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O oportunismo de empresas e os artistas negros

Os esforços das grandes corporações para combater o racismo têm soado vazios para alguns negros que trabalham em áreas de criatividade

A estilista Dionne Clouser em Los Angeles (Maggie Shannon/The New York Times)

A estilista Dionne Clouser em Los Angeles (Maggie Shannon/The New York Times)

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Daniel Salles

Publicado em 18 de outubro de 2020 às 06h15.

As ruas de Nova York estavam lotadas de manifestantes quando Shantell Martin recebeu um e-mail de uma agência de publicidade em junho.

Mensagem: a United, empresa de propriedade da companhia global de publicidade McCann, queria saber se Martin, artista plástica negra, estaria interessada em criar um mural sobre o movimento Black Lives Matter na loja da Microsoft na Quinta Avenida. E será que poderia fazê-lo, dizia o e-mail, "enquanto os protestos ainda são relevantes e os conselhos ainda estão reunidos, idealmente até o próximo domingo?".

Vários outros artistas negros receberam o mesmo e-mail. Em uma carta aberta à Microsoft e à McCann, Martin e os outros artistas descreveram o convite como "chocante e de alguma forma previsível". Escreveram também que a atitude "denota um oportunismo revelador e perigoso".

"Em sua pressa em retratar uma solidariedade pública com o movimento Black Lives Matter, as empresas correm o risco de mais uma vez cair no que nos trouxe até aqui: a instrumentalização e a exploração do trabalho, das ideias e do talento dos negros para, em última análise, o benefício e a segurança das próprias empresas", escreveu o grupo.

Os esforços das grandes corporações para apoiar publicamente os protestos contra o racismo e a brutalidade policial têm soado vazios para alguns negros que trabalham em áreas de criatividade.

Artistas, modelos, estilistas, redatores e outros disseram ter sido chamados para dar legitimidade a empresas que não cumprem os princípios de diversidade e inclusão. Eles contam que haviam sido limitados a papéis em campanhas publicitárias ou penalizados quando se opuseram a esforços que consideravam insensíveis, e haviam sido mal pagos ou não tinham recebido o devido crédito por seu trabalho.

Depois que Martin postou o pedido do mural no Instagram em seis de junho, vários funcionários da McCann lhe disseram que a agência havia entrado em contato com ela e outros artistas, apesar de algumas objeções internas sobre como o projeto estava sendo tratado, afirmou ela em uma entrevista. Tanto Chris Capossela, diretor de marketing da Microsoft, quanto Harris Diamond, o executivo-chefe da McCann, pediram desculpas publicamente a Martin no Twitter.

"A linguagem usada no e-mail estava completamente errada", escreveu Diamond. A Microsoft declarou em comunicado que a mensagem foi "um erro inaceitável" e que a empresa assumiu "total responsabilidade".

Um grupo de profissionais de marketing, Lexie Pérez, Julian Cole, Stephanie Vitacca e Davis Ballard, começou a monitorar a enxurrada de declarações de solidariedade de empresas em um documento aberto do Google Slides que lançaram em cinco de junho. Eles observaram que essas empresas muitas vezes pareciam "buscar o melhor tipo de participação", banalizando o movimento Black Lives Matter com "platitudes vazias e vagas", não fornecendo planos concretos para uma mudança e ignorando internamente as queixas de desigualdade.

A artista Shantell Martin no Brooklyn (Demetrius Freeman/The New York Times)

"Essa é uma questão atual. Tornou-se quase um padrão para as empresas, porque todo mundo espera que elas tenham algum tipo de presença social quando explicam como se alinham na questão racial", observou Sonya Grier, professora de marketing da American University.

A chamada arte de protesto apareceu nas portas e janelas de marcas de luxo como Free People, 7 For All Mankind e Hugo Boss. Dezenas de empresas participaram do #BlackoutTuesday no Instagram em junho, postando uma foto toda preta no feed com legendas expressando solidariedade ao movimento.

Mas os consumidores estão cada vez mais sensíveis à forma como as empresas exprimem suas posições. Vinte por cento dos adultos americanos entrevistados no fim de junho disseram que parariam de comprar de uma empresa considerada hipócrita em relação à violência policial e à injustiça racial, declarou a Opinium, firma de pesquisa de mercado e opinião.

Depois que a gigante editorial Condé Nast e o site Refinery29 apoiaram publicamente o movimento Black Lives Matter, foram acusados de maltratar funcionários de cor. Verificou-se que as diretrizes higiênicas para funcionários de lojas da grife australiana Zimmerman, que recentemente denunciou o racismo e citou o arcebispo Desmond Tutu em sua conta no Instagram, discriminam mulheres negras que usam seu cabelo natural.

Em um comunicado, a Zimmerman frisou que condenava o racismo e estava "determinada a fazer parte de mudanças significativas e positivas na indústria da moda global".

Muitos artistas são autônomos e não contam com a proteção de um departamento de recursos humanos ou com uma representação em pesquisas corporativas. Eles, como Martin, disseram que frequentemente recebiam pedidos de informações sobre iniciativas de diversidade, mas não eram compensados como consultores.

Em junho, a estilista Dionne Clouser viu uma produção de sua marca Dionne by T reproduzida na conta do Instagram da marca de moda Pretty Little Thing. Ela já tinha visto seu trabalho ser usado sem crédito, mas, dessa vez, o roubo parecia especialmente descarado. Clouser contou que, apenas alguns meses antes, tinha recusado uma oferta para ser embaixadora da marca.

Mas, como dona de uma pequena empresa com fundos limitados, ela optou por não processar a empresa muito maior. A Pretty Little Thing se recusou a comentar. "Já me acostumei, mas me deixa um tanto revoltada", queixou-se Clouser.

Lydia Okello, influenciadora negra, contou que também se sentia impotente para enfrentar grandes empresas de moda. Okello recebeu a oferta de uma roupa gratuita da Anthropologie se publicasse conteúdo no Instagram e fornecesse várias imagens à empresa para uma campanha nas redes sociais referente ao mês do Orgulho Gay. Okello respondeu com sua tabela de preços, mas disse que o produtor que a havia contatado evitou repetidamente seu pedido de pagamento – tratamento que ela não acredita que um influenciador branco e hétero teria recebido.

A URBN, empresa proprietária da Anthropologie, afirmou em comunicado que agiu mal no "primeiro contato com Lydia". A empresa disse que estava avaliando como tornar mais transparentes e respeitosas as interações futuras com influenciadores, ao mesmo tempo que deixava claras as diretrizes de compensação.

"Trabalhei como uma pessoa negra criativa durante toda a minha vida adulta, e notei que muitas vezes há uma suposição de que você deve se sentir lisonjeado pelo fato de uma grande empresa procurá-la, notá-la, e isso reflete uma narrativa cultural maior, de que o trabalho criativo de grupos marginalizados é menos valioso. É tipo 'cale-se e aceite, ou encontraremos outra pessoa'", disse Okello.

A falta de diversidade nos papéis de liderança na indústria agrava o problema. Agências de publicidade e executivos de marketing de empresas como General Motors, McDonald's e Walmart prometeram abordar o assunto em uma carta pública.

Mas as mensagens de solidariedade, embora encorajadoras, "soam vazias diante de nossas experiências cotidianas", de acordo com uma carta assinada por centenas de funcionários negros da publicidade em junho.

 

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