Depressão: em 2015, essa doença afetou mais de 350 milhões de pessoas, segundo a Organização Mundial de Saúde; só no Brasil, foram cinco milhões de pessoas (Ryan McVay/Thinkstock)
Da Redação
Publicado em 12 de julho de 2016 às 20h33.
Quantas (e repetidas) vezes na vida se falou – e se ouviu – o mandatório “não fica assim, não”?
“Assim.”
Assim como? Triste, recolhido(a), solitário(a), apático(a), sem energia, sem perspectiva?
Entre uma recomendação e outra, o “assim” tem se tornado uma sensação intransigente nas nossas vidas: melhor que o “assim” não invada nossa rotina e os dias de quem amamos. Que fique bem longe, que deixe de nos mostrar nossas limitações, que pare de impedir nossa produtividade.
De um lado, temos estatísticas e um urgente problema de saúde pública: em 2015, a depressão afetou mais de 350 milhões de pessoas, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). Só no Brasil, foram cinco milhões de pessoas.
De outro lado, dúvidas, muitas dúvidas: quando o “assim” diz respeito a uma tristeza e quando devemos suspeitar de depressão? E se o “assim” se torna uma condição mais duradoura do que se imaginava ou se gostaria?
Entre números tão expressivos e o estigma sobre o assunto, fica evidente que a depressão precisa ser pensada com delicadeza e seriedade, muito além de dados estatísticos. Relatórios numéricos, quantidade de diagnósticos e recenseamento da saúde mental nos dizem pouco (ou quase nada) sobre a realidade difícil e particular de cada pessoa que lida com a chamada “doença da alma”.
Pensar a depressão acaba levantando dois questionamentos importantes: (1) quando termina a tristeza e começa um processo depressivo, e (2) o quanto a tristeza é desencorajada em nossa sociedade.
Tristeza ou depressão?
A associação entre tristeza e depressão costuma ser tão imediata que vez ou outra o senso comum afirma. Basta ver alguém mais recolhido para se comentar: “Ele(a) está deprê”.
Em um estado depressivo, estamos falando, quase sempre, das consequências de uma perda, não importa de qual natureza – seja de uma pessoa querida (morte ou separação), de um emprego, de um sonho que se mostra impossível ou de um projeto que se mostra inviável, explica a psicanalista Tatiana Monreal Cano, doutora em Psicologia Clínica pela USP e mestre em Filosofia pela Unicamp.
Nesses casos, o sujeito fica em uma situação na qual nada parece fazer sentido e a possibilidade de elaboração fica bastante comprometida.
Segundo Cano, elaborar a perda é dar um sentido a ela. É o equivalente a encarar um processo de luto, ou seja, poder dizer adeus àquilo que se perdeu e voltar a investir em outra pessoa, projeto ou sonho; em suma, promover novos laços. A dificuldade em elaborar esse luto, de se desvincular dessa perda, é o pano de fundo de um processo depressivo.
“Muitas vezes, o indivíduo que está sofrendo acaba se identificando com a pessoa ou a situação perdida, e passa a se recriminar de um modo muito severo quando, na verdade, essas recriminações e acusações deveriam ser dirigidas para quem ou ao que foi perdido. Do ponto de vista psíquico, é como se parte do sujeito passasse a ocupar o lugar daquele que se foi e a outra parte o acusasse ferozmente por tê-lo deixado.”
Por outro lado, sofrer uma perda não significa, necessariamente, que a pessoa vá passar por uma depressão. A dimensão do sofrimento gerado pelo que se perdeu é o que vai separar uma tristeza de um processo depressivo. Neste último caso, a questão é que nem sempre a pessoa é consciente daquilo que realmente foi perdido e de como isso a afetou nas suas profundezas, pondera a psicanalista.
No processo de luto diante da morte de alguém querido, por exemplo, “é esperado que a pessoa passe por um período de recolhimento, tristeza e reflexão, no qual vários processos internos ocorrem para enfrentar a dor gerada pela perda da pessoa amada”, esclarece Cano.
“Mas se esse período se estender por muito tempo, é provável que estamos diante de um luto impossível de ser elaborado. É o momento em que se instala um outro processo, chamado de melancólico ou depressivo.”
A dificuldade em superar uma perda está relacionada à própria história de cada um, principalmente pela maneira como os pais lhe ajudaram a lidar com as perdas e as frustrações, sempre inevitáveis, em suas vidas.
Por isso, Cano insiste que, mais importante que dar tudo aos filhos, é ajudá-los a criar condições para poder superar o sofrimento frente ao que não se pode ter, encontrando e criando substitutos. “Por exemplo, ao invés de comprar um brinquedo novo, por que não construir um com os materiais que já se tem em casa?”, sugere.
De acordo com a psicanalista, a diferença de uma pessoa para a outra é como ela vai lidar com todas essas infelicidades, perdas e frustrações.
Nesse sentido, a criatividade é de extrema importância, pois é por meio dela que o sujeito pode encontrar saídas alternativas:
“A capacidade de encontrar e de criar novas soluções é um sinal de saúde psíquica. Do contrário, tem-se a paralisia, ou seja, a dificuldade de enxergar outras vias possíveis de realização.”
De qualquer maneira, Cano ressalta que dimensionar a tristeza é uma questão bastante complexa, principalmente porque cada pessoa tem sua experiência particular da perda, sua capacidade de suportá-la e sua maneira de significá-la no contexto das suas vidas.
E, embora a tristeza seja um afeto inerente a todo ser humano, existem momentos em que ela pode se tornar insuportável.
“A partir do momento em que a vida cotidiana passa a ser um peso para a pessoa, ou seja, quando tarefas básicas como o levantar da cama e o preparar o café da manhã passam a ser um fardo, existe aí um sinal de alerta a que é preciso estar atento.”
Em momentos de muita tristeza e de dor muito profunda, o sujeito sente que a própria vida perdeu o sentido; daí a necessidade de descobrir novos sentidos.
“Esse trabalho é o que cada um precisa fazer individualmente; se for o caso, com a ajuda de um profissional, em uma sessão analítica, onde a mente é estimulada a reencontrar o sentido perdido”, afirma a psicanalista.
Buscar ajuda, portanto, pode ser o caminho para lidar com o sofrimento — sobretudo quando ele paralisa, em vez de ser um estímulo para a mudança e possíveis reavaliações.
É importante que essa ajuda venha de um profissional capacitado pois, apesar de os pais, amigos(as) e companheiros(as) se colocarem à disposição, nem sempre eles saberão como lidar com a situação.
Além disso, nem sempre aquilo que pôde ter sido bom para uns pode ser para outros. Segundo Cano, a escuta neutra e imparcial do analista é a mais indicada nestes momentos de angústia:
“Mas é bom deixar claro que uma análise ou uma terapia não vão dar uma solução milagrosa, mas sim fornecer as condições para que o próprio paciente encontre seu próprio caminho, o prazer e o sentido perdidos, para que a vida volta a valer a pena ser vivida.”
A tristeza e a solidão também fazem parte da vida
Quanto vamos correr, nos entreter e acumular para que assim não precisemos pensar a respeito do que ocorre em nossas vidas?
Vistos com maus olhos pela mesma sociedade que cobra a euforia e a felicidade ininterruptas, os momentos de tristeza e de solidão, muitas vezes, são importantes para que o sujeito possa reelaborar e ressignificar as perdas que sofreu ao longo da vida, enfatiza Cano.
“O que é a nossa vida senão uma constante reelaboração? Elaboração do que gente vive e também do que já viveu, do que tem e do que não tem. A atribuição de novos sentidos. Quantas vezes a gente olha e pensa ‘nossa, agora eu entendi aquilo que aconteceu comigo’?.”
Segundo Cano, a solidão e a tristeza podem ser vistas como uma convocação para a ressignificação de um passado eventualmente traumático. É também o momento em que se faz necessário olhar para si mesmo e questionar as escolhas feitas, os projetos, a própria vida.
“Nesse sentido, a solidão e o recolhimento podem ser a ocasião para a busca de novos horizontes, sonhos e projetos, pois não é incomum as pessoas viverem projetos que não são próprios. Daí ser justamente a oportunidade de escolher aqueles que expressem o seu desejo.”
Infelizmente, o sofrimento (e aí incluímos a tristeza) não é nem um pouco bem-vindo atualmente, especialmente em uma realidade em que o desempenho e a produtividade estão alinhados à noção de sucesso. É como se cada frustração fosse vivida como uma derrota, e não como acontecimento natural da vida.
“Muitas vezes os indivíduos são intolerantes com eles mesmos. Eles não se permitem passar por momentos de tristeza e vivem como se tivessem que estar sempre bem, postando selfies nas redes sociais, com caras e bocas”, pondera Cano.
Persona non-grata, o sofrimento é uma certeza em nossas vidas, por mais que teimemos em querer reescrever a vida com linhas exclusivamente felizes, eufóricas e blindadas de qualquer tipo de imprevisto.
“Sempre vai haver algum grau de sofrimento. Se a gente parte do princípio de que o ser humano é imperfeito e incompleto e, justamente por isso, está sempre em busca da perfeição e da completude, a satisfação nunca será plena e eterna. Pelo contrário, só será alcançada em momentos fugazes. Isso significa que sempre haverá uma parcela de frustração para ser enfrentada e elaborada.”
Junto a essa fórmula de sucesso baseada no desempenho e que ignora limitações e impotências, a sociedade capitalista ainda aparece com uma tentadora visão de mundo: a ilusão de que nós sempre vamos conseguir tudo.
“Essa enxurrada de produtos para serem consumidos tem um objetivo: criar a ilusão de que a falta não existe. A publicidade, sabendo que o que move o ser humano é o desejo – desejo de ser amado, de ser perfeito ou querido -, cria a ilusão de que, de posse daquele bem de consumo, vai se estar realizado.”
A psicanalista completa: “Em outras palavras, a sociedade capitalista não só não oferece meios de o sujeito lidar com a falta como, pelo contrário, dá a ilusão de que se ele tiver x, y, z, ele estará completo e feliz. E isso não é verdade."
O problema é que lidar com a incompletude ou com a falta é basicamente um resumo da vida de todos nós.
“Passamos nossa existência em uma constante busca daquilo que não temos em nós mesmos, mas que supomos existir em algum lugar. Acontece que, se por um lado é isso que nos faz sair da cama todos os dias, ou seja, ter a esperança da realização, por outro lado, podemos nos tornar presas dessa armadilha, acreditando que nunca chegamos aonde supomos que devemos chegar. Por isso, mais do que finalmente alcançar, é preciso sempre sonhar e investir; em suma, desejar.”