Avenida Faria Lima, em São Paulo: "O espaço público deveria ser redesenhado e deveríamos aproveitar a pandemia para isso", diz Anthony Ling (Germano Luders/Exame)
Guilherme Dearo
Publicado em 23 de julho de 2020 às 06h00.
Última atualização em 23 de julho de 2020 às 08h03.
Com o relaxamento cada vez maior da quarentena em São Paulo, as companhias começam a determinar a volta de seus funcionários para o trabalho presencial. O retorno do expediente nos escritórios inclui, claro, a avenida Faria Lima, que ganhou fama por sediar boa parte das fintechs e startups em atividade no país. EXAME conversou sobre o assunto com o arquiteto e urbanista Anthony Ling, que dirige a holding Évora e edita o site Caos Planejado, especializado em urbanismo e economia. Confira:
O home-office veio para ficar?
Anthony Ling: “Em primeiro lugar, precisamos lembrar que os escritórios foram criados por um motivo. Existem em razão do encontro presencial, dos contatos diários, não planejados. São a base da agilidade, da criatividade, a verdadeira origem de ideias novas. A longo prazo, poucas empresas devem continuar a impor o regime de home-office em 100% das jornadas. E não só em razão da produtividade. Tem a ver com a ideia de cultura empresarial. Por que não se opta por terceirizar todo mundo, cada um trabalhando em um lugar? Porque implicaria perdas.
Quando você reúne todos os colaboradores no mesmo lugar consegue compartilhar melhor os valores da empresa e aumentar a confiança entre as pessoas. Nas empresas que adotarem o home-office para sempre isso tudo pode se deteriorar. Uma coisa é home-office durante a pandemia, quando todos os funcionários já se conhecem presencialmente. A migração para o home-office foi fácil por causa disso. E daqui 5, 10 anos? A longo prazo, será que os funcionários da XP Investimentos terão o mesmo nível de confiança entre eles sem um histórico de encontros presenciais?”
Qual é o futuro da Faria Lima?
Anthony Ling: “Em geral, as empresas que têm escritórios na Faria Lima são advocacias, bancos e fundos. Migraram bem para o home-office porque o trabalho presencial não é totalmente necessário. Para quem trabalha com contabilidade, por exemplo, e precisa acessar o sistema da empresa localmente, é outra história. Passada a pandemia, acredito que as empresas vão aderir a um regime de home-office parcial. Cada um fica em casa 2, 3 dias por semana e vai para o escritório nos outros. Por outro lado, os layouts dos escritórios estão sendo refeitos, para garantir mais espaço para cada pessoa. Isso deve compensar a diminuição de fluxo na Faria Lima, mantendo os escritórios com as mesmas proporções. E as taxas de vacância na região sempre foram muito baixas, a ocupação era altíssima. Por isso a perspectiva é que tudo continue quase como antes. Lajes comerciais mais distantes, no entanto, podem sofrer desvalorização. A verdade é que na Faria Lima se está perto de tudo. Os benefícios são gigantescos. Dá para se reunir com todo mundo, almoçar no Eataly, ir até outro prédio, pegar o patinete e chegar em minutos na outra ponta da avenida. O universo dos “faria limers” funciona muito bem”.
Hoje sediada na Faria Lima, a XP Investimentos anunciou que pretende criar uma sede no interior de São paulo, a “Villa XP”. Quais serão os impactos urbanísticos se várias empresas fizerem o mesmo?
Anthony Ling: “Nos Estados Unidos esse movimento ganhou muita força. Lá é muito comum morar num loteamento com casinhas iguais num subúrbio, bem longe dos centros urbanos. A consequência? Todo mundo tem que andar de carro. Nada de ir para o trabalho de patinete, bicicleta, a pé ou até mesmo de ônibus. Isso porque transportes coletivos só se sustentam se houver uma demanda considerável de passageiros. Muitos carros demandam rodovias gigantescas, um custo de infraestrutura per capita que não faz sentido. É um modelo extremamente caro e inviável para o Brasil. Os funcionários da maioria das empresas não vão trabalhar de carro, apesar de vermos as ruas lotadas de automóveis. Vão a pé, de ônibus. Os carros representam só um terço dos deslocamentos nas cidades. Deixar as metrópoles para se refugiar no campo durante a pandemia, aliás, é um luxo que só poucos puderam-se dar. Não é um modelo viável a longo prazo e, para ser honesto, não parece ser o que as pessoas querem. Nos últimos 20 anos a tendência principal foi essa: maior procura pelos centros urbanos. A pandemia só deu uma pausa nisso. Quem mora na periferia e precisa ir trabalhar no centro, por sinal, talvez esteja pensando agora: ‘puxa, se eu morasse numa zona mais central não precisaria me arriscar indo de ônibus, poderia ir a pé’. Sigo otimista. A pandemia vai passar e todos os benefícios das cidades voltarão a ser celebrados”.
A XP Investimentos pode se arrepender de sua Villa?
Anthony Ling: “A Villa XP se apresenta como uma nova sede e também como uma espécie de clube de campo. Aparentemente a empresa vai manter algumas pessoas trabalhando na Faria Lima e outras em regime de home-office. Me pergunto também o quanto um clube de campo pode ajudar nos resultados da empresa. O custo para manter uma infraestrutura com pista de pouso e quadra esportiva é altíssimo. Vai aumentar o lucro da empresa? No final das contas a pergunta de qualquer gestor é essa. Considero, portanto, um projeto muito arriscado. A XP pode se arrepender de fazer todo esse bafafá e mudar de ideia. Não à toa, muitas empresas do Vale do Silício estão rediscutindo a localização de suas sedes. Querem sair dos subúrbios e ir para São Francisco, para o centro de Seattle ou de Nova York. São as regiões onde as pessoas querem estar. São decisões econômicas. Numa região bem localizada você tem acesso a um número muito maior de trabalhadores. Ok, muita gente pode se deslocar para o interior de São Paulo. Mas muitas não vão topar ou não terão como. Levando em conta os profissionais visados pela XP, a Faria Lima é bem mais estratégica.”
Quais lições que a Faria Lima deveria tirar da pandemia?
Anthony Ling: “A operação urbana que deu origem à região teve falhas. Priorizou muito os grandes terrenos, os edifícios comerciais, não investiu na mistura de usos. Do ponto de vista urbanístico, a Faria Lima não tem o mesmo apelo de uma Avenida Paulista. Esta tem bem mais diversidade, gente caminhando 24 horas por dia. Em alguns trechos as calçadas da Faria Lima são estreitas, inóspitas para os pedestres. A ciclovia só foi implantada depois da consolidação da via e os ônibus não são priorizados. O espaço público deveria ser redesenhado e deveríamos aproveitar a pandemia para isso. Várias cidades fizeram isso. Por que não permitir, provisoriamente, que uma faixa seja usada para acomodar mesas de restaurantes? Vai que funciona. Por que não ceder uma faixa para as bicicletas por enquanto? É um ótimo momento para repensarmos nossas cidades”.