Copa do Mundo: o plano consiste em remodelar o calendário de forma radical a partir de 2024 (Anadolu Agency/Getty Images)
Agência O Globo
Publicado em 3 de outubro de 2021 às 09h20.
As seleções nacionais entram em campo mais vezes do que deveriam e para partidas que interessam a pouca gente. Este é um diagnóstico da Fifa, com o qual você provavelmente concorda — ou tem alguém realmente empolgado assistindo às 18 rodadas de Eliminatórias para o Mundial do Qatar? Remediar o problema, porém, é um desafio para a entidade, que já enfrenta resistência de alguns dos principais integrantes do ecossistema da bola.
O plano consiste em remodelar o calendário de forma radical a partir de 2024, tendo como vitrine principal a realização da Copa do Mundo a cada dois anos, ao invés de quatro, como funciona desde a criação do torneio, em 1930. Também haveria disputas bianuais dos torneios continentais, como a Copa América e a Eurocopa, logicamente nos anos ímpares, e as competições de base se tornariam mais recorrentes.
Por outro lado, a entidade promete agrupar as partidas de seleções a fim de reduzir o número de viagens dos atletas e as interrupções dos campeonatos de clubes. A federação acredita ainda que permitiria aos treinadores das equipes nacionais transmitir seu modelo de jogo e entrosar melhor o time.
À frente dessa empreitada está o francês Arsène Wenger, que treinou o Arsenal por mais de duas décadas e, desde o fim de 2019, ocupa o cargo de Chefe Global de Desenvolvimento de Futebol da Fifa. Em entrevista a Martín Fernandez, colunista do GLOBO, publicada no ge, ele explicou que pretende “deixar o calendário mais simples e claro” e “focar em competições que sejam realmente significativas”, ao respeitar a proporção de “80% da temporada para competições de clubes e 20% para competições de seleções”. A meta, segundo ele, seria melhorar o futebol globalmente e tentar torná-lo mais competitivo.
Isso passa pela diversificação e ampliação de receitas, de modo que haja mais dinheiro a circular por países da periferia do jogo. Esse movimento vai ao encontro de outros promovidos pela entidade, como a ampliação do número de participantes da Copa, de 32 para 48 países, a partir da edição de 2026, na América do Norte. Não à toa, os principais entusiastas dessa nova visão sobre o Mundial são coadjuvantes do jogo: a Arábia Saudita apresentou a ideia aprofundada por Wenger, e a Ásia e a África se mostram mais simpáticas à medida.
Por outro lado, há resistência nos dois principais centros do esporte: a Europa e a América do Sul. O presidente da Uefa, Aleksander Ceferin, prometeu um boicote do bloco caso o presidente da Fifa, Gianni Infantino, leve adiante o projeto bienal. E afirmou que “o valor da Copa é porque acontece a cada quatro anos”.
— Isso vai contra os princípios básicos do futebol. Jogar um grande torneio a cada verão (no hemisfério norte), para os jogadores, será a morte. Se for a cada dois anos, vai bater com a Copa do Mundo feminina e o torneio olímpico de futebol — justificou o dirigente em entrevista ao jornal britânico “The Times”.
Ceferin alega que as federações da Uefa jamais se posicionariam a favor da proposta. Mas se considerarmos que boa parte das nações do bloco raramente ou nunca participa de mundiais, há brecha para que também elas enxerguem vantagem em aumentar a frequência dos eventos.
O outro argumento do cartola, relativo ao desgaste físico para os atletas, é mais difícil de refutar. A FIFPro, espécie de sindicato mundial dos jogadores, já se manifestou em oposição. O órgão clama sim por uma reforma no calendário, mas uma que reduza a carga de trabalho dos profissionais. Em nota, alegou que “sem a concordância dos jogadores, que dão vida a todas as competições em campo, essas reformas não terão a legitimidade necessária”.
Uma posição curiosa, que ajuda a rever a dimensão dessa articulação, vem justamente da Conmebol. Em nota divulgada no mês passado, a entidade expressou temor pela banalização do torneio, alegou que seria praticamente impossível administrar o novo calendário e disse que não há justificativa esportiva para afetar o tempo de preparação das seleções para os grandes eventos. Curiosamente, há cerca de três anos, o próprio presidente da confederação sul-americana, Alejandro Domínguez, defendera a realização de Copas do Mundo bianuais, quando da criação da Liga das Nações da Europa, que restringiu a disponibilidade de seleções deste continente para amistosos com sul-americanos.
A CBF e seus principais representantes, como o técnico Tite e o coordenador de futebol Juninho Paulista, ainda não opinaram publicamente sobre a proposta. Procurada pelo GLOBO, a entidade disse que não se manifestaria por ora.
A proposta da Fifa segue uma tendência global: a busca por grandes jogos, capazes de produzir grandes receitas e atrair grandes audiências. Os próprios clubes, os mesmos que se queixam do calendário sobrecarregado, articularam-se recentemente para a criação da Superliga, que adicionaria novas datas a esse bolo. Essa iniciativa foi inicialmente freada, mas a força por trás dela deve seguir.
Ricardo Fort, consultor de patrocínios especializado em grandes eventos, explica ao GLOBO que a Fifa se vê em dois papéis conflitantes.
— Um deles é o de promover eventos, como a Copa do Mundo, e lucrar com isso. Como promotora, ela compete no mercado com a Olimpíada, a Liga dos Campeões, o Brasileirão… Então, tem que criar eventos para gerar novas receitas. Do lado comercial, está certa. Mas existe a outra Fifa, o órgão regulador do futebol, que desenvolve e cuida da saúde global do esporte. Nesse lado, aumentar a frequência dos jogos é um erro grande — opina o fundador da Sport by Fort Consulting. — A Fifa tem esse conflito interno e, pelo jeito, vai privilegiar o lado comercial.
Fort trata o atual movimento da entidade como “uma campanha orquestrada de comunicação para convencer as pessoas de que essa é uma boa ideia”. E a Fifa tem lançado mão de alguns recursos. Convocou ex-jogadores, entre eles os brasileiros Ronaldo e Roberto Carlos, para debater e propagar a proposta pelo mundo. E realizou uma enquete cujo resultado foi moldado a interesse próprio: 55% dos torcedores votaram a favor de Copas mais frequentes (30% prefeririam que ela acontecesse a cada dois anos; 14%, a cada três; e 11%, anualmente). Ainda assim, o modelo quadrienal recebeu a fatia mais grossa dos votos: 45%.
O potencial novo calendário ainda precisa ganhar corpo — não se sabe se seu desenho seria capaz de, de fato, reduzir o número de jogos desinteressantes e distribuir melhor as janelas de convocações. Portanto, o martelo ainda está longe de ser batido. A Fifa realizou, na quinta-feira, uma reunião virtual com mais de 200 federações afiliadas para debater mudanças. São elas que votam as propostas, e não as confederações continentais. A entidade prometeu publicar um relatório detalhado no mês que vem e organizar seu próximo congresso ainda neste ano.
Também será preciso ouvir os clubes, que detêm os direitos dos jogadores e pagam as contas do futebol ao longo do ano. E eles também têm seus desafios pela frente, como o novo Mundial de Clubes da Fifa, ainda sem cara e data de início.
— Neste momento, é mais uma batalha de relações públicas do que uma questão prática. Se a Fifa encontrar uma solução que permita que os jogadores atuem menos, que as Eliminatórias sejam mais organizadas, com menos janelas para viagens, pode ser que funcione — argumenta Fort. — Não é uma ideia totalmente esdrúxula, depende muito de como será feita, porque pode beneficiar muita gente que hoje não participa desse bolo.