Fidel Castro: o charuto predileto do líder cubano, morto na última sexta-feira, custa 175 reais no Brasil (Prensa Latina/Reuters)
Rafael Kato
Publicado em 29 de novembro de 2016 às 12h49.
Reportagem publicada originalmente em EXAME Hoje, app disponível na App Store e no Google Play.
Fidel Castro, o ex-presidente cubano falecido na sexta-feira, costumava dizer que a história o absolveria. Ainda é cedo para saber se seu espírito revolucionário terá chance nos livros contra a penúria econômica e a falta de liberdade que impôs à ilha, mas uma coisa é certa: Fidel será lembrado com um dos maiores embaixadores do charuto cubano. No início do ano, foi celebrado o cinquentenário do Cohiba, marca criada exclusivamente para Fidel Castro e seus convidados e que passou a ser comercializada aos demais mortais a partir de 1982.
O ex-presidente morreu num momento em que os charutos e o outro grande produto icônico de Cuba, o rum, passam por uma transformação. Tudo começou em 17 de dezembro de 2014, quando o presidente norte-americano Barack Obama apareceu na televisão e disse em razoável espanhol que éramos todos americanos. A frase pontuava o fim de um discurso que, por sua vez, encerrava quase cinquenta e quatro anos de afastamento entre Estados Unidos e Cuba.
Uma dúvida bem mundana despontou à época, e ganha força nesta semana: o que será do futuro dos devotos apreciadores das duas coisas mais desejadas da ilha caribenha, o rum e o charuto? As respostas ainda estão em construção, principalmente porque o embargo econômico propriamente dito, imposto pelos norte-americanos em 1962, continua em vigor, e só poderá ser revogado pelo congresso. Embargo, não custa lembrar, decretado pelo então presidente John Kennedy poucas horas depois de garantir uma encomenda pessoal de 1.200 charutos cubanos.
Entender o que será de dois ícones da ilha de é entender, antes, como o rum e o tabaco cubanos conquistaram essa reputação. A do rum nasceu de um fato simples: o açúcar sempre foi o símbolo comercial da ilha. Inclusive, durante os anos mais duros do embargo, ele serviu como moeda de troca importante, especialmente no escambo por petróleo com os russos.
Não custa lembrar que o rum é uma bebida destilada feita do melaço da cana de açúcar, ou seja, do caldo cozido da cana (diferente, portanto, da cachaça, que é feita da garapa, o suco fresco da cana). Sua forte presença no Caribe se dá não só em função da matéria-prima muito presente na vizinhança, mas também pelo know-how histórico da região. O rum teria nascido no começo do século 17 em Barbados, colônia britânica no Caribe, da parte descartada da cana de açúcar, a que ia para o lixo. Quem garante é o jornalista norte-americano Wayne Curtis em seu livro sobre a história da bebida lançado em 2006, And a Bottle of Rum, sem edição nacional.
O rum cubano virou patrimônio nacional não apenas pela qualidade, que é indiscutível, mas por fazer parte de um, digamos, “pacote etílico” associado à ilha. Pacote este que incluiu a criação de dois drinques cubanos que se tornaram clássicos mundiais, o Mojito e o Daiquiri, e o culto aos respectivos bares para bebê-los em Havana, El Bodeguita del Medio e La Floridita. O fato do genial escritor norte-americano Ernest Hemingway ter vivido cerca de vinte anos no pais e ter sido um seguidor devotado tanto dos drinques quanto dos bares também ajudou a reforçar a imagem do rum cubano. “Muito se discute do solo, do clima, mas acredito que o grande diferencial do rum cubano são os mestres de rum, a formação humana dos profissionais envolvidos com a produção, algo único”, aponta Cesar Adames, professor e consultor na área de bebidas.
Na vida real, a facilidade de se plantar cana de açúcar fez com que o mundo se acostumasse com outros runs. Inclusive algumas das principais marcas globais da bebida não são cubanas, como o jamaicano Captain Morgan e o dominicano Barceló (ambas tiveram breves e não muito bem-sucedidas experiências no mercado brasileiro). Levantamento feito pela revista inglesa The Spirits Business sobre as dez marcas de rum mais vendidas no mundo em 2014 trazia exemplares indianos, venezuelanos e jamaicanos, e apenas um cubano, o Havana Club.
O impacto no mercado brasileiro
No Brasil, o consumo de rum é pequeno, mal aparece nas estatísticas. “Apenas duas bebidas destiladas apresentam consumo que cresce no país, o whisky e a vodca, as outras têm um consumo estático”, indica Adames. As duas marcas de rum à venda no Brasil são de origem cubana, Havana Club e Bacardi. E a história de ambas explicam a evolução do rum cubano.
Toda a indústria de bebida foi nacionalizada pelo governo Fidel Castro, quando ele derrubou o ditador Fulgêncio Batista em 1959 e tomou o poder. A Havana Club passou a ser comercializada com os países do bloco comandado pela União Soviética. O bloco ruiu, e o governo foi obrigado a negociar a distribuição da marca com a multinacional francesa Pernod Ricard em 1993, em um negócio que rendeu então 50 milhões de dólares ao Estado.
Por outro lado, a Bacardi, empresa cubana que começou a destilar bebida no pais em 1862, fugiu da ilha em 1960 diante da expropriação estatal. Como já tinha fábricas no México e em Porto Rico, a empresa recomeçou e tornou-se uma marca global. No início dos anos 1990, a Bacardi comprou os direitos da marca Havana Club da família Arechabala, criadora da bebida original (que havia sido desapropriada pelo governo) para comercializá-la nos Estados Unidos – por 1,25 milhão de dólares.
Com a possibilidade de abertura, as duas empresas hoje brigam na justiça para determinar quem tem de fato o direito de usar o nome no mercado norte-americano. Havana Club vende no resto do mundo cerca de quatro milhões de caixas em 120 países, o que representa pouco em uma empresa do tamanho da Pernod Ricard, menos de dez por cento das vendas de suas marcas estratégicas globais. Só o mercado dos Estados Unidos representa mais de trinta por cento do consumo de rum no mundo.
Além da distribuição no maior mercado do mundo estar sendo disputada por duas majors, o rum é destilado em colunas, o que facilita um eventual aumento da produção sem ameaçar a qualidade final. Ou seja, os consumidores de rum só terão a ganhar nos próximos anos com a Cuba Libre de verdade: o preço deve baixar, a oferta aumentar e qualidade será, no mínimo, mantida.
O mesmo horizonte não se pode prever para os amantes do charuto cubano. O mercado norte-americano já é o maior consumidor do mundo – na ausência dos cubanos, eles fumaram ano passado 317 milhões de charutos, entre dominicanos, hondurenhos e nicaraguenses. O número é considerado cerca da metade do consumo de charutos artesanais no mundo, e o “estrago” que estes ávidos fumantes podem causar no mercado dos puros habanos é colossal.
O governo cubano estimava em 2014 uma receita de cerca de 200 milhões de dólares que poderia vir do mercado norte-americano com a venda de rum e de charutos. Hoje um charuto cubano varia entre 6 e 30 dólares a unidade, do mais simples ao mais complexo. A Habanos S.A., joint-venture entre o governo e a britânica Imperial Tobacco Group que detém o monopólio de comercialização do charuto cubano, prevê que poderia entrar no mercado norte-americano imediatamente após a derrubada do embargo com algo entre 70 e 90 milhões de unidades.
O senão é que a produção total cubana é de cerca de 150 milhões de unidades por ano, e vem diminuindo vertiginosamente. O pais tinha 25 mil hectares de terra com plantação de tabaco em 2009, e cinco anos depois eram menos de nove mil. Uma produção de 220 milhões de charutos em 2006 caiu para 91 milhões em 2014.
Como o agricultor tem autonomia para decidir o que plantar, sempre que o processo, inteiramente controlado pelo governo, faz com que seja mais vantajoso plantar outra coisa que não tabaco, a produção tende a diminuir. Segundo a revista Fortune, as vendas da Habanos S.A. somaram 439 milhões de dólares em 2014. O desafio agora vai ser, de olho no novo mercado, crescer pelo menos 20% da produção nos próximos cinco anos, como prometeu ao Wall Street Journal Inocente Núñez Blanco, um dos camaradas que dirigem a Habanos S.A.
Não há de ser tão simples. “Na produção de charutos, o terroir faz diferença, as condições da terra em algumas regiões de Cuba são fundamentais para um bom plantio, o que restringe a produção”, lembra Cesar Adames. “Além disso, para formar um torcedor, o profissional que prepara manualmente o charuto, leva entre três e nove meses, no mínimo”, ressalta.
Diante deste cenário, são dois os caminhos comerciais possíveis: deixar o preço disparar, de acordo com a demanda, e tornar o charuto cubano um produto extremamente exclusivo. Ou investir em tecnologia, o que permitiria manter preços mais acessíveis e quantidades maiores, mas sem a reputação e o charme do “artesanal”. Alguns especialistas especulam que há problemas sérios de controle de qualidade na produção dos puros habanos, outros chegam a dizer que o mito do charuto cubano o tornou um produto superestimado. Só a abertura do mercado dirá se eles têm razão. Não se pode desprezar também a concorrência: um charuto dominicano chega ao mercado norte-americano hoje entre 10 e 15 dólares a unidade.
Uma mudança já pode ser percebida: o preço do charuto vem subindo entre cinco e dez por cento por ano nos últimos tempos. Um habano no Brasil sai hoje por algo entre 70 e 150 reais, em média, dependendo do tipo. Os norte-americanos já podem viajar a Cuba e gastar cem dólares em bebida ou tabaco. “Isso é uma balela. Como eles não sabem os preços, vi norte-americano comprando uma caixa de Cohiba que custa 300, 400 dólares e pegando recibo em papel de pão de cem para passar na alfândega”, revela Adames, que já foi mais de trinta vezes à ilha e esteve lá em fevereiro, na 28.a edição do Festival do Tabaco de Havana.
Um Cohiba Robusto, ícone da excelência cubana na arte do tabaco e que era o favorito de Fidel, sai por cerca de 175 reais numa tabacaria paulistana. Parece caro? Tudo indica que teremos saudades deste preço muito em breve.
Entrevista publicada originalmente em EXAME Hoje, app disponível na App Store e no Google Play.