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Festa no Covil retoma narração infantil em livro para adultos

Livro de Juan Pablo Villalobos renova um território pouco explorado da literatura: o dos romances para adultos que têm crianças como narradoras

Capa do livro Festa no Covil: livro tem uma mesma característica narrativa de O Apanhador no Campo de Centeio, lançado por J. D. Salinger (Divulgação)

Capa do livro Festa no Covil: livro tem uma mesma característica narrativa de O Apanhador no Campo de Centeio, lançado por J. D. Salinger (Divulgação)

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Da Redação

Publicado em 27 de junho de 2012 às 13h55.

São Paulo - Sórdido, nefasto, pulcro, patético e fulminante são alguns dos adjetivos favoritos do vocabulário de Tochtli, um pré-adolescente de inteligência e rotina incomuns. Ele é filho de um chefão do narcotráfico, e sua vida, uma espécie de Alice no País das Maravilhas ao revés. Tochtli protagoniza o original Festa no Covil, do mexicano Juan Pablo Villalobos, que a Companhia das Letras acaba de publicar. O título integra a rara linhagem dos livros adultos cujos narradores são crianças ou adolescentes.

O romance que talvez tenha cristalizado essa voz juvenil, ao mesmo tempo inocente e provocadora, encantada e malévola, é O Apanhador no Campo de Centeio, lançado por J. D. Salinger em 1945. Ali, Holden Caulfield narra peripécias nos dias perdidos entre sua expulsão de uma escola e o ingresso em outra. Referência central da cultura pop, O Apanhador parece um parque de diversões perto das 96 páginas de Villalobos.

Se Holden tem que se preocupar com professores hipócritas, colegas alienados e psicanalistas excêntricos, Tochtli vive cercado por psicopatas, mentirosos, drogados e animais bizarros – como um casal de hipopótamos anãos liberianos. E, enquanto Holden saracoteia seu sarcasmo por Nova York, Tochtli é vigiado por capangas, encerrado na casa de seu pai, Yolcaut, um “palácio”, como ele diz.

Os conflitos com a autoridade, normais em sua idade (não se sabe ao certo qual, talvez 10, 11 anos), são dirigidos a Mazatzin, o suspeito professor particular – o garoto é impedido de ir à escola. “Realmente os cultos sabem muitas coisas dos livros, mas não sabem nada da vida. (...) Tenho uma teoria: os cultos vão para a cadeia porque são uns cuzões.”

Por causa do isolamento do protagonista de Festa no Covil, todo o seu universo é filtrado pela ética do crime, e à crueldade inerente de toda criança soma-se certa autossuficiência própria aos “escolhidos”, como o pai o leva a acreditar. Seu poder é tanto que não raro ele oferece “amigos” como alimento para leões e tigres do minizoo do palácio – aos olhos do garoto, Yolcaut é El Rey. Para além de qualquer moral, temos uma linguagem tão seca que parece alucinação.


Meninos do Sudão

Um dos mais famosos narradores infantilizados é Benjy, o idiota de 33 anos de O Som e a Fúria. Mas em Benjy a infantilização revela-se uma condição psíquica, derivada do autismo – o autor, William Faulkner, usa o fluxo de consciência para melhor digeri-la. Já em Tochtli, trata-se de sua condição política. O palácio-cárcere cheio de mimos o leva a se refugiar no narcisismo para conquistar uma identidade própria.

Tal qual o personagem da obra-prima de Faulkner, Tochtli apreende apenas algumas janelas do mundo.Nessa operação de subtração, o leitor é ciente de um horror que, para seu narrador, ficará intocado. Como em um suspense, poderíamos nos perguntar: será que uma hora ele vai se ligar no absurdo que está acontecendo?

Se o autismo rege a ótica de um garoto rico na trincheira confortável de uma guerra, a do narcotráfico, que convulsiona o México de Festa no Covil, outro pequeno narrador tem sua identidade ligada justamente à consciência da guerra – e ela não tem nada de confortável. Ele se chama Valentino Achak-Deng e protagoniza O Que É o Quê, um belo exercício de ficção realista de Dave Eggers. Valentino narra sua vida miserável como um dos Meninos Perdidos do Sudão na obra que Eggers escreveu após entrevistar longamente o refugiado.

Foram necessárias várias sessões de conversa para que Eggers “incorporasse” o personagem na primeira pessoa. E isso desde os 6 anos de idade, quando presencia a devastação de sua aldeia e atravessa todo o Sudão a pé, com 20 mil meninos que queriam se livrar do regime genocida de Cartum, rumo ao Quênia e, de lá, aos Estados Unidos.

A quantidade de perigos dos quais foge Valentino – militares sádicos, fome e sede, além de leões e jacarés – aponta para outra infância extraordinária: a de J. G. Ballard, maior nome da ficção científica britânica. No emocionante O Império do Sol, o escritor lembra, usando o discurso indireto livre, sua passagem por um campo de concentração em Xangai durante a Segunda Guerra.

A guerra parece mesmo catalisar a imaginação dos narradores mirins. É, ao lado do sexo, das escolas ruins e da mediocridade reinante, o tema que mais perturba o Menino de Lugar Nenhum, de David Mitchell. O livro se apoia na experiência do autor: ambos, Mitchell e Jason Taylor, o narrador de 13 anos, são gagos. Taylor combate frontalmente o conflito nas Malvinas, em 1982: “A guerra pode ser um mercado para as nações, mas para os soldados não passa de loteria”, diz.


Fogo Cruzado

“A explosão até acordou os pássaros adormecidos nas árvores e os peixes devagarosos do mar – aconteceram cores de um carnaval nunca visto, amarelo misturado com vermelho a fingir que é laranja num verde-azulado, brilhos a imitar a força das estrelas deitadas no céu e barulho tipo guerra dos aviões MIG”, narra o angolano Ondjaki em Avó Dezanove e o Segredo do Soviético, romance que enfoca os embates entre as doidas crianças de Luanda e uma misteriosa obra conduzida por militares soviéticos. Preferindo trabalhar sob a perspectiva da fantasia – o que talvez tenha induzido alguns críticos a classificar erroneamente seu livro como infanto-juvenil –, Ondjaki reforma o mundo desolado daqueles miúdos com linguagem coloquial e tom lírico.

Dois grandes exemplos nacionais dessa linhagem são diametralmente opostos. Em Memórias Sentimentais de João Miramar, Oswald de Andrade aborda a infância de um filho da aristocracia. O jovem playboy aproxima a dicção tatibitate tanto do deslumbre com o grand monde quanto do cinismo em relação às provincianas convenções paulistas. Naquela edulcorada sociedade do início do século 20, a guerra era abstração: “Gustavo Dalbert em noite de cabelo e cigarro disse-me que a arte era tudo mas a vida nada. Ele era músico e ia morar em Paris comigo, o amigo e jovem poeta João Miramar”.

Fofo e rebelde, ok, mas almofadinha ao extremo se comparado à mais ousada escritora de nossa literatura – a Hilda Hilst de O Caderninho Rosa de Lori Lamby. Em forma de diário, o livro contém tudo que os títulos antes citados pouco sugerem: sexo. (Em Villalobos, só sabemos que, sobre a prostituta preferida do pai, Quecholli, “tudo é segredo”.) Lori Lamby é uma menina de 8 anos servida sexualmente pelos pais e que, tendo veleidades literárias, escreve sobre isso, com alegria e inocência zero.

Um escândalo na época de sua publicação – quando Hilda tinha 60 anos e uma obra tão vasta quanto desconhecida –, o livro, escrito para fazer sucesso, conta com quatro narradores, além da própria Lamby. Foi um fracasso de vendas. Hoje, no entanto, pode ser lido como uma das obras mais complexas e provocadoras de Hilda Hilst, que conhecia o mesmo truque de Villalobos: para falar de violência, nada mais cruel – e sutil – do que uma criança no meio do tiroteio.

O Livro

Festa no Covil, de Juan Pablo Villalobos, trad. Andreia Moroni. Companhia das Letras, 96 páginas, R$ 29,50 (e-book R$ 20).

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