Detalhe do afresco na Capela Sistina pintado por Michelangelo em 1510. Com o surgimento da figura do artista caprichoso, neurótico e melancólico, era natural que a história da arte tomasse a forma da biografia (Wikimedia Commons)
Da Redação
Publicado em 6 de janeiro de 2012 às 15h13.
São Paulo - Exposições, congressos e publicações comemoram mundo afora, neste fim de 2011, o quinto centenário do nascimento de Giorgio Vasari (1511-1574), considerado o pai da história da arte.
Entre nós, a obra do intelectual italiano começou, enfim, a se tornar acessível com a recente publicação de dois de seus escritos. O primeiro é Vidas dos Artistas, traduzido direto da edição de 1550, chamada Torrentina.
O segundo é a tradução comentada de Vida de Michelangelo, feita com base na segunda edição, revista e muito ampliada, das Vidas dos Artistas.
A obra de Vasari retoma a tradição da biografia antiga – de Suetônio, Plutarco e Tácito a Diógenes Laércio e outros biógrafos que avançam pelos séculos 3 e 4 –, mas a aplica à biografia do artista, gênero de que a Antiguidade não deixou um modelo.
Essa ausência de um paradigma antigo a ser emulado, caso talvez único em toda a literatura moderna, confere às Vidas dos Artistas certa hibridez. E isso em dois sentidos.
Em primeiro lugar porque o destinatário manifesto das Vidas é o artista, mas a ambição real de Vasari é atingir o homem de letras, de modo que sua linguagem combina habilmente o registro anedótico da crônica e o tom elevado da história.
Em segundo lugar porque o livro une ingredientes pertencentes a cinco tradições diferentes: (1) o tratado técnico-prático medieval voltado para a aprendizagem artística; (2) a prescrição teórica e conceitual sobre as relações entre arte moderna e os cânones antigos, à maneira de tratados de poética e retórica; (3) a biografia propriamente dita; (4) a descrição das obras, na melhor tradição da écfrase (descrição de obras de arte visuais) antiga; e (5) a meditação moral plutarquiana sobre o destino tempestuoso do artista, não raro vítima da “fortuna invejosa” e de seu próprio temperamento.
Em um momento em que surge a figura do artista “maneirista”, resultante de uma peculiar configuração de temperamentos – com frequência bizarro, caprichoso, “neurótico” e melancólico –, era natural e mesmo inevitável que a reflexão sobre a história da arte tomasse a forma da biografia.
Artistas possuídos
Isso nos conduz a indagar sobre um aspecto central do legado de Vasari: o da relação entre a arte e a vida do artista, relação avaliada de modo muito contrastado desde o século 17.
Tais avaliações obedecem a um movimento pendular. Antes do surgimento da estética como um ramo da filosofia, no fim do século 18, a literatura artística praticamente confundia-se com as biografias de artistas, as quais eram escritas todas segundo o molde vasariano.
Com Winckelmann, Baumgarten, Lessing, Burke, Kant, Schiller e Hegel, a reflexão sobre a arte torna-se mais abstrata e conceitual, dissociando-se quase que por completo da biografia.
Ao longo da segunda metade do século 19 e da primeira metade do século 20, essa dissociação foi aprofundada pelos historiadores da arte. Assiste-se, então, a um eclipse total ou parcial do artista.
Esse último passa a ser não mais do que a face oculta de um “estilo”. As análises formais ou formalistas consideram a obra de arte como um sistema cuja inteligibilidade independe das circunstâncias biográficas e existenciais do artista.
Mas, desde finais do século 19, uma corrente contrária se desenha. No que se refere especificamente à história da arte, as razões desse fenômeno ligam-se ao exacerbamento da “consciência de si” do artista, a partir sobretudo dos anos 1880, exacerbamento que parece ir de par com sua progressiva irrelevância histórica, institucional e social.
A morte instala-se na alma do artista. O mesmo ano de 1890 vê a terrível série de Odilon Redon para o poema La Damnation de l’Artiste (A Danação do Artista) de Iwan Gilkin, o suicídio de Van Gogh (1853-1890) e esse outro conluio entre a arte e a morte que se desenha em Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde (1854-1900).
Abria-se o decênio marcado pelo tema da morte, da depressão e da loucura, de Nietzsche a Strindberg, entre tantos outros. Pense-se nas fantasmações sobre a morte de Böcklin, Gauguin, Ensor, Munch, Hodler e Lovis Corinth ou em poetas como Georg Trakl, morto, suicida, em 1914, aos 27 anos. A lista de artistas possuídos pela morte artística e/ou física nesses anos é imensa!
Ora, tal estado de espírito deveria forçosamente redundar em um novo interesse pelas relações entre a arte e o artista. Em 1968, o grande pintor austríaco Oskar Kokoschka (1886-1980) recorda-se de sua primeira juventude ao escrever em uma carta: “Tornei-me consciente de ser um – eu e a vida –, o que significava, em meu caso, buscar uma expressão artística para minha existência. Suponho que é isso o que o termo ‘expressionismo’ significa...”
Durante os anos do primeiro pós-guerra, e não por acaso, os historiadores da arte alemães marcados pelo expressionismo cunham a expressão “maneirismo” para designar a arte dos tempos de Vasari e os artistas por ele biografados.
Uma das afinidades mais evidentes entre essas duas sensibilidades artísticas (a do maneirismo e a do expressionismo), tão distantes no tempo, é justamente a comum consciência do artista da carga existencial da obra de arte.
Se é verdade que, em grande medida, ainda navegamos nas águas, ou sofremos os efeitos, do abismo civilizacional aberto pelos anos 1880-1918, então não será difícil compreender por que o interesse de Vasari pelo artista toca-nos novamente de tão perto.