O Diabo Veste Prada (O Diabo Veste Prada/Reprodução)
Daniel Salles
Publicado em 27 de outubro de 2020 às 10h05.
O ano é 2006, o dia é 6ª feira e você dá uma conferida nos filmes em cartaz nos cinemas. Que tal assistir “O Diabo Veste Tecido Utilizado em Tendas Militares”? Se o nome do filme pareceu pouco interessante e levou você a pensar no caráter técnico do tal tecido, parabéns. Você acaba de entender a diferença entre produto e marca. Quer entender a evolução da pandemia e o cenário de reabertura do país? Acesse a EXAME Research
Produtos existem para resolver problemas. Sejam eles físicos ou espirituais, racionais ou emocionais, da mais profunda necessidade ou da mais inacreditável superficialidade. Marca é outra história. Enquanto o produto leva você a refletir diretamente sobre funcionalidade, marcas bem construídas conseguem transportar pessoas a universos de significados muito mais amplos, com códigos múltiplos e cuidadosamente costurados para criar conexões – preferencialmente de longo prazo.
O incrível sucesso do filme O Diabo Veste Prada (2006 – oh, yeah, quase 15 anos!) é resultado direto da história por trás do livro que deu origem à produção. Pra quem não sabe, a autora (Lauren Weisberger) trabalhou na Vogue americana como assistente da quase fictícia – de tão icônica – editora-chefe da publicação, Anna Wintour. A partir daí o mundo todo começou a se perguntar sobre o que teriam em comum a personagem Miranda Priestley, interpretada por Meryl Streep, e Ms. Wintour. Ainda que, praticamente no limiar do deboche, Lauren tenha sempre afirmado que “Imagina, esse livro não tem nada de autobiográfico. É ficção, tá?”. Tá.
O livro, de 2003, virou best-seller porque misturou uma história suculenta (capaz de instigar a curiosidade até de quem não se importa com moda), uma estratégia de divulgação notável e um detalhe absolutamente crucial para vender uma ideia: um nome memorável. O Diabo Veste Prada contém uma marca forte no título e isso, por si só, já garante enorme vantagem competitiva. Mesmo sem saber do que se trata a obra, você já acessa um gigantesco território de significados possíveis, que inclui: moda, luxo, alta-costura, desfile, glamour, a família Prada, Itália, couro Saffiano e até – quem diria? – náilon usado em tendas militares. Calma, que esse texto traz os bastidores explicativos.
A genialidade de Miuccia Prada (neta do fundador, Mario Prada), em meados dos anos 70, permitiu que ela enfrentasse o resistente mundo fashion ao testar náilon Poccono (tipicamente usado na confecção de tendas militares) na produção de bolsas e mochilas. Não se tratava de uma transgressão sem sentido ou de uma fúria adolescente. O que Miuccia queria (e conseguiu) era se conectar com os anseios dos consumidores de luxo daqueles tempos, que buscavam desesperadamente um shot de frescor. Tecidos mais leves, práticos e originais – sem perder o caráter premium – se transformaram em bolsas, mochilas, pastas, carteiras e uma série de outros produtos que fazem sucesso até hoje.
Adotar um novo tecido, até então impensável para a alta moda, foi só o começo. Sob a gestão de Miuccia, a Prada evoluiu muito além das passarelas e se tornou referência em diversidade, tecnologia, brand content (vale checar o curtinha dirigido por Roman Polanski) e arte – Fondazione Prada está aí para provar (http://www.fondazioneprada.org).
Ao longo dos anos, a Prada se reinventou como marca lendária, fluida, criativa, forte como o corte impecável de suas roupas e delicada como a explícita e curiosa timidez de Miuccia. Uma mistura tão especial que provocou uma das declarações mais famosas de Anna Wintour: “Prada é o único motivo para assistir à temporada de moda de Milão”. Portanto, sim, acredite: essa combinação mágica de atributos, aliada ao incontestável talento de Hollywood para contar histórias, ajudou O Diabo Veste Prada a se tornar um blockbuster global.
Marcas funcionam como atalhos para que o consumidor entenda rapidamente as mensagens, as propostas e as ofertas das empresas. Sola vermelha é esquisitice? Ou é ousadia chamada Louboutin? Tachinhas de metal em forma de minúsculas pirâmides podem ser poluição no visual. Mas, se forem os “Spikes” do Valentino, também podem ser transgressões chiques. E o excesso de azul, dos pés à cabeça? Cansativo? No universo Tiffany é a cor inconfundível.
Batalha entre produtos é guerra de preço, composição técnica, bula e prazo de validade. Batalha de marcas é expor e praticar valores, pensamentos, atitudes e personalidades para que o próprio consumidor escolha quem pode fazer parte da vida dele – e decidir se aquele valor intangível faz ou não sentido. Ah, e o mais legal disso tudo? Esse jogo não é exclusividade da moda. Pense nas marcas que você admira, de qualquer segmento (tecnologia, alimentos, bebidas, automóveis, games etc) e tente separar o tangível do produto com o intangível da marca. Você continuaria cliente ou admirador?
“O Diabo Veste Tecido Usado em Tendas Militares”, mesmo que inspirado na sacada de mestre de Miuccia Prada, teria tudo para virar piada ou, no mínimo, desinteresse do público. Náilon Poccono é chato. Prada é luxo divertido e atemporal. Que história você prefere?