Ao entrar na avenida, o espírito corintiano da Gaviões tomou conta de vez da ala (Wikimedia Commons)
Da Redação
Publicado em 22 de fevereiro de 2012 às 09h29.
São Paulo - Participar de um desfile de escola de samba é muito mais do que percorrer o trajeto do sambódromo, acenando para o público, dançando e cantando o samba enredo. Na verdade, essa é a parte mais fácil. Difícil mesmo é o que vem antes e depois.
Na sexta-feira à noite, fui buscar a fantasia da Ala Vip 20 da Gaviões da Fiel, animado por sair na escola de samba que representa o meu time do coração, o Corinthians. Até que não era tão pesada: não deveria ter mais do que cinco quilos. Mas não é possível botar duas fantasias num carro pequeno, tal é o volume que ocupa.
No sábado, decidi ir direto para o sambódromo. O desfile estava marcado para as três da manhã e a concentração às duas. Prevenido, cheguei bem antes. Depois de percorrer a pé cerca de quatro quilômetros para chegar à concentração, carregando a fantasia na mão, ela já pesava muito mais do que cinco quilos. Depositei a fantasia no chão e fiquei à espera dos meus pares.
A concentração é uma torre de babel. George Lucas deve ter se inspirado nela para criar seu bar de extraterrestres do filme Guerra nas Estrelas. Além da diversidade das fantasias, não há a menor organização naquele grande espaço reservado à preparação das escolas de samba.
Mas é impressionante como tudo dá certo no meio daquele caos, que lembra alguma cena onírica de Fellini, o diretor de cinema italiano. Se as alas fossem batalhões de um exército, não daria tão certo. Uma hora antes do desfile, eu já estava integrado na minha ala, completamente vestido com todos os paramentos da minha fantasia.
Deu-se uma longa espera em que avançamos, lentamente, em direção à avenida. A hora de entrar não chegava nunca e a fantasia, a essas alturas, pesava mais de 15 quilos. Todos aguardavam em silêncio, uma certa tensão no ar, manifestada por sorrisos nervosos. O chefe da ala aparece e repassa todas as fantasias.
“Vamos arrebentar, gente. Isso aqui é coisa séria!”, evoca ele. “Todo mundo cantando. Quem não souber a letra, mexe a boca”. A mulher do meu lado, choraminga: “Tá pesado, não agüento mais”. Ninguém consegue se mexer direito, a não ser para caminhar, alguns passos de cada vez, em direção à avenida. Não se vê nada do desfile. Nada. Estamos apenas perfilados esperando a hora da entrada.
O desânimo já seria geral mas, de repente, a bateria liga o motor. Uma onda de energia, quase visível, se desloca em nossa direção e tudo muda. O rosto das pessoas se transforma, a fantasia fica mais leve, e apesar das dificuldades, todos começam a se mexer. “´Tá chegando a hora”, grita o chefe. “Vai Corinthians!”, se manifesta um integrante da ala. Dizer que a fantasia já não pesava mais é mentir. Mas a partir daquele momento o desconforto e o cansaço já não prevaleciam.
Entramos na avenida e o espírito corintiano da Gaviões toma conta de vez da ala. Todos cantam e fazem a tímida coreografia: impossível realmente dançar. Há uma intensa integração com o público. Mandam beijos, acenam, cantam junto, batem com o punho fechado no peito. Se você não se deixar emocionar, não tem graça.
Eu já não sinto os meus pés no chão — porque se sentisse, não conseguiria dar sequer mais um passo. Estou exausto. Mas continuo, intenso, movido por aquela onda de energia. É tudo muito rápido. E quando você chega na dispersão, a impressão é de que aquele trajeto na avenida foi apenas um sonho.
A lembrança é fugidia. Afinal, o que aconteceu mesmo? Eu não vi nada, nem sequer a bateria. Lembro apenas de alguns rostos e olhares do público emocionado. Alguém comenta: “desfilar é como a vida. Você sofre antes e depois e aquele instante parece mágica”.
Na dispersão, não há tempo para mais nada. Você é simplesmente evacuado em menos de trinta segundas. E de repente está na rua, entre ônibus, vendedores de bebidas, policiais e todos aqueles extra-terrestres, exaustos, carregando suas fantasias. Há um longo retorno a pé até chegar ao meu destino. Arrasto-me, no limite das forças, carregando os ornamentos na mão.
Pronto, o sonho acabou. A vida continua.