Maestro diz que, hoje, são os políticos que deveriam sentir-se honrados ao assistir a uma orquestra como a Bachiana, e não o contrário (Mario Rodrigues/Veja São Paulo)
Da Redação
Publicado em 20 de junho de 2012 às 13h10.
São Paulo - No primeiro concerto que regeria 11 dias após a operação que instalou eletrodos em seu cérebro, João Carlos Martins estava exultante. Antes de começar o espetáculo, em seu camarim na Sala São Paulo, no dia 27 de abril, fez questão de mostrar um pequeno vídeo feito durante a operação e contar para as câmeras da TV Globo, amigos e fotógrafos ali presentes os detalhes do procedimento.
“Fiquei acordado, o tampo ali, aberto, os miolos aparecendo e eu ouvindo tudo, feito o personagem do filme Hannibal”, dizia, atento às reações dos expectadores. Seu médico, o neurocirurgião carioca Paulo Niemeyer Filho, atribuiria à fala uma pitada de fantasia. “Ele estava deitado, não via o que acontecia. Foram abertos apenas dois pequenos orifícios no cérebro por onde passamos os eletrodos”, explicou. O exagero é certamente fruto do enorme entusiasmo por superar as dificuldades e também de uma característica do maestro: a de capitalizar, com tremenda habilidade, o espanto e a admiração merecidos que sua superação provoca.
No início da apresentação, João Carlos Martins avisou ao público que regeria, pela primeira vez, com uma batuta nas mãos. Ao final do concerto, antes de sua tradicional “palhinha” ao piano, novamente pediu o microfone. “Será a primeira vez em dez anos que vou encostar o quinto dedo da mão esquerda no teclado. É como aquela frase do homem ao chegar à lua, um pequeno passo, mas de uma importância incrível”, discursou com a voz embargada, enquanto a sala se enchia de aplausos.
Nos últimos anos, o maestro viu agravarem-se as dificuldades provocadas por uma distonia muscular que acomete seu braço e mão esquerdos. O problema, conhecido como “cãibra do pianista”, consiste em uma alteração no cérebro que provoca, a cada movimento, uma contração.
“Três dedos vão se fechando, cravando as unhas no centro da mão esquerda. Se não as tenho bem cortadas, ao final do dia sangro”, contou o maestro na ampla sala de seu apartamento, no bairro dos Jardins, em São Paulo, dias antes da operação. Ali, entre prateleiras com CDs de sua autoria, medalhas e revistas com ele na capa, explicou que sua primeira vitória, a cada manhã, consistia em conseguir tomar banho, fazer a barba sem se cortar muito e pentear os cabelos, que cultiva com esmero (“fazem parte de minha personalidade”).
O problema também o impedia de segurar a batuta (“corro o risco de furar um olho do spalla ou o meu”), bem como de virar as páginas das partituras durante os concertos, obrigando-o a decorá-las (um concerto tem cerca de 200 páginas).
A técnica a que recorreu, conhecida como estimulação cerebral profunda, era utilizada em casos de Parkinson e vem sendo testada com distonias. Instalam-se, dentro do cérebro, eletrodos que, conectados a um neuroestimulador, transmitem impulsos elétricos que estimulam ou inibem áreas responsáveis pelos movimentos (veja box na pág. 118). Para localizar o ponto exato em que os eletrodos devem ser fixados, é preciso que o paciente fique acordado durante parte do procedimento.
A mulher do maestro há 12 anos, Carmen Valio de Araújo, e os filhos (são três rapazes e uma moça, de diferentes casamentos anteriores) estavam apreensivos. “As pessoas me ligavam e perguntavam: será que vale a pena? Mas não sou eu quem tenho restrições, dores, nem a angústia de querer tocar e não conseguir. Meu papel era apoiá-lo”, diz Carmen. No dia em que partiu para o Rio de Janeiro para internar-se, o maestro ainda participou de um ensaio com a Bachiana Filarmônica Sesi-SP, uma das duas orquestras que criou e rege.
Na sala fechada, com isolamento acústico, incentivava cerca de 50 músicos com gestos teatrais. As mãos contorcidas pareciam enfatizar sua dramaticidade. Com o corpo jogado para a frente seguindo a melodia, ele franzia o cenho, levantava uma sobrancelha, crispava a boca e fazia seus cabelos brancos voarem pelo ar em movimentos invejavelmente enérgicos para alguém de 71 anos.
“Menos notas longas, quero ouvir mais os sopros!”, dizia, e, quando todos finalmente pareciam soar em uníssono, modelava cenários, climas e paisagens entre a massa de sons. Terminou com a respiração ofegante e a camiseta preta com as inscrições “A Música Venceu” (enredo campeão da escola de samba Vai-Vai em 2011, que contou a história do maestro) molhada de suor. “O estilo dele é enérgico total. Ele não faz nada meio termo”, diz o timbalista e maestro substituto John Boudler, seu braço direito.
“Ele confia nos músicos, dá o melhor de si e espera que os outros façam o mesmo.” João Carlos Martins assume trabalhar para transmitir emoção. “Outro dia, toquei para crianças de 5 e 6 anos de idade. No final da apresentação, perguntei: quem teve vontade de chorar? As 1 500 levantaram a mão. Meu objetivo principal é chegar ao coração das pessoas”, diz. Há quem critique seu jeito intenso, seu apelo sentimental, mas o maestro não parece se abalar, lotado de planos e compromissos como está.
“Por mim, pelos filhos, teríamos esperado mais para operar. Mas toda a vida foi assim: as decisões foram tomadas pelo João Carlos”, diz Carlos Eduardo, seu segundo filho, que o auxilia na Fundação Bachiana, referindo-se ao pai como a uma entidade, na terceira pessoa. Carlos conta que a relação com o pai foi próxima, apesar das inúmeras viagens dele. “Ele sempre teve uma vida de muita dedicação. Hoje, por exemplo, teoricamente não precisaria estar aqui, ensaiando no dia em que vai se internar. Mas ele tem um capricho enorme. E é de se admirar quem busca a qualidade, a excelência.”
Durante a operação, o maestro manteve-se animado. “Só depois de umas quatro, cinco horas na mesma posição é que me deu uma certa depressão”, diz. “Comecei a pensar: e se pegarem no lugar errado? Quando vão tampar o buraco? Meu Deus, não fiz xixi essse tempo todo!”, lembra, rindo. Nos dias seguintes, animado com a maior amplitude do braço e com a abertura da mão, criaria seu mais novo bordão: “Hoje tenho dois ídolos, Johann Sebastian Bach e Paulo Niemeyer”.
Bach é o compositor preferido do maestro, de quem, ainda como pianista, gravou as obras completas. A mudança do piano para a regência, aos 64 anos, também não se deu exatamente por escolha. Foi resultado de várias dificuldades físicas. No auge da carreira como pianista, João Carlos lesionou um nervo do braço direito durante uma pelada no Central Park, em Nova York, onde morava. Três dedos de sua mão foram afetados. Sofreu operações e passou a tocar com dedeiras de aço, mas após uma crítica negativa no New York Times, decidiu abandonar o piano. Ele, que começara a estudar aos 8 anos, havia perdido a confiança, estava desanimado e frustrado. Sua obsessão sempre foi excelência ou nada: “Só entro em briga para ganhar”, afirma.
De volta ao Brasil, empregou-se em banco de investimentos (investir na bolsa é outra de suas habilidades) e passou sete anos longe do piano. Mas a música falou mais alto. Aos poucos, recomeçou os estudos e percebeu que, adaptando sua maneira de tocar, conseguiria a mesma agilidade. Obstinado, treinou incansavelmente para, em setembro de 1978, reestrear no Carnegie Hall. “Quando você sofre uma adversidade, ou faz dela uma plataforma para crescer ou cai no abismo”, declara.
Ele ainda enfrentaria as intensas dores de uma lesão por esforço repetitivo e as das sequelas de uma pancada na cabeça sofrida durante um assalto. Em 1998, num concerto com a Royal Philarmonic Orchestra, em Londres, fez sua última apresentação antes de seccionar o nervo da mão direita, o que aliviaria a agonia e acabaria com sua carreira de pianista. “Foi um momento de indescritível solidão. Ninguém na orquestra ou na plateia sabia de nada. As lágrimas escorriam pelo meu rosto.”
João Carlos juntou os cacos, fez da adversidade plataforma, reprogramou-se e iniciou uma carreira bem sucedida tocando apenas com a mão esquerda. Até que a distonia lhe roubou também essa possibilidade. Novamente sem rumo, viu-se, em um sonho, ao piano, errando as notas, enquanto o maestro Eleazar de Carvalho, já falecido naquela época, lhe dizia: ‘vem aprender a reger’. “No dia seguinte, estava fazendo aulas”, conta. De lá para cá, montou duas orquestras, tem feito inúmeras apresentações como regente e cuida de projetos sociais.
Sobre o piano de sua casa há uma foto com o ex-presidente Lula e outra com Dilma. “A música sempre esteve atrelada ao poder?”, pergunto. O maestro diz que, hoje, são os políticos que deveriam sentir-se honrados ao assistir a uma orquestra como a Bachiana, e não o contrário. “As artes é que representam a cultura de um povo”, diz. “Montei uma orquestra sem um tostão do governo, bancada pela iniciativa privada. O governo cede uma sala de ensaio.
Esse é o modelo que defendo hoje, entende?”, pergunta, com seu sotaque paulistaníssimo e o mesmo cacoete de Pelé a pontuar as frases. Não foi sempre assim. Durante a ditadura, conheceu Paulo Maluf. Quando o político se candidatou a governador, nos anos 1990, com a promessa de nomeá-lo secretário de cultura do Estado, levantou fundos para a campanha e emitiu notas de uma empresa da qual era sócio em troca de doações.
A operação, investigada pela Justiça, se tornaria conhecida como “caso Pau Brasil”. “Não vejo Maluf há 20 anos, e esse episódio, embora tenha sido inocentado, me marcou para sempre”, diz ele, com pesar por ter sido, muitas vezes, mais reconhecido por isso do que por sua música. “O reconhecimento faz parte da vida do artista e o alimenta. O aplauso é uma forma de ter energia para o dia seguinte”, diz.
Energia não costuma lhe faltar. Ele acorda às 5 da manhã, lê os jornais, caminha, estuda, sobe e desde as escadas de seu apartamento decorando partituras. Apenas depois do almoço, em geral em sua casa — onde um pôster da Portuguesa de Desportos, seu time do coração, descansa ao lado da mesa — tira uma soneca de 20 minutos. Agora, voltou a estudar piano como as crianças, com escalas simples. “Por mim, subiria amanhã ao palco do Carnegie Hall. Esperar vai ser difícil”, admite. Na última entrevista, com olhos vivazes, confessou: “Sabe o quê? Eu nunca me conformei de não voltar a tocar”. Quem sabe agora, com cérebro eletrônico e a mesma garra que demonstrou a vida toda, ele mais uma vez recomece? Ainda que não consiga, terá sempre a regência — agora com batuta. Fora os aplausos, claro.
A operação, passo a passo
1. Exames mapeiam o cérebro e calculam onde deve ser realizada a abertura, de cerca de 2 centímetros, com uma serra neurocirúrgica. Por essa abertura introduzem-se os eletrodos. No caso do maestro, foram instalados dois. Nesse momento da cirurgia, o paciente precisa estar acordado para responder perguntas e realizar movimentos, ajudando assim a encontrar o ponto perfeito para fixar os eletrodos.
2. Em seguida, o paciente recebe anestesia geral. Os fios que conectam os eletrodos e o neuroestimulador (uma caixinha semelhante a um marcapasso cardíaco) são colocados sob a pele. O neuroestimulador fica na região da clavícula.