Medicina tradicional: a curandeira Uwanyirigira Zamuda, que aprendeu em treinamento a fazer o diagnóstico primário de malária e tuberculose e a identificar possíveis casos de aids (Aretha Yarak/VEJA.com/Divulgação)
Da Redação
Publicado em 27 de novembro de 2011 às 11h28.
Ruanda - Quando um cliente chega desesperado em busca de ajuda, Zamuda prepara a pele de cobra e a de leopardo. Sentada no canto de um cubículo abafado e sujo, ela se concentra para receber as vibrações que a mistura de pedacinhos das peles provoca. Zamuda descobre, então, o que tanto aflige a pessoa à sua frente. E ela cobra caro por isso: se a poção der certo e a cura vier, a conta pode chegar a 200 dólares. Para cada caso, ela retira uma solução de dentro da velha despensa de madeira: alergias se tratam com remédio à base de pós e plantas naturais; mau olhado ou maldições, com um trabalho com pele de cobra. Mas se os sintomas indicarem uma suspeita de malária, tuberculose ou mesmo de aids, Zamuda deita seus utensílios para enfrentar um novo desafio: levar o cliente até o centro de saúde mais próximo.
Pode não parecer, mas Uwanyirigira Zamuda, 38 anos, curandeira por herança da avó, tem um importante papel no programa nacional de prevenção ao HIV/aids. Com financiamento do Fundo Global, o projeto tenta aproveitar a presença maciça dos curandeiros nas áreas rurais do país, com treinamentos na área da saúde, para chegar a quem precisa. A preocupação tem base estatística: 83% dos 10 milhões de habitantes estão em áreas rurais, algumas bem longe dos centros de saúde. A ideia é trabalhar em conjunto, e não segregar. Assim, Zamuda garante seu espaço e clientela, mas ajuda a evitar que as epidemias se alastrem pelo interior. "Depois do treinamento, tenho mais certeza em identificar quando o paciente tem suspeita de tuberculose, malária ou HIV. Assim que identifico os sinais corro com ele para o centro de saúde", diz.
O incentivo vai além do altruísmo: são 1.000 francos de Ruanda (menos de 2 dólares) para cada paciente encaminhado corretamente. Zamuda, que precisa estar junto com o paciente quando ele dá entrada no centro de saúde, diz que o dinheiro não é o motivador. "Acredito no que estou fazendo. O dinheiro é bom sim e ajuda, mas se levo o paciente até o centro é porque tenho responsabilidades para com a minha comunidade", diz. Antes de seguir até o posto de saúde mais próximo, Zamuda precisa conversar sobre a doença, explicar o tratamento e a importância de se seguir à risca as orientações médicas. "Faço meu trabalho para garantir que a pessoa se trate."
O treinamento oferecido pelo governo é simples, rápido e se baseia em dois pilares fundamentais: conscientizar um número cada vez maior de pessoas sobre a importância do tratamento e da prevenção dessas três doenças e ensinar agentes de saúde — e curandeiros tradicionais, como Zamuda — a fazer o diagnóstico primário de maneira correta. Todos os anos, os treinamentos são refeitos, para incentivar a permanência dos agentes no programa, para reciclagem e, se possível, aumentar o número de participantes. Até o momento, 6.101 curandeiros já foram treinados — não há números oficiais sobre o total existente no país. Apesar disso, todo o treinamento tem dado bons resultados. Zamuda, que foi treinada há três anos, já encaminhou quatro pessoas doentes para o centro de saúde – ela atende, em média, três clientes por dia.
Doença do espírito — Do lado direito da fronteira, no vizinho Quênia, a relação com os curandeiros ainda é instável. No começo da epidemia de aids, era comum os infectados acreditarem em maldições. Isso significava que quem estava com HIV tinha um problema espiritual, não uma doença. Daí milhares apostarem na cura dos curandeiros e em mitos, como a urgência do banho frio após o sexo para que o vírus fosse eliminado do corpo. Hoje, esses curandeiros ainda interferem no tratamento da aids, mas com uma relevância menor.
De acordo com Mwagiru Josephine, médica responsável pelo setor de HIV do Hospital Distrital de Mbagathi, há um número grande de pacientes que acaba recorrendo primeiro a esses curandeiros. Os medicamentos prescritos por eles costumam ser um tipo de bebida, normalmente fruto de misturas de ervas e plantas. "Eles acabam nos procurando quando percebem que não estão melhorando, e chegam aqui muito doentes", diz. Em outras situações, o paciente, após fazer todo o tratamento com antirretrovirais no hospital ou em centros especializados, acaba por abandonar a terapia e voltar à medicação receitada pelo curandeiro.
O número de casos em que isso acontece não é documentado, mas acredita-se que venha diminuindo lentamente conforme os trabalhos de conscientização em massa sobre a doença são realizados tanto pelo governo quanto por instituições autônomas ou não-governamentais. A confiança na medicina tradicional, no entanto, está enraizada na cultura local e não diz respeito só à aids. "Até pessoas educadas chegam a procurá-los por motivos variados. Crença e fé são assuntos que não se questionam", diz Josephine.