Isaacson: biógrafo de Leonardo da Vinci procurou entender e analisar todas as 7200 páginas dos 30 diários do gênio (Peter Nicholls/Reuters)
Da Redação
Publicado em 4 de novembro de 2017 às 07h45.
Última atualização em 6 de julho de 2018 às 11h46.
Leonardo da Vinci
Autor: Walter Isaacson
Selo: Intrínseca
640 páginas
R$69,90
R$44,90 (e-book)
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Um pequeno quadro, não maior do que um espelho de banheiro, será leiloado em 15 de novembro na Christie’s, a maior casa de leilão do mundo, numa operação que deve fazer história no universo das artes. A expectativa é que ele seja arrebatado por mais de 100 milhões de dólares, base mínima fixada pela Christie’s, com boas chances de bater o recorde do valor já pago por uma obra de arte — que pertencia ao quadro Les Femmes D’Algier, de Picasso, adquirido anonimamente por 179,3 milhões de dólares, também em leilão na Christie’s.
O quadro em questão é o Salvator Mundi, de Leonardo da Vinci, cuja descoberta, em 2011, já é considerada o maior evento das artes do século XXI, acrescentando mais uma peça ao modesto acervo do pintor, hoje estimado em não mais do que 19 quadros, alguns dos quais inacabados ou de autenticidade não totalmente verificada. Salvator Mundi fez uma longa e obscura trajetória desde que foi produzida por Da Vinci no ano 1500 aproximadamente — chegou a ser adulterado e vendido, em 1958, pelo equivalente a 50 euros na Sotheby’s, quando sumiu. Foi reencontrado em 2005 e submetido a seis anos de limpeza, autenticação e certificação para ser anunciado em 2011 como a mais nova descoberta de uma das poucas obras de Leonardo da Vinci. E só agora vai ser leiloado.
Por coincidência, ou talvez não, o universo editorial também está vivendo um momento de euforia por causa da edição da biografia de Leonardo da Vinci, escrita pelo americano Walter Isaacson, cujo lançamento ocorreu mundialmente em 17 de outubro — antes disso, ninguém pôde ter acesso ao texto, nem mesmo a imprensa. Isaacson, que já foi presidente da CNN e editor da revista Time, é um badalado autor de biografias que gosta de escolher celebridades históricas para desenvolver sua principal vocação— tais como Einstein, Steve Jobs, Benjamin Franklin e Kissinger. Desta vez, ele caprichou: não há talvez personagem tão inquestionavelmente genial como Leonardo Da Vinci, e apesar dos filmes, de outras biografias e de tantos artigos acadêmico sobre o grande artista da Renascença, Isaacson teve a oportunidade de fazer uma biografia definitiva sobre o autor de Mona Lisa.
Para isso, o escritor teve acesso, leu, procurou entender e analisar todas as 7200 páginas dos 30 diários nos quais Leonardo da Vinci reproduziu ideias, fatos, pensamentos, planos, plantas, esboços, estudos e desenhos que lhe ocorreram ao longo da maior parte de seus 68 anos de vida — uma preciosidade, por si só, por representar não apenas o trabalho de um gênio mas, também, por consolidar um conhecimento multidisciplinar capaz de alterar e dar novos caminhos ao pensamento humanístico que então surgia.
Fora dos padrões
É muito curioso observar o personagem que emerge das mais de 600 páginas do trabalho de Isaacson. Tido como um gênio por inúmeras facções do pensamento mundial, das mais conservadoras até as mais progressistas, Leonardo da Vinci está muito distante da imagem do velhinho barbudo, cheio de sabedoria, capaz de inventar helicópteros e escafandros e pintar obras primas. Sim, ele fez tudo isso e muito mais, mas foi antes de tudo um questionador, uma figura fora do padrão, um transformador. “O maior gênio da história”, escreve Isaacson, ” era filho ilegítimo, gay, vegetariano, canhoto, muito disperso e, às vezes, herético”.
Leonardo da Vinci passou a maior parte da vida acompanhado de belos jovens, vestindo-se com túnicas cor de rosa, desafiando o comportamento dos duques, procrastinando os trabalhos que lhe encomendavam, dissecando cadáveres animais e humanos, inventando armas e ferramentas malucas que raramente funcionavam, sempre com um ar absorto, do tipo lunático.
Ao mesmo tempo era uma figura querida e carismática, que exercia a bondade, não ligava para a riqueza, oferecia comida a todos, amava os animais, especialmente os cavalos e foi vegetariano a maior parte da vida de fazer inveja aos militantes de hoje. Tinha muitos amigos, mas isso não o impediu de, por duas vezes, ser denunciado de práticas sodomitas e por muito pouco não acabou na prisão. “Era um dândi, conhecido pela elegância, pelo corpo musculoso, um homem de beleza excepcional e personalidade agradável e carismática”, segundo os efusivos comentários de biógrafos do século XVI.
Quem seria capaz de sobreviver em toda a sua plenitude artística, rompendo padrões de comportamento e ainda assim ser uma celebridade amada por todos? A resposta deve incluir o lugar e o tempo em que ele viveu.
Isaacson não desenvolve muito esse aspecto, mas a verdade é que ao mesmo tempo em que Leonardo Da Vinci nascia, começava a florescer a Renascença, depois de décadas de obscurantismo da Idade Média, e especialmente naquela região da Itália, entre Florença e Milão onde da Vinci passou a maior parte da sua vida. Houve um grande desenvolvimento do conhecimento, um momento especial na história da humanidade. Lá conviveram, além de Leonardo da Vinci, Botticelli, Rafael, Ticiano, Michelangelo, Copérnico e Maquiavel. As poderosas famílias da Itália, como os Medici, os Borgia e os Sforza, competiam entre si e usavam a arte para obter status e vantagens sociais.”É assim que surgem os valores estéticos da arte, a concepção do belo”, diz Mário Cesar Lugarinho, professor da FFLCH-USP. “Os artistas eram contratados por essas famílias e a elas prestavam seus serviços com exclusividade”.
Leonardo da Vinci foi um desses artistas e ao longo da vida serviu, sucessivamente, algumas dessas famílias, inclusive, em sua fase derradeira, ao rei da França, Francisco I. Assim ele pôde desenvolver todo o seu potencial tornando-se o principal nome do Renascimento na arte. Ainda que tenha mantido a temática religiosa, abandonou as limitações da pintura plana para buscar a tridimensionalidade, os movimentos e a perspectiva. E são dele algumas técnicas típicas dessa busca, principalmente o “chiaroscuro”, ou a habilidade de aplicar luz e sombra a fim de reproduzir com mais eficiência a ilusão de volume tridimensional em uma superfície plana.
Mas a Renascença não produziu apenas grandes artistas. Também é típico dessa época o surgimento dos polímatas, aqueles cujo conhecimento está em diversas áreas, e Leonardo da Vinci foi o mais famoso deles. Embora tenha se eternizado na pintura, é possível identificá-lo como um praticante daquilo que o filósofo Michel Foucault chamou de “protociência”, cujo conhecimento é baseado em similaridades e analogias. Indo um pouco na contramão da história, Leonardo da Vinci se gabava de não ter educação formal e ainda assim desenvolver questões, observações e soluções dos temas mais variados — desde a explicação da cor azul do céu até a criação e implantação de um sistema hidráulico capaz de fornecer água a toda uma cidade.
No interesse perfeccionista de representar os movimentos dos músculos, Da Vinci fez estudos inéditos do corpo humano que passaram, tanto em método como em informação, a fazer parte do acervo médico da época. Um desses estudos foi, por exemplo, o que envolveu os movimentos dos lábios, segundo ele o mais intrincado conjunto de músculos do ser humano, o que permitiu a criação do famoso sorriso de Mona Lisa — quadro em que trabalhou durante os últimos 14 anos de sua vida e que não há certeza de que efetivamente tenha terminado. E talvez essa seja uma característica desse típico homem criador renascentista: o enorme interesse pelo processo de criação, mas um certo desdém pelo resultado.
Leonardo da Vinci se apaixonava pelas ideias e as anotava nos seus diários com um imenso furor criativo, fazendo esboços complexos, verdadeiras obras de arte, para demonstrar perfeitamente o funcionamento de alguma geringonça mecânica que afinal nunca sairia do papel. A profusão de informações e pensamentos contidos nos diários demonstra a mente única do pensador. Ele escrevia dando instruções a si mesmo, como um manual: “Quando for pintar um retrato, faça-o quando o tempo estiver encoberto ou no final do dia. Preste atenção nas ruas no final do dia ou quando o tempo estiver encoberto e perceba quanta beleza pode haver no rosto de homens e mulheres”.
E em certo momento ele despeja uma frase inquietante, como “o sol não se move”, questionando o heliocentrismo e se antecipando a Copérnico e Galileu. Também escrevia textos para serem declamados, fábulas, histórias, profecias e piadas. Adorava charadas e enigmas, talvez porque se identificasse com eles: “muita gente solta o ar com pressa e perde, por consequência, a visão e, em seguida, a consciência (apagando uma vela antes de dormir)”.
Arte ou ciência?
Seus estudos de anatomia, engenharia, arquitetura, astronomia, ótica e outros poderiam ser tanto enquadrados como obra de arte como transpostos para livros e manuais científicos. E ainda que Leonardo da Vinci sonhasse em por em prática seus estudos, no fundo ele não estava nem um pouco preocupado em migrar seus apontamentos para a realidade prática.
No livro de Isaacson esse é uma conclusões que parece inevitavelmente sobrevir dessa leitura fascinante: que se trata, sim, como diz o autor, do “maior gênio da história”, não pelo seu caráter produtivo e empreendedor, mas pela sua contribuição transformadora, que reside na capacidade de abrir novos horizontes em várias área do conhecimento humano, incluindo ciências e artes. Leonardo da Vinci foi, antes de tudo, um pintor genial, mas cujas telas não passam de duas dezenas. Uma grande diferença se compararmos com Picasso, também um gênio da pintura, cuja produção, estima-se, é superior a 13.000 telas. E é uma tarefa ingrata apontar qual entre os dois é o maior.
Em sua última etapa de vida, Leonardo da Vinci foi contratado por Francisco I, o jovem rei da França que amava as artes e tinha verdadeira fascinação pelo gênio italiano. Da Vinci foi morar num castelo, o Chateau du Cloux, no vilarejo de Amboise, onde viveu confortavelmente seus últimos anos de vida. Lá, foi uma celebridade adorada e festejada por todos e teve a oportunidade de realizar um dos seus sonhos: planejar uma cidade inteira, desde a configuração das áreas residenciais até o sistema de fornecimento de água.
A cidade chegou a ter um nome: Romorantim, que deveria ser, uma vez pronta, a sede do reino da França. Como muitos dos projetos de Leonardo da Vinci, a cidade nunca saiu do papel — e ele morreu aos 68 anos com mais essa obra inconclusa. Hoje, o Chateu du Cloux passou a se chamar de Clos Lucé e abriga uma espécie de museu no qual as peças expostas são uma curiosa materialização dos projetos de Leonardo da Vinci que nunca saíram do papel.
É possível, por exemplo, ver os protótipos do canhão, do tanque de guerra e do helicóptero que ele projetou em seus diários. Uma coleção de aparelhos rudimentares que nunca teriam de fato viabilidade prática mas que apresentam os lampejos de uma mente criadora e transformadora. “Leonardo era um gênio, uma das poucas pessoas na história que mereceu — ou melhor, conquistou — de forma inquestionável esse título. Ainda assim não passou de um mero mortal. A prova mais óbvia de que era humano, e não super-humano, é a trilha de projetos inacabados que deixou para trás”, escreve Isaacson.
A última frase que Leonardo da Vinci lançou em seu diário foi “vou parar de escrever: ‘perché la minestra se freda’ (porque a sopa vai esfriar). Muitos especialistas já quebraram a cabeça para extrair mensagens ocultas, filosóficas, divinas dessa frase, supondo que, talvez, fosse mais uma charada genial do autor, mas é bem possível que Leonardo da Vinci quisesse apenas se apressar para não tomar fria a sua última sopa. É um bom motivo até para os gênios.