Eduardo Kobra em frente ao muro que lhe rendeu o Guiness Book (Eduardo Kobra/Divulgação)
Clara Cerioni
Publicado em 7 de outubro de 2017 às 07h00.
Última atualização em 7 de outubro de 2017 às 07h00.
São Paulo - As milhares latas de spray espalhadas pelo ateliê, o cheiro de tinta fresca inundando o pequeno espaço de trabalho e diversas telas recém pintadas não mentem: um dos maiores muralistas do Brasil, o paulistano Eduardo Kobra, mantém a produção de sua arte a todo vapor.
Apaixonado desde criança pela magia dos desenhos, o artista, famoso por seus enormes murais coloridos, mostra orgulho ao ver sua arte exibida nas ruas de mais de 30 países e fazendo parte, cada vez mais, da arquitetura das cidades.
Seu trabalho, carregado de significados, segue os princípios da street art - nome dado ao movimento de artistas que, assim como Kobra, transformam espaços públicos em uma galeria de arte a céu aberto, à disposição de qualquer um que as observe.
Há 30 anos se dedicando a fazer arte na rua, o artista já eternizou momentos históricos para o mundo, como a famosa cena do beijo de 1945, na Times Square, em Nova York e personalidades importantes, como Malala, ganhadora do Nobel da Paz em 2014, o ex-presidente dos EUA Abraham Lincoln e o cantor e vencedor do Nobel de Literatura em 2016, Bob Dylan.
Além disso, no ano passado, Kobra entrou para o Guinness Book, por ter pintado o maior grafite do mundo, o mural "Etnias", localizado no Boulevard Olímpico, no Rio de Janeiro.
Engajado em diversos novos projetos para os próximos meses, o artista divide, em entrevista a EXAME.com, sua história com as ruas, além de analisar algumas de suas obras mais conhecidas.
Como você se envolveu com a street art?
Como eu nasci na periferia de São Paulo, filho de família simples e pobre, a minha vida sempre foi na rua. Mas meu primeiro envolvimento com arte de rua foi com pichação, mas não tinha nada de desenho, eu só assinava meu nome. A relação entre rua e desenho veio depois. O que eu gostava era da adrenalina que a rua proporciona, de fugir e correr da polícia.
Minha história é autodidata, assim como a maior parte das pessoas da periferia. Com as dificuldades que qualquer menino nesse espaço tem, todos contra, a questão da sobrevivência porque muitas vezes os talentos são reprimidos. Paralelamente com a pintura trabalhei de motoboy, porque precisava me sustentar. Mas nunca parei de desenhar. Desde 1987, quando comecei, nunca mais parei.
Mas desde que começou a desenhar nas ruas fazia desenhos coloridos?
Esse é um ponto relevante de se comentar: meu trabalho não é só desenho colorido. É só a parte mais conhecida, porque as pessoas se sentem mais representadas, entendem melhor a mensagem que eu quero passar e se interessam pelo conjunto da obra. Mas tenho também projetos em outros segmentos, como painéis em proteção aos animais e de crianças desaparecidas, pintura em piso e o projeto “olhares da paz”, onde eu retrato a união dos povos ao redor do mundo.
Como é o processo de criação dos seus desenhos coloridos?
Nenhum deles é por acaso, essa é a primeira e principal característica. Eu comecei a pintá-los em 2000 com o projeto "muro das memórias", que são como portais para cidades do passado. Ele fala de preservação histórica e de personalidades que lutaram por um mundo diferente. A ideia da cor veio porque eu comecei a retratar fotografias em preto e branco e o colorido encaixou perfeitamente para mostrar esse ressignificado que eu busco dar para minhas obras, uma releitura entre passado e presente.
Para pintá-los existe todo um preparo e uma pré-pesquisa tanto de conteúdo, quanto de cor e do espaço em que a imagem vai ser colocada. Se analisarmos, por exemplo, o mural da Anne Frank percebemos essa preocupação: para pintar essa personagem eu fiz uma pesquisa na casa dela, em Amsterdã, acessei toda a sua iconografia e desenvolvi o desenho.
O fundo é a reprodução da capa do diário dela e os padrões de letra também foram pesquisados durante essa viagem. Aqui existe conteúdo histórico, que tem a preocupação de trazer para hoje aquilo que aconteceu há anos.
Como você decide fazer esses trabalhos? É por meio de convite, você que escolhe?
Então, 90% do meu trabalho eu faço de forma voluntária, apesar de sempre receber muitos convites, às vezes do governo, às vezes de ONGs. Mas, mesmo quando me convidam, o critério que eu coloco para produzir é ter liberdade para criar o que eu quiser.
Faço poucas relações com marcas e produtos, porém preciso fazer algumas para manter a minha vida e os meus trabalhos na rua. Mas sempre com cautela. Eu não tenho, por exemplo, nenhum produto com meu trabalho - e isso foi por escolha. Não vejo como algo ruim, mas não funciona para mim.
E também não estou dizendo que não faria. Se houver um argumento interessante é sempre possível. Eu não fico no mercadológico apenas, por trás disso tem que ter uma história para justificar a escolha.
Mas como você mantém esses projetos?
Sempre por meio da venda de telas originais. Antes de ir para o muro eu sempre faço o desenho em telas, no formato do prédio para testar as cores, o posicionamento, etc. Depois de impresso no muro eu coloco esses originais à venda, a partir de R$ 100 mil. E normalmente quem compra ou é colecionador ou são galerias de arte. Por isso eu consigo manter a integridade do meu trabalho.
Mas qualquer um pode comprar?
Sim, eu não trabalho com nenhuma galeria de arte. Aqui no Brasil não tenho nenhum representante. A única forma de ter acesso aos meus trabalhos é através do site do meu ateliê. Mas tudo que é fora daqui eu tenho um representante em Los Angeles, que faz o contato com o resto do mundo e dá todo o apoio logístico.
Você pensa em fazer uma exposição com essas telas?
Já fiz duas, mas tem mais de dez anos que não faço. Mas pretendo, no ano que vem, fazer algo aqui em São Paulo.
Quanto tempo leva para planejar e executar um painel?
A criação sempre leva mais tempo que a execução. Tem situações que eu levo um, dois meses para criar algo e pinto em uma semana. E hoje eu estou em um momento do meu trabalho onde estou muito mais preocupado com o conteúdo que vou pintar, do que com a estética. Que tenha uma mensagem que eu queira passar.
Você acha que seu trabalho valoriza a cidade, os bairros?
É até engraçado, porque já fiz as duas coisas: já destruí o patrimônio histórico com vandalismo e hoje o meu trabalho sim, até mesmo pelo projeto de memória, a intenção é essa.
Quando eu vou pintar um determinado lugar da cidade, primeiro eu vou tirar fotos para analisar a rua, entender a arquitetura, a visibilidade daquele painel e também qual a história do local. Também tenho essa preocupação, porque a utilização do espaço público precisa ser responsável.
De qualquer forma há uma responsabilidade de quem ocupa, porque ali é um espaço democrático, pertence à cidade. Ninguém é dono daquele lugar. Quando eu pinto uma obra eu sei que ali transitam todos os tipos de pessoas ligadas a religiões, a diversas culturas, crianças. Não dá para fazer qualquer coisa da cidade como se fosse para mim, a cidade não é minha.
Por exemplo, o mural do beijo, na High Line, em Nova York, não está lá aleatóriamente. Essa foto foi tirada na Times Square, que fica a poucas quadras do lugar que está a pintura. Isso é positivo, porque eterniza a história e atrai as pessoas.
Como você lida com essa expansão do seu trabalho internacionalmente e ao mesmo tempo a controvérsia no Brasil, principalmente em São Paulo?
Acredito que, primeiro, aquele começo, com toda a discussão, envolta da arte de rua foi um mal entendido. Aquilo ajudou a mostrar a importância da arte de rua para a cidade, mostrou quanto os moradores zelam pela história da arte na rua. Para mim, a arte de rua é um elemento cultural, uma marca. E nós paulistanos nos orgulhamos disso, por levar isso para fora do mundo, como por exemplo na Arábia Saudita, onde há poucos anos era impensável haver arte de rua.
Mas percebi que esse conflito teve desdobramentos positivo: a prefeitura formou um grupo com vários artistas importantes da street art, que se reúne para discutir esse movimento na cidade. Começou de uma forma ruim e hoje acredito que a cidade terá benefícios em relação a esse episódio.
Outros países também têm essa força da street art?
No Brasil, São Paulo é a principal cidade. Nos Estados Unidos, por ter começado lá, Nova York e Miami. Mas em lugares que a arte de rua tradicionalmente não entrava, agora está dando abertura. Digo que nós estamos na vanguarda desse movimento, o que devemos continuar fazendo é incentivar os artistas, expandindo, valorizando e transformando a cidade em um museu em céu aberto.
Você já foi censurado por algum país?
Sim. Tive na Grécia, em Atenas. Dentro do projeto de proteção aos animais, uma organização de arte me chamou para fazer um trabalho e eu criei um desenho que era baseado na evolução do homem. Onde o homem evoluía, mas para a destruição do planeta. Era uma brincadeira, com tom político.
Ficamos pintando por trinta dias e várias pessoas passavam e nos ameaçavam, até que no fim do trabalho um senhor apontou o dedo para minha cara e dos meus assistentes, algo que eu não entendia, por conta da língua, e no dia seguinte o mural apareceu todo pichado. Fomos buscar explicação e descobrimos que lá é rodeado de templos ortodoxos, então eles interpretaram que essa mensagem era algo contra Deus, contra eles. Não tinha nada a ver.
Quais são seus próximos projetos?
Eu tenho uma sequência de 28 murais em Nova York. Através da minha equipe de lá, que está administrando e organizando, contando toda a história da cidade por meio dessas pinturas. Isso porque lá tem uma importância muito grande para mim, por conta de grandes nomes que me influenciaram, como Jean-Michel Basquiat, Keith Haring e os grafiteiros do metrô, por exemplo. Aqui em São Paulo vou fazer uma pintura de uma caixa d’água de 50 metros de altura, no Memorial da América Latina.
Além desses, eu acabei de voltar de São Luís do Maranhão, onde transformei um muro em uma prateleira de livros, com os principais escritores de lá.
Você pensa em fazer projetos sociais?
Eu tenho dado workshops e palestras sobre meu trabalho. Também faço projetos em comunidades carentes. Para mim é muito importante ir para a Times Square e lugares nobres, mas preservar minhas origens é essencial, porque eu nunca tive ninguém para me apresentar a arte.
O que fiz na comunidade de Paraisópolis é um exemplo desses meus projetos. Esse painel eu fiz com essa menina que é uma moradora de lá e ela sonha em ser bailarina. Pedi para pintar a fachada da comunidade e fiz com a participação de todos juntos.
Enquanto esses projetos estão sendo feitos eu tenho também o “envolva-se”, em que as pessoas se cadastram e quando eu vou pintar onde elas moram eu as chamo para participar. Tem muitas partes que é só de uma cor e as pessoas podem colaborar e pintar junto. É tudo uma troca. Não quero que meu trabalho seja inacessível. Foi a forma que encontrei de ter contato com elas.