Desfile da Mangueira no Sambódromo: da colonização a um painel de grafite com o inscrito "ditadura assassina" (Pilar Olivares/Reuters)
AFP
Publicado em 5 de março de 2019 às 19h36.
As escolas de samba do Rio de Janeiro fecharam na madrugada desta terça-feira duas noites de desfiles deslumbrantes, marcados pelo resgate de heróis e mitos relegados pela história oficial.
Memória da escravidão, críticas à intolerância religiosa e recuperação de expressões da cultura popular foram as respostas dos enredos à onda neoconservadora que há três anos pôs o ex-bispo Marcelo Crivella no comando da prefeitura do Rio e este ano Jair Bolsonaro na presidência do país.
A sucessão de carros alegóricos, as fantasias sofisticadas e a abundância de purpurina foram, como sempre, as armas com as que as escolas de samba despertaram o entusiasmo dos 72.000 espectadores reunidos no Sambódromo, na Avenida Marquês de Sapucaí.
A Mangueira propôs em seus carros alegóricos uma revisão das lições da história escolar, desde a colonização europeia, apresentada como um cemitério de povos indígenas, até um grafite em frente a uma biblioteca que diz: "Ditadura assassina", um ataque frontal ao regime militar (1964-85).
Esta "história que a história não conta" prestou homenagem à vereadora Marielle Franco, assassinada há um ano. Sua viúva, Monica Benício, desfilou na última ala da Mangueira.
"A única vereadora negra que carregava no corpo todas as pautas que defendia, sendo mulher, negra, favelada, lésbica, foi executada. [Estar aqui] é uma forma de resistência, de cobrar justiça", disse Benício à AFP pouco antes do desfile.
A Vila Isabel também recordou Marielle ao celebrar o fim da escravidão em um dos seus carros, no qual desfilaram familiares da vereadora que exibiram uma bandeira com a inscrição "Marielle presente".
- Regresso às raízes -
Os desfiles da segunda noite foram abertos pela São Clemente, com um enredo que lamenta a mercantilização do carnaval, em detrimento de suas origens populares.
No desfile, as mulheres da ala das baianas levavam em suas saias rodadas um aviso de aluguel.
O último carro alegórico da São Clemente criticou a prefeitura, que nos últimos três aos cortou em até 50% os recursos públicos destinados ao carnaval. "Alô prefeitura, o carnaval é nossa cultura", dizia um dos cartazes pendurados no carro.
A Portela, que este ano completa 96 anos, saiu em busca do seu 23º troféu com um desfile majestoso dedicado à cantora Clara Nunes, ícone musical dos anos 70 e primeira artista a defender publicamente as religiões afro-brasileiras.
Na noite anterior, o Salgueiro dedicou seu enredo a Xangô, orixá da justiça, e fechou o desfile balançando bandeiras com mensagens contra a corrupção, a favor do feminismo, da igualdade, da liberdade e da diversidade sexual.
A Vila Isabel recordou o esplendor do Brasil imperial, ambientado em Petrópolis, na região serrana do Rio.
Paraíso do Tuiutí, vice-campeã em 2018, apresentou um irônico enredo intitulado "O salvador da pátria", encarnado em um bode Ioiô, "nordestino, barbudo, baixinho, de origem pobre, amado pelos humildes e por intelectuais, incomodou a elite e foi condenado a virar símbolo da identidade de um povo". Uma descrição que para muitos remete ao ex-presidente preso Luiz Inácio Lula da Silva.