Lives: Artistas como Marília Mendonça, Thiaguinho, Simone e Simaria e Vitor Kley já fizeram shows ao vivo com a presença de intérpretes de libras (Sebastian Gollnow/Getty Images)
Estadão Conteúdo
Publicado em 7 de maio de 2020 às 16h35.
Última atualização em 7 de maio de 2020 às 16h38.
Quando fez sua primeira live na quarentena, em 8 de abril, a cantora goiana Marília Mendonça possivelmente não imaginou que, além de fazer a alegria de mais de 3 milhões de espectadores isolados em suas casas e arrecadar toneladas de alimentos e produtos de limpeza, chamaria atenção por colocar no canto da tela os intérpretes de Libras - a Língua Brasileira de Sinais. A sertaneja, conhecida pelo título de "rainha da sofrência", anunciou com antecedência que ofereceria o recurso de tradução para surdos. Foi uma das primeiras.
Um dos tradutores que participaram da live foi Gessilma Dias, de 46 anos, que, há 21, trabalha com a língua de sinais na área educacional. Conterrânea de Marília, ela não sabe ao certo como a produção da cantora chegou até seu nome, já que nunca havia trabalhado com tradução em shows, apenas em peças de teatro. Mas topou. "Me ligaram em uma terça-feira e a live era no dia seguinte. Recebi um repertório prévio para estudar as letras", conta.
A intérprete explica que a tarefa foi árdua - a apresentação durou 3h30 - e que a parceria com Viny Batista, com quem dividiu a tradução, foi fundamental para chegar ao final do show e lidar com os improvisos no setlist. "Saímos de lá exaustos, pois o raciocínio para a tradução tem que ser muito rápido", diz Gessilma.
O trabalho em equipe também foi fundamental na live do cantor Thiaguinho, no dia 23 de abril. Foram 5h30 de música e participações especiais de nomes como Neymar e Luciano Huck. Tudo com tradução simultânea em Libras, feita por quatro intérpretes liderados por Carol Fomin, que tem uma empresa de acessibilidade. "Dividimos o repertório para estudar, mas uma música que caiu comigo foi estudada pelo meu colega. Nesses momentos, um ajuda o outro", conta Carol.
Apesar do desafio, Gessilma e Carol - uma conhece o trabalho da outra, embora nunca tenham se encontrado pessoalmente - afirmam que é extremamente gratificante e positiva a experiência dos artistas abrirem espaço para a tradução em Libras em suas apresentações online. "Os surdos também estão em casa, na quarentena, passando o mesmo que nós todos. Por que não se comunicar com eles, permitir que se divirtam?", diz Gessilma.
Carol conta que, ao final de cada live, é marcada nas redes sociais por surdos que agradecem e elogiam sua performance. "É um público que ficou esquecido por muito tempo e agora merece atenção", observa.
Segundo estimativa da Federação Brasileira das Associações dos Profissionais Tradutores e Intérpretes e Guia-intérpretes de Língua de Sinais (Febrapils), no Brasil, há 10 milhões de surdos e cerca de 3 mil intérpretes de Libras, que podem ter formação em nível técnico, de graduação e especialização. A Lei Brasileira de Inclusão, também chamada de Estatuto da Pessoa com Deficiência, de 2015, determina que a pessoa com deficiência deve ter direito à igualdade entre as demais pessoas em programas de televisão, cinema, teatro e outras atividades culturais. "Em muitos casos, ela não é implementada. A lei está solta. Infelizmente, é negligenciada até pelo governo", diz Fernando Parente, presidente da Febrapils.
Além de Marília Mendonça e Thiaguinho, outras lives com produção que ganharam ares profissionais, como a da dupla Simone e Simaria e a de Vitor Kley, contaram com o recurso em Libras. Outras, como a de Roberto Carlos, não trouxeram a opção. "As leis são lindas, mas não são cumpridas. Na TV, substituem por legendas, mas essa não é a língua do surdo", diz Gessilma.
A Língua Brasileira de Sinais não é apenas mera tradução da língua portuguesa em gestos. Ela tem diferentes níveis linguísticos e, por isso, para expressá-la, não basta apenas conhecer os sinais e, sim, combinar mãos, movimentos, articulações e expressões faciais para que a tradução seja clara para o público-alvo.
Cabe ao intérprete, no caso de uma apresentação musical, passar para o surdo o ritmo da música. "Com equilíbrio, podemos transmitir o ritmo. Uma música lenta e um rap precisam ser expressos de maneira diferente", exemplifica Carol Fomin. Em situações como essa, a impressão é que o profissional está dançando. As abstrações das letras também precisam ser traduzidas.
Por causa de situações assim, nas redes sociais, os memes costumam perseguir os intérpretes. Gessilma Dias sabe bem disso. Na live de Marília Mendonça, um gesto em que ela fazia algo parecido com um chifre garantiu piadas entre os internautas, sobretudo associadas às letras da cantora, que falam, principalmente, de traição. Mas o sinal não expressa traição e, sim, "eu te amo". "Não me preocupei com os memes. Eu queria entregar um trabalho de qualidade. O holofote não é para mim, é para a pessoa surda, para os profissionais de Libras", diz ela, que foi chamada para a próxima apresentação da artista, em 9 de maio. Por culpa da qualidade da imagem, ela também aturou piadinhas - loira, Gessilma foi confundida com uma idosa. "Disseram que eu era do grupo de risco, que deveria estar isolada."
A Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) estabelece diretrizes para a janela de Libras quando transmitida pela televisão - o que se aplica às lives transmitidas pelo YouTube e executadas nos aparelhos de TV. As regras trazem especificações como posição do intérprete, iluminação e tamanho da janela na qual o intérprete aparece - que deveria ocupar, segundo a ABNT, metade da tela do televisor em altura e a quarta parte da tela em termos de largura.
Por ser um trabalho novo no universo das apresentações online, os profissionais ainda estão se adaptando e vendo os contratantes se adequarem. Assim como em programas de TV, eles precisam ter acesso a um monitor para ver o que o artista está fazendo, para onde está olhando ou apontando. Toda informação é importante. Há, ainda, a questão de direito de imagem, já que muitas apresentações ficam disponíveis no YouTube.
O cachê dos tradutores também é algo que está se moldando. O site da Febrapils traz uma tabela com valores de referência - a hora de trabalho sugerida é de R$ 160, mas pode chegar a R$ 400, dependendo da preparação necessária. Há até fãs dos artistas que se oferecem para fazer de graça e se aproximar dos cantores - o que não tem ocorrido, afinal, estamos em distanciamento social.