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Os sonhos frustrados na região do vinho da Rússia e o dedo de Putin

O renascimento da vinicultura fina russa é uma história de sucesso da era Putin. Além das videiras, no entanto, há uma história mais sombria

Vinhedos da vinícola The Marchenko em Anapa, na Rússia (Sergey Ponomarev/The New York Times)

Vinhedos da vinícola The Marchenko em Anapa, na Rússia (Sergey Ponomarev/The New York Times)

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Daniel Salles

Publicado em 18 de novembro de 2020 às 09h54.

Anapa, Rússia – A Rússia não tem escassez de inovadores, empreendedores de risco e livres-pensadores. No entanto, o país não foi construído para eles. Cedo ou tarde, o aparato de segurança do Estado mostra sua cara indesejada. Visite as encostas russas do Mar Negro e você verá que isso se aplica até mesmo ao vinho.

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Vladimir Prokhorov faz vinho com o produto de suas videiras há 30 anos. Ele nunca esteve no exterior, muito menos em Portugal, mas seu Madeira é mágico. Sua adega é seu santuário, onde um ícone de Jesus fica ao lado do termômetro, e aonde ele e sua esposa nunca vão quando estão de mau humor.

Mas os barris de carvalho – marcados a giz "2016 Muscat Hamburg", "2016 Cahors" – agora fazem um som oco quando você os toca. A polícia apareceu no ano passado em sua vinícola no sul do país e esvaziou todos eles.

"Eu os odeio. Eu os odeio com um ódio feroz", disse Prokhorov, referindo-se aos policiais, batendo o punho esquerdo na palma da mão direita.

À primeira vista, o renascimento da vinicultura fina russa, que atende ao gosto mais refinado dos russos, é uma história de sucesso da era Putin. Além das videiras, no entanto, há uma história mais sombria e muito russa de grandes sonhos, esperanças frustradas, pesadelos burocráticos e incursões policiais.

Descendente de gregos, Ivan Karakezidi toca flauta no espaço onde armazena vinhos em Anapa (Sergey Ponomarev/The New York Times)

Muitos dos menores e mais inovadores enólogos da Rússia, com a aprovação informal das autoridades locais, operaram durante muito tempo sem licença, considerando-as proibitivamente complicadas e caras. Então, cerca de dois anos atrás, as autoridades federais começaram a repressão, dando fim aos anos do boom das vinícolas do país.

A Rússia tem mais de 17 milhões de quilômetros quadrados de território, a maior parte congelada durante todo o ano, e grande parte do solo rendendo pouco, exceto algumas frutas vermelhas e, de vez em quando, uma presa de mamute que sai do chão que derrete.

Mas há um trecho estreito, dos sopés do Cáucaso à Criméia, onde a terra suavemente ondulada e de um verde profundo, com o sol quente do outono, lembra uma tarde toscana. Os gregos antigos faziam vinho por aqui, assim como os czares, que trouxeram a técnica francesa.

Os soviéticos coletivizaram os vinhedos e transformaram a vinificação em empreendimentos de escala industrial, como o château do proletariado, o Kubanvinogradagroprom.

Em áreas ricas em vinho, como a cidade resort de Anapa, já houve máquinas automáticas vendendo um riesling geladinho no copo. Em casa, em seus porões, as pessoas aperfeiçoavam as próprias técnicas de pequena produção.

Hoje, a costa do Mar Negro é a terra dos sonhos dos enófilos, atraindo pessoas de todo o país que querem tentar fazer o próprio vinho em seu solo rochoso. A maioria das principais variedades de uvas europeias e algumas obscuras, desenvolvidas pelos soviéticos, e de tipos nativos como a krasnostop zolotovsky, são cultivadas aqui.

Para o presidente Vladimir Putin, restaurar os dias de glória da era czarista da vinificação russa se mistura com sua missão de tornar a Rússia grande novamente. Oligarcas aliados do Kremlin despejaram milhões de dólares nos vinhedos russos de elite, e um dos chefes de propaganda de Putin, o apresentador de televisão Dmitri Kiselyov, tornou-se o líder da associação de vinificação do país no ano passado.

Portanto, faz sentido que uma seção da feira anual da região agrícola sul da Rússia, Krasnodar Krai, seja dedicada ao vinho. Porém havia algo estranho no cavernoso salão de convenções em Krasnodar, a principal metrópole da região, quando visitei a feira no início de outubro: os homens que vendiam seus merlots e sauvignon blancs pareciam cautelosos com os jornalistas.

Como explicação, Andrei Greshnov, ex-banqueiro de Moscou, apontou para suas garrafas. Não havia selos de consumo, normalmente necessários para o álcool vendido na Rússia.

A licença para fazer e vender vinho estava muito cara para os pequenos produtores como Greshnov. Por isso, ele e dezenas de outros operavam fora da lei, com a aceitação silenciosa de autoridades locais, que os viam como parte da identidade da região e que também bebiam seus vinhos. Mas, nos últimos dois anos, as autoridades federais russas se intrometeram nesses acordos tácitos.

"Entendemos que eram principiantes que precisavam ser apoiados. Eles conseguiram fazer acordos com as administrações locais para que fossem deixados em paz. Agora isso é impossível. Eles foram pressionados, para falar claramente", disse Emil Minasov, alto funcionário do Ministério da Agricultura da região de Krasnodar, a respeito dos enólogos não licenciados.

As autoridades afirmam que estão combatendo a evasão fiscal e a produção sem qualidade, que são de fato problemas na Rússia. Mudanças recentes na lei devem facilitar a legalização das pequenas vinícolas.

Entretanto, Minasov calcula que as vinícolas ainda precisam produzir pelo menos 40 mil garrafas por ano apenas para cobrir a despesa da licença – US$ 6 mil no mínimo – e, o que é mais problemático, para se ajustar às inúmeras normas de construção e às exigências de relatórios. Ele acrescentou que acredita que os pequenos produtores não devem ser obrigados a se licenciar, "mas, lá em cima, ninguém nos escuta".

Em uma encosta à beira-mar, Ivan Karakezidi, descendente de gregos que atende por Yannis, estava ao telefone com outro advogado. Desde a década de 1990, Karakezidi, de 64 anos, tem sido um dos vinicultores mais conhecidos da região, organizando festas em seu complexo, que lembra uma vila mediterrânea.

Diz ele que a polícia apareceu em sua propriedade às seis da manhã de um dia de junho, pulou a cerca e apreendeu 4.545 garrafas de um vinho de alta qualidade, incluindo seu premiado cabernet sauvignon de 2003. Seu filho está na prisão, supostamente pego em uma operação por vender vinho sem licença. Karakezidi insiste que é vítima de um esquema de empresários bem conectados para ganhar o controle de seus vinhedos diferenciados.

Trabalhadores colhem uvas na vinícola Karakezidi, em Anapa, na Rússia (Sergey Ponomarev/The New York Times)

Se seus problemas legais aumentarem, ele está preparado para deixar o país. "É contraproducente fazer negócios aqui. Não importa o que aconteça, eles vão condená-lo, prendê-lo, tirar tudo de você", desabafou Karakezidi.

Antes de sair, ele mostrará àqueles que tomarem conta de sua propriedade "onde fica a sala de degustação e onde fica o banheiro, para que eles não se confundam".

Alguns pequenos produtores conseguiram obter a licença, mas questionam se serão capazes de sobreviver.

Em uma tarde recente, o quintal de Olga e Vadim Berdyayev, nos arredores de Anapa, estava tomado pelo rico cheiro de uvas fermentando. Um vizinho os ajudava a despejar baldes de cabernet franc em uma prensa enquanto Vadim Berdyayev, em sua garagem forrada de tonéis de aço, verificava a densidade do riesling deste ano em um tubo de ensaio.

O casal, ambos arquitetos, fabricava cerveja em sua região natal, a Sibéria, e descobriu a vinificação quando se mudou para a costa do Mar Negro há 12 anos. Fazer vinho é como criar uma criança, segundo Olga Berdyayeva: às vezes há uma doença e é preciso um tratamento, e às vezes é possível notar o talento, "e você começa a se maravilhar e a sonhar".

Eles vendiam seu produto em feiras e a turistas que visitavam a vinícola. Mas, há dois anos, ficou claro que os bons tempos haviam acabado: o governo afirmou que até as menores vinícolas tinham de obter licenças. Isso significava gastar cerca de US$ 7 mil em papelada, ventilação e um scanner especializado para os selos de imposto de consumo, submeter-se a controles e inspeções rigorosas, e monitorar cada garrafa produzida com software governamental especializado e códigos exclusivos de 19 dígitos.

Olga Berdyayeva largou o emprego para se concentrar na burocracia, e o casal conseguiu sua licença. Em vez, porém, de se sentir consolado, Vadim Berdyayev diz que agora vive com medo constante de inspeções ou de algum erro na papelada. Seu estresse era o mesmo cri de coeur de muitos russos que lutam com o poder descontrolado da polícia: "Estou nesse constante estado de tensão, achando que, Deus me livre, posso fazer algo errado. Às vezes não entendo mais o vinho, e acho que o estou arruinando, e isso é realmente deprimente."

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