O sambista Moreira da Silva, também conhecido como Moreira da Silva (Creative Commons)
Da Redação
Publicado em 28 de junho de 2012 às 18h33.
São Paulo - O show de Moreira da Silva cumpria o roteiro e se desenrolava sem grandes novidades no palco de um cine-teatro do Méier, subúrbio do Rio de Janeiro, naquele ano de 1936. Até o momento em que ele começou a cantar o samba Jogo Proibido. Sem cerimônia, Moreira se desviou da letra de Tancredo Silva sobre o cotidiano de um típico malandro carioca e mandou, de improviso: “Eu meto ácido no nariz do otário/ O homem cai e diz: ‘Morengueira, eu vou morrer’”. Foi aplaudido de pé.
“O petróleo está aqui. Vou meter a sonda”, contou ele, muitos anos depois, em entrevista ao jornal O Pasquim. Justificava por quê, após um início de carreira dedicado a pontos de macumba e sambas-canções, decidiu direcionar de vez seu repertório ao samba-de-breque. Nesse subgênero sincopado do samba, em que o cantor encaixa comentários improvisados (e falados) entre as estrofes, Moreira acabaria se tornando mestre, como mostram os oito álbuns lançados pela Odeon entre 1958 e 1966, agora reeditados pela Discobertas. Divididos em duas caixas, os CDs reproduzem a capa original dos LPs e foram remasterizados com base nas matrizes da época, trazendo ainda faixas bônus lançadas apenas em singles.
Os discos incluem alguns dos maiores sucessos de Moreira, como Amigo Urso, Na Subida do Morro e Acertei no Milhar, e explicitam outra faceta importante de seu trabalho: a de cronista musical da cidade. Com humor, Moreira cantou personagens e cenários do Rio de Janeiro de seu tempo, inscrevendo-se em uma tradição que nasce já com as primeiras composições com letra. Do choro ao samba, das marchinhas à bossa nova, do rock ao funk, ao longo do século 20 a música espelhou e ajudou a formatar o imaginário carioca.
O próprio cognome do Rio surge de uma canção. Tomando de empréstimo a expressão criada pelo escritor Coelho Neto, André Filho compôs, em 1934, a célebre marchinha que consagraria o apelido de Cidade Maravilhosa. Outra música, esta de Zé Kétti, sintetizaria a tal identidade carioca, estabelecendo o samba – “natural aqui, do Rio de Janeiro” – como seu essencial elemento.
Da mesma forma que o samba teceu odes ao morro, onde uma sinfonia de pardais “anunciava o amanhecer” e a bossa nova saudou o mar, o sol e a zona sul, o rock dos anos 80 retratou a cidade pós-ditadura: um Rio moderno, descontraído, hedonista. Muito antes, as marchinhas haviam esquadrinhado personagens como a Chiquita Bacana e a Garota Monoquíni e traduzido, com escárnio, problemas como a falta de energia. “Rio de Janeiro/ Cidade que me seduz/ De dia falta água/ De noite falta luz”, cantavam as ruas no Carnaval de 1954.
Essa autoironia que distingue as marchinhas é característica, também, de muitos breques de Moreira da Silva. Em Cidade Lagoa, por exemplo, ao abordar o entrave crônico dos alagamentos, ele faz uma antiexaltação: “Que maravilha nossa linda Guanabara/ Tudo enguiça, tudo para/ Todo trânsito engarrafa/ Quem tiver pressa, seja velho ou seja moço/ Entre n’água até o pescoço/ E peça a Deus pra ser girafa”.
O tema principal do cantor foi, no entanto, o universo dos malandros, que descortinou retomando a figura consagrada por Wilson Batista e Noel Rosa nas décadas de 1930 e 40 e que seria repaginada por Chico Buarque no fim dos anos 70. O malandro era o protagonista da sociedade que Moreira observava: aquela “que povoa os morros, as delegacias, gente humilde, mas cheia de personalidade e bossa”, como observa o crítico Lúcio Rangel na apresentação de um dos discos relançados.
Moreira cantou as rodas de baralho (Jogando com o Capeta), a gafieira (Olha o Padilha), o jogo do bicho (Deu o Bode pra Polícia) e os pequenos golpes (Camelô na Cidade). Também catalogou gírias, como “batente” (trabalho), “Justa” (Justiça), “caroço” (bola de futebol), “granolina” (grana), “encruza” (encruzilhada) e “pau d’água” (bêbado).
Apesar de abordar esses assuntos com intimidade, o cantor costumava se definir como um “malandro entre aspas”. Quando incorporava o personagem do Kid Morengueira, tão citado nas músicas, vestia terno de linho S-120, gravata, sapato bicolor e chapéu de palhinha. Mas, na vida pessoal, foi indivíduo pacato e marido de almanaque, casado por 54 anos com a mesma mulher (ele morreu aos 81, em 2000).
Inferno na Cidade de Deus
O malandro cantado por Moreira remonta a um Rio em que a violência era quase folclórica. Estava longe, muito longe, da brutalidade opressiva que começou a se insinuar na metade da década de 1980 e que Chico Buarque resumiu em Estação Derradeira: “Rio de ladeiras/ Civilização encruzilhada/ Cada ribanceira é uma nação/ À sua maneira/ Com ladrão/ Lavadeiras, honra, tradição/ Fronteiras, munição pesada”. Isso embora a nostalgia do Rio “pacífico” já vazasse de sambas anteriores, como Saudades da Guanabara, no qual Paulo César Pinheiro, Moacyr Luz e Aldir Blanc lamentavam as mudanças que abriam “valas negras no coração da cidade”: “Chorei/ Com saudades da Guanabara/ Refulgindo de estrelas claras/ Longe dessa devastação”.
Retomando a questão em tom mais grave, o mesmo Paulo César Pinheiro apontou em 2004 a discrepância entre os poéticos nomes dos morros cariocas e sua atroz realidade: “Ninguém faz mais jura de amor no Juramento/ Ninguém vai-se embora do Morro do Adeus/ Prazer se acabou lá no Morro dos Prazeres/ E a vida é um inferno na Cidade de Deus”.
A música da cidade partida, no entanto, transcende gêneros. Bandas como O Rappa e Os Paralamas do Sucesso teceram conexões entre a periferia carioca e a de outros cantos do planeta nas canções Brixton, Bronx ou Baixada e Alagados – que estabelece relações entre as favelas de Alagados, em Salvador, e as deTrenchtown, na Jamaica, e da Maré, no Rio.
Paulatinamente, a Garota de Ipanema cedeu espaço à Garota Sangue Bom, que transa um “fervilhante pagodinho churrascante na noturna suburbana”, dos versos suingados de Fausto Fawcett e Fernanda Abreu. E as comunidades pobres ganharam novas vozes por intermédio de artistas locais devotados ao funk carioca. É o caso de Cidinho e Doca, autores do clássico contemporâneo que ecoa um desejo disseminado: “Eu só quero é ser feliz/ Andar tranquilamente na favela onde eu nasci”.
Oriunda de espectro social semelhante, a gafieira das canções de Moreira acabou substituída pelo baile. O malandro, pelo traficante. E, no lugar da navalha, entraram o fuzil e outros artefatos citados em músicas como o Rap das Armas, dos MCs Júnior e Leonardo: “Metralhadora AR-15 e muito oitão/ A Intratek com disposição/ Vem a super 12 de repetição/ E mais o quê?/ 45, que é um pistolão”.
Se Moreira saudou a baiana de olhos brejeiros que fritava bolinhos na Lapa e a “chave de cadeia” que pôs o terno do namorado no prego, o funk carioca nos apresenta a “novinha” em busca de sexo fácil (Que Isso, Novinha?) e a menina de classe média que “sobe o morro atrás de aventura” (Amor Bandido).
Outros tipos, um novo olhar. Mas as interseções entre os dois universos fazem empalidecer as diferenças estéticas. A chapa esquentou, e o funk carioca talvez seja o estilo que melhor atualiza, hoje, os breques de Moreira da Silva.
As Caixas
O Último Malandro e O Tal Malandro (Discobertas), de Moreira da Silva. Pesquisa: Marcelo Fróes. Preço médio de cada caixa: R$ 70