O grande gênio do futebol mundial só precisa brilhar na seleção argentina para entrar no rol dos imortais (Getty Images)
Da Redação
Publicado em 16 de dezembro de 2011 às 13h36.
São Paulo - Entre as dezenas de jogadores, jornalistas e papagaios-de-pirata que zanzam pelo corredor anexo à sala de imprensa do Fútbol Club Barcelona, apenas uma pessoa é mais baixa do que o porteiro Sergi, um adolescente catalão mirrado e espinhudo. E é Sergi quem abre a porta da garagem aos jogadores e dá passagem justamente a seu sucessor nesse ranking imaginário de estaturas. Trata-se de um jovem de cabelos lisos e molhados, olhar pouco penetrante, barba por fazer, bermuda creme, tênis e camisetas brancos que uma multidão reconheceria: Lionel Messi. Ele se deixa fotografar ao lado de um penetra e um jornalista, entra em seu Audi preto e desaparece. Aos 24 anos, Messi está desde 2003 no fantástico clube pelo qual conquistou uma coleção de títulos, incluindo três Copas dos Campeões da Europa – a última, com direito a um golaço seu – e cinco campeonatos espanhóis.
Ele é a grande estrela dos soldados do técnico Josep “Pep” Guardiola, com a ajuda dos quais quebra recordes semanalmente. O último foi a marca de 53 gols em 55 jogos, número máximo em uma única temporada em 112 anos de história barcelonista. Simboliza a perfeição a fórmula futebol arte + correção política de um dos grandes times da história, e o sucesso do modelo atual do clube, de investir na formação de jogadores (Messi e mais sete titulares se criaram no Barça, como aliás o próprio Guardiola). Para muitos, Messi só poderia ter sido obra do Barcelona.
“Sempre sinto que vou ganhar”, admitiu o craque recentemente, ignorando sua habitual modéstia. Canhoto infernal de velocíssimos dribles e pontaria perfeita, ele é considerado pela FIFA o melhor do mundo há dois anos, título que deve manter em 2011, igualando o feito de Michel Platini, com três troféus seguidos. “Messias”, como é chamado pelos fãs mais ardorosos, foi o boleiro mais bem pago do planeta em 2010. Embolsou cerca de 31 milhões de euros, de acordo com a revista France Football. Dois terços dessa fortuna vêm de mais de 20 contratos publicitários com marcas como Pepsi, Adidas e Dolce & Gabbana. Para tirá-lo do Barça, seriam necessários 250 milhões de euros, contando o passe avaliado em 100 milhões (6 a mais do que a transação recordista até hoje, a do rival Cristiano Ronaldo, que foi do Manchester United ao Real Madrid) além da multa rescisória de 150 milhões. Se seguir nesse ritmo, Messi poderá ganhar uma cadeira no hall dos imortais: Pelé, Di Stéfano, Maradona, Beckenbauer e Cruyff, nessa ordem, segundo a FIFA.
“Não vou mentir para você: nunca imaginamos que ele chegaria a ser o que é hoje”, confessa Jorge Horacio Messi, pai e empresário do craque, um cinquentão cujo insistente mullet poderia fazê-lo passar por um integrante da banda Faces, de Rod Stewart e Ron Wood. “Leo”, ou “Lio”, sempre foi precoce. Aos 7 anos, já corria pelos gramados do Newell’s Old Boys, clube de sua Rosario natal, e aos 11 o River Plate só o dispensou porque não topou pagar os três anos de tratamento da deficiência no hormônio GH, que impedia seu crescimento. “Sempre fui o menor da escola, disparado”, conta Messi, hoje com 1,69 de altura (ele afligia seus pais por ter estagnado em 1,32 até os 11).
A metalúrgica onde Jorge Messi trabalhava pagou temporariamente o custo de 900 dólares mensais, e ele mesmo, um toco de gente, aplicava as injeções, cada noite em uma perna. Era o começo do milênio, a economia argentina ruía e a presença de parentes em Lleida, na Catalunha, apareceu como uma saída à família de poucos recursos. Enquanto isso, chegava às mãos de Josep Maria Minguella, mitológico empresário catalão que levou ao Barça Maradona, Romário e Rivaldo, um vídeo com os lances de, em suas palavras, “um meia-esquerda de 13 anos, mas que parecia ter 7”. “Custou convencer a diretoria, porque à época não se contratavam jogadores tão jovens”, relembra o hoje aposentado Minguella, um senhor atarracado refestelado em uma poltrona de seu escritório/mansão em Barcelona.
O pé atrás diante do “jogador de pebolim” só sumiria quando, por pressão de Jorge Messi, Minguella acionou Carles Rexach. Ex-jogador e então auxiliar técnico do Barça, ele montou um jogo-teste para o aspirante de cabelo cuia, no qual o menor dos shorts parecia uma bombacha, contra atletas mais velhos. “Ele era muito tímido, pequeno, supercalado, parecia que seria assim no campo também; mas se transformou, marcou cinco gols”, relata um falastrão Rexach. “Podem contratá-lo”, foi seu veredito. Faltava, porém, providenciar a nacionalidade espanhola do jovem astro, trabalho para o pai e o pagamento das injeções que permitiriam seu crescimento. Após três semanas de impasse, durante as quais o clã Messi – Jorge, a mãe Celia María, Lionel e mais três filhos – já passara por dois hotéis, o pai do prodígio deu um ultimato a Rexach.
O que se sucedeu já é lenda para os barcelonistas. “Me comprometi a assinar um contrato na frente dele. E o assinei em um guardanapo”, diz Rexach, garantindo que não mais possui o inestimável pedaço de papel – pena, caberia com honra no museu do Barça.De setembro de 2000, quando chegou com a família, à sua estreia no time principal aos 16 anos, foram apenas três temporadas, período em que Lionel arrasou ao lado de outros novatos como Gerard Piqué (atual zagueiro azul-grená) e Cesc Fábregas (hoje no Arsenal de Londres). Em maio de 2005, ele marcou pela primeira vez em um jogo oficial, um golaço por cobertura contra o Albacete, recebendo passe magistral de Ronaldinho. À época, o gaúcho maravilhava o planeta e devolvia o orgulho aos barcelonistas após anos de seca. Na comemoração, “Ronnie” carregou Messi de cavalinho, exibindo ao Camp Nou a nova amizade. Messi escolheu morar em Castelldefels, ao lado de Barcelona, para estar perto do novo amigo, a quem passou a considerar um irmão mais velho (cem metros separavam as mansões).
A aproximação com o hoje meia do Flamengo e com outros dois brasileiros, Deco e Sylvinho, começara quando o argentino fora convocado para uma excursão à China, ainda em 2003. “Deco lhe disse: ‘você é o único argentino que pode sentar com os brasileiros’”, recorda a comentarista de TV Cristina Cubero. Ronnie erguendo o sucessor nas costas seria o retrato da passagem de cetro entre duas espetaculares gerações, ainda que o brasileiro reinasse por mais um ano antes de seu vertiginoso declínio. O último encontro público entre os dois ocorreu no amistoso entre Brasil e Argentina, vencido por 1 a 0 pelos hermanos em novembro de 2010, no Qatar, com o primeiro gol de Messi na Canarinha. Tendo a camisa de Ronaldinho no ombro, ele deu um tapinha na barriga e um beijo na bochecha do amigo, que retribuiu com um abraço e um: “estoy viejo, ya”.
Os relatos sobre a introspecção de Messi são unânimes – e endossados pelo próprio com frases como “pagaria para ser anônimo”. As entrevistas coletivas se tornam, para ele, uma tortura. Na mais recente que concedeu, por ocasião da Copa dos Campeões, respondeu, sem entusiasmo e com a voz vários decibéis abaixo da do assessor de imprensa, dezoito perguntas em dezessete minutos. Lio chegou a ser chamado de “el catalán” pela imprensa argentina, não só pela irrestrita adoração que os barcelonistas lhe guardam – a ponto de perdoarem sua falta de domínio do idioma catalão – mas por seu low profile. “É um garoto indecifrável emocionalmente”, resume, de Buenos Aires, o jornalista argentino Roberto Martínez, do site Toque y Gambeta. Martínez ficou amigo de “La Pulga”, como os compatriotas chamam o camisa 10 de sua seleção, quando ele tinha 14 anos. “Íamos almoçar juntos e ele era capaz de passar 40 ou 50 minutos sem dizer uma única palavra”, diz. Já Josep María Minguella rememora os churrascos aos quais convidava atletas titulares do Barça no início da década passada, como o argentino Riquelme. “Messi os olhava como se fossem deuses, quase não conseguia encará-los”, conta.
“Nem mesmo seus companheiros desde o juvenil sabem muito dele”, observa Marcos López, colunista do El Periódico, de Barcelona. “Ele tem uma maneira íntima de ser competitivo, não pensa na fama e no dinheiro. Há até um ponto infantil nisso: ele só quer jogar futebol”. Messi também é discreto e eficiente no campo. Raramente reclama das pancadas, não provoca os zagueiros, seus dribles são objetivos e se contunde pouco. Jamais teve um atrito neste Barcelona aparentemente perfeito, em cuja escalação figuram “só” os três melhores do mundo – depois de Messi vêm Andres Iniesta e Xavi Hernández. “A relação entre nós três vai muito bem, como sempre”, responde um desconfiado Iniesta na saída de um treino. Há duas temporadas no time, o brasileiro Maxwell fala de Leo com brilho nos olhos. “Ele fica ainda maior por causa de seu caráter”, afirma. “É um cara fenomenal”.
No entanto, há indícios de que o próprio Messi já não tenha mais tanta paciência com sua imagem de bom moço. A pegada de um astro mais adulto e independente começa a aparecer, tanto na troca do visual (de cabeludo nerd imberbe pelo de roqueiro indie que toca Oasis nas horas vagas), quanto na cueca apertada que veste na campanha da Dolce & Gabbana; tanto em sua frota automobilística (além do Audi, uma Ferrari F430, uma Maseratti, um Dodger Charger e um Lexus), quanto na explosão com que comemorou o gol na final da Champions. E, sobretudo, em sua lista de “modelos-atrizes” argentinas, como a morenaça de seios enormes, ex-Big Brother, Andrea Rincón. Ele nega todos os affaires. “A vida privada é o que ele mais aproveita”, conta Jorge Messi.
Por “vida privada” entende-se em grande parte simplesmente dormir. Ou fartar-se com carnes argentinas com o ramo da família radicado em Barcelona, Jorge e o primogênito Rodrigo, chef de cozinha e pai de dois dos três sobrinhos de Leo. Muitas vezes, eles estão acompanhados pelo resto do clã, que vive entre a cidade catalã e Rosario: Celia, com quem estrelou um anúncio de iogurtes; o segundo irmão mais velho Matías, encrenqueiro da turma, fichado na polícia de Rosario por porte ilegal de armas, e que em abril teve a casa atingida por disparos; e a caçula adolescente María Sol.
O maior desafio de Messi e seu passaporte definitivo para o panteão dos gênios da bola é a seleção argentina. Dono de dezessete troféus com o Barcelona, “La Pulga” ainda não decolou à frente da equipe que representa seu país. Com a 10 que foi de Maradona, faturou apenas o desprestigiado torneio olímpico de 2008. Chegou como grande astro mundial à África do Sul em 2010, com o ídolo Don Diego no banco. Fez apenas um bom torneio, sem marcar. A alviceleste caiu nas quartas-de-final após um humilhante 4 a 0 dos alemães. Mas Leo deixou claro seu amor à pátria na conquista do Campeonato Espanhol no ano passado, quando surpreendeu os companheiros do Barcelona ao esbravejar no microfone: “¡Aguante, Argentina! ¡La concha de tu madre!” (algo como: “Força, Argentina! P… que o p…!”).