, sem ovos”, contou.
O dia seguinte amanheceu muito brilhante, com nuvens de algodão e uma brisa leve. “Primeiro vamos fazer a colheita. As ervas selvagens estão em todos os lugares”, disse Sigfusson.
Nosso pequeno grupo vagou pela encosta. O chão estava forrado de tomilho selvagem, com flores púrpuras do tamanho de uma bala de goma em meio a folhas saborosas e macias. Nas dobras e cavidades verdejantes, encontramos angélicas, planta com cheiro floral, quase de verbena, e apenas um pouco amarga, que ia combinar muito com os sabores do cordeiro gordo.
Sigfusson cortou dois talos de lúpulo selvagem para temperar o caldo; um uso novo, pelo menos para mim, do principal ingrediente da cerveja.
Com a porta traseira de sua caminhonete servindo como superfície de trabalho, separamos algumas romanescas da estufa em floretes e as jogamos dentro de uma panela de ferro. Cortamos couve-rábano em cubos, fizemos o mesmo com o pedaço de cordeiro defumado e salgado e adicionamos ervas, o lúpulo e creme. Enquanto trabalhávamos, o gêiser soltava sopros a cada sete minutos, e tínhamos que parar, recuando para fora do alcance do seu vapor quente e enevoado.
Depois, colocamos o colostro nos ramequins que deixamos em banho-maria em uma forma com água quente. Então Sigfusson trouxe uma truta marrom que ele mesmo havia pescado. Recheamos o peixe brilhante e manchado com uma espécie de azedinha, angélica e cebolinhas, embrulhamos em papel especial (o papillote é a maneira ideal de cozinhar em um forno a vapor) e colocamos junto com o resto de nosso banquete.
Deixamos que o forno fizesse sua mágica e, algumas horas depois, voltamos para recolher a nossa refeição. O pão poderia facilmente ter bastado como um almoço se não tivéssemos nos segurado um pouco. A truta estava macia e cheia de ervas; o pudim de leite ficou muito cremoso.
Mas a estrela do show foi o refogado de cordeiro. A carne era salgada e defumada, o molho cremoso enriquecido com os sucos da carne, a romanesca e a couve-rábano, e tudo banhado com os sabores do tomilho selvagem, da angélica e do lúpulo – que trouxe a doçura do estragão fresco.
No final da tarde, o sol iluminou a paisagem formada muito tempo atrás por fluxos de lava. Parecia um veludo verde-pálido ondulado pela brisa.