Mia Couto: "Não me conformo com a ignorância que mantemos sobre os vírus e as bactérias. Essa ignorância está muito ligada a uma visão antropocêntrica que mantemos do mundo e da vida", diz (Horacio Villalobos - Corbis/Corbis/Getty Images)
Estadão Conteúdo
Publicado em 13 de maio de 2020 às 16h24.
Última atualização em 13 de maio de 2020 às 17h23.
O escritor moçambicano Mia Couto jamais duvidou da força da literatura para, especialmente em um país tão marcado por problemas como o seu, permitir que o povo não abandone sua capacidade de sonhar. Mia comunga da ideia de que a escrita pode ajudar a inventar (e revisitar) um tempo. Movido por tal convicção, escreveu livros cuja prosa poética encanta por se aproximar da oralidade, como Terra Sonâmbula e O Outro Pé da Serea (editados pela Companhia das Letras).
A pandemia do novo coronavírus, no entanto, obrigou o escritor Mia a recolher a exuberância de sua prosa para liberar o cientificismo social do biólogo Eugênio (seu verdadeiro nome) e sua visão mais realista. Passando a maior parte do tempo em sua casa, em Maputo, ele acompanha a evolução da doença com um olhar de cientista, como se observam nessas respostas, enviadas por e-mail.
O isolamento social já foi tratado de diversas formas pela literatura. Em Moby Dick, por exemplo, a aventura de Ishmael revela a fragilidade humana diante do inesperado, do desconhecido. Você acredita que a literatura pode preencher vazios como os que agora surgem?
Na verdade, reli no mês passado A Peste, de Albert Camus. Mas a leitura foi dolorosa demais. O mais que leio agora é literatura científica. Sou biólogo e não me conformo com a ignorância que mantemos sobre os vírus e as bactérias. Essa ignorância está muito ligada a uma visão antropocêntrica que mantemos do mundo e da vida. Sabemos mais sobre o urso panda do que sobre os vírus ou sobre os morcegos que são os hospedeiros da maior parte dos coronavírus. E, no entanto, os morcegos foram capazes de desenvolver mecanismos imunológicos de modo que não adoeçam mesmo com grande cargas virais. Encapsulam os vírus e não chegam a criar as respostas imunes agressivas que, no caso deste coronavírus, nos acabam por matar por via desse fenômeno chamado a cascata imunológica.
Como assim?
Os vírus não podem ser entendidos como os maus da história, os vilões que merecem ser estudados apenas por motivos médicos. Há ainda dúvidas na comunidade científica sobre se considerar essas criaturas como seres vivos ou partículas inorgânicas. Seja o que forem, os vírus são os grandes maestros da orquestra da Vida, são os mensageiros e agentes de troca entre o mais diverso patrimônio genético. Eles não estão "fora" nem "longe", não vivem nos laboratórios. Eles estão onde está a vida, estão dentro de nós. Nosso genoma incorpora elementos virais. Nós somos feitos a partir deles. Os mamíferos não seriam capazes de desenvolver placenta se não tivéssemos incorporado geneticamente esses elementos virais. Falo de tudo isso porque essa pandemia não será a última. Já estávamos avisados que viria algo parecido. E ficamos à espera, embevecidos com nosso poderio tecnológico e com a ilusão da nossa onisciência.
Mais de uma vez, um fenômeno real inspirou fortemente sua escrita. Seria o caso novamente, com a covid-19?
Não creio. Tenho quase pudor por pensar nesses termos com essa tragédia. Aconteceu o mesmo com a guerra. Esse tempo era demasiado cruel, demasiado próximo para que eu pensasse nesse drama em termos literários. Depois, sucedeu. Mas veio por via das histórias, do relato de pessoas. Não era a guerra em si mesma que me interessava, mas o que ela negava em termos da preservação da nossa humanidade. Pode ser que relatos dessa pandemia venham a funcionar como inspiração. Mas agora sou apenas um cidadão que se junta à luta pela prevenção da epidemia. Faço parte da Comissão Técnica e Científica de Assessoria ao governo (de Moçambique) para a covid-19. Trabalho com os meios de comunicação social e com as lideranças comunitárias para difundir mensagens educativas para a contenção da doença. O modo de fazer poesia, agora, é estar na luta pela defesa da vida e da verdade, junto com os demais colegas jornalistas, regressando à condição de jornalista como já fui durante 12 anos.
Há muita expectativa sobre o que está por vir — do ponto de vista emocional, o que mudará na humanidade depois da pandemia: a solidariedade será maior? Haverá mais transcendentalismo ou materialismo?
Não sou muito otimista em relação a uma mudança total. Não iremos despertar amanhã, no final desse surto epidêmico, com uma mentalidade coletiva nova. Tenho dúvidas das mudanças que se alcançam por via do medo. Gostaria, no entanto, de acreditar que haverá lições importantes: por exemplo, uma percepção mais clara da importância do Estado, dos sistemas públicos de saúde e de educação, do ideal da cooperação solidária em vez da competição e da exclusão. Gostaria que ficasse mais clara a falência das receitas neoliberais que, em países como Moçambique, acabaram destruindo as conquistas sociais dos primeiros anos da Independência. Se for verdade que a vacina da BCG ajuda a proteger contra o coronavírus, os moçambicanos só podem agradecer esse período de poder popular em que a totalidade da população se beneficiava de campanhas de vacinação e de cuidados médicos básicos. Não será por causa da medicina privada, inspirada no capitalismo selvagem, que nos iremos proteger nem nesta pandemia nem em nenhuma outra situação de sofrimento.
Do ponto de vista político, acredita que haverá alguma mudança na forma de condução dos grandes mandatários?
Receio que não. Veja como os seguidores de Trump continuam apoiando sua liderança, mesmo depois de suas posturas e declarações completamente imbecis e criminosas. Não quero falar do Brasil, mas receio que seja ainda pior. Os mandatários, conforme refere a pergunta, mandam porque há quem lhes obedeça cegamente. No final de tudo, haverá ainda quem celebre o populismo criminoso em troca de uma falsa promessa de salvação. Tenho, apesar de tudo, esperança que a máscara caia para alguns que não usaram máscara quando era um dever cívico e de respeito pela vida.
Como biólogo, é surpreendente acompanhar pesquisadores de várias partes do mundo trocando informações em busca da vacina, algo até então inimaginável em um setor tão competitivo?
Num caso extremo como esse, não vejo um conflito insuperável entre pessoas e empresas, entre interesses públicos e privados. Acredito que, quando se encontrar a vacina, ela será distribuída de forma bastante acessível. Os lucros virão depois, porque este vírus veio para ficar e vai ser preciso vacinar durante anos. E muito provavelmente as vacinas terão de ser ajustadas em razão das mutações e das estirpes novas dos vírus. Nessa fase, sim, a descoberta cumprirá sua vocação de fazer lucro. O mundo não vai mudar a ponto de deixar de ser conduzido pelas razões de mercado. Devia acontecer agora um momento de ruptura, com a imposição dos valores sociais e dos sistemas nacionais de saúde sobrepondo-se à medicina como um meio de negócio privado. Há uma criatura tão invisível como o coronavírus que vai teimar em ficar. Chama-se mercado.
Você mantém alguma rotina de escrita ou a reclusão forçada não oferece a mesma comodidade intelectual do habitual?
Não creio que este seja o melhor ambiente para a criação. Primeiro, porque é forçada. Depois, porque não posso esquecer que, apesar de tudo, vivo uma quarentena de luxo. Não é possível pensar que, para a maioria dos moçambicanos, esse confinamento tem implicações de sobrevivência muito graves. O sofrimento dessa gente não pode ficar fora de nossas casas por muito que nos fechemos dentro de quatro paredes.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.