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‘Cancelamento’ por apropriação assombra Adele, Kanye West e Mulan

A socialite Kim Kardashian e a grife Prada também já figuraram na lista de supostos apropriadores culturais

Desfile de Cruise 2021 da Christian Dior, realizado em Lecce (Puglia) e transmitido on-line em julho. As roupas e os acessórios foram feitos em parceria com artesãos locais (Divulgação/Divulgação)

Desfile de Cruise 2021 da Christian Dior, realizado em Lecce (Puglia) e transmitido on-line em julho. As roupas e os acessórios foram feitos em parceria com artesãos locais (Divulgação/Divulgação)

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Daniel Salles

Publicado em 8 de setembro de 2020 às 09h49.

Não parece haver um único mês em que casos de apropriação cultural não tomem o debate virtual com discussões acaloradas sobre os limites da indústria do entretenimento quando ela reproduz traços de culturas, religiões e etnias. Os últimos “cancelados” por isso, para citar o novo sinônimo de escrutínio, foram os cantores Adele e Kanye West. Antes deles, porém, já figuraram na lista de supostos apropriadores da socialite Kim Kardashian à grife Prada – o caso da grife italiana foi tema de reportagem da última edição da EXAME, em Casual.

Na segunda-feira (31), explodiu na internet uma foto da cantora britânica numa festa de carnaval em Notting Hill trajada com um biquíni no qual se via a bandeira da Jamaica, um acessório de penas enrolado no pescoço e um penteado de coques da ilha caribenha.

Post do Instagram da cantora Adele recebeu críticas por supostamente glamourizar a cultura dos jamaicanos, colonizados pelos britânicos no século 17 (Divulgação/Divulgação)

Na visão de quem critica, Adele, branca e inglesa, não poderia se apropriar de forma fantasiosa de uma estética com significados importantes para uma população colonizada por britânicos.

Já entre os defensores, houve quem apontasse que a cantora cresceu numa região de imigrantes jamaicanos de Londres e que, na festa em questão, os próprios ingleses de ascendência jamaicana oferecem a ornamentação.

A discussão é a mesma sobre quem usa cocares indígenas no carnaval, tranças de origem africana e estampas que remetem às tribos originárias do Brasil. Por aqui, aliás, a cantora Claudia Leitte amargou o ônus de ter se fantasiado da guerreira Mulan no Carnaval passado. Tratava-se de uma parceria com a Disney, que lançará em sua plataforma de streaming a versão em live-action de seu clássico homônimo.

Personagem Mushu, dragão do desenho original da Disney "Mulan" (1998). O simpático dragão sumiu do live-action por supostamente desagradar parte dos chineses (Divulgação/Divulgação)

O filme que leva o título da personagem principal e estreia nesta sexta-feira (4) para quem pagar US$ 29,90 para liberar seu acesso não trará o simpático dragão Mushu do desenho original de 1998.

Essa ausência, segundo disse o produtor Jason Reed em fevereiro ao site Collider, deve-se ao fato de que “o público chinês tradicional não achava que essa era a melhor interpretação do dragão, que em sua cultura é um sinal de respeito, força e poder”.

Ou seja, ele sugeriu que a representação do animal mitológico nunca agradou totalmente seu país de origem –e parece esperto que, dada a representatividade do mercado chinês no consumo cultural, a produção tenha evitado polêmicas.

Em entrevista recente, a diretora do filme, Niki Caro, disse que o motivo da exclusão do personagem é porque Mushu seria "insubstituível". Então, uma fênix foi colocada na versão final para representar a ligação de Mulan com seus ancestrais. É claro que os fãs não gostaram nada.

Novos tênis da segunda colaboração entre as grifes Adidas Originals e Prada. Os pares foram produzidos na fábrica da etiqueta italiana e serão lançados na terça-feira (8) (Divulgação/Divulgação)

Esse assunto se tornou especialmente belicoso para a moda, porque ela trata essencialmente da venda de imagem e produtos que carregam referências. A grife do rapper Kanye West, a Yeezy, foi criticada no final do mês passado após lançar dois modelos novos de tênis de sua parceria com a Adidas.

O Yeezy Boost 350 V2 Israfil e o Yeezy Boost 350 V2 Asriel carregam os nomes de dois anjos do islamismo. Os muçulmanos não gostaram, mas o tênis Israfil, que tem o nome angelical gravado em tinta, logo esgotou nos mercados em que foi disponibilizado no dia 22 de agosto.

O rapper não comentou o assunto, nem a Adidas, que agora está empenhada na segunda colaboração própria de sua marca premium Adidas Originals com a grife Prada. A marca lançará, na próxima terça-feira (8), três modelos de Adidas Superstar (aquele com três listras no meio) redesenhados e fabricados na sede da etiqueta na Itália. Isso acontece após o sucesso retumbante da colaboração entre a Nike e a francesa Dior, que personalizou o clássico modelo Air Jordan.

Peça publicitária da marca Bihor Couture, que vende peças de roupas produzidas por artesãs romenas, alude ao suposto caso de apropriação dos casacos locais por parte da Dior (Divulgação/Divulgação)

Os dois modelos disponibilizados para venda em julho, um de cano alto por 1.900 euros, e um de cano baixo por 1.700 euros, formaram uma fila de 5 milhões de interessados na pré-venda. Colaboração, a Dior aprendeu, é uma das melhores formas de alcançar êxito.

Não sem antes ser alvo de críticas num dos mais ruidosos casos de apropriação cultural da moda, e que parece ter mudado a própria cultura de produção e imagem da empresa do grupo LVMH.

Em 2018, a marca colocou à venda um colete de 30.000 euros parecido com o que as artesãs do distrito de Bihor, na Romênia, produzem há pelo menos uma centena de anos. O caso atraiu o mundo, e após a hashtag #BihorNotDior se espalhar na rede, uma revista local e o braço romeno da agência americana McCann se uniram com as artesãs para fundar a marca Bihor Couture.

A peça delas saia por 500 euros, e a campanha, que trazia as mulheres em primeiro plano com seu artesanato, ganhou o prêmio Lions do Festival de Cannes, neste que talvez seja um dos melhores exemplos do ditado “fazer do limão uma limonada”.

A Christian Dior não se posicionou sobre o caso, mas agiu. Em 2019, apresentou uma coleção no Marrocos inteiramente criada em parceria com comunidades do continente africano, alfaiates famosos, ceramistas e uma gama gigantesca de artesãos locais. As peças, a imagem e a troca financeira se traduziram em ganhos de imagem e vendas robustas.

Neste ano de pandemia, uma das coleções da marca, desfilada em julho, foi feita em colaboração com os artesãos de Puglia, região da Itália onde nasceu o pai da atual estilista da Christian Dior, Maria Grazia Chiuri, e cuja economia foi duramente atingida pela Covid-19.

Em entrevista à reportagem na última semana de moda de Paris, em março, Chiuri não comemorou o desempenho da coleção que havia apresentado no Marrocos, mas deu uma ideia de como é difícil chegar a uma ideia formada sobre colaborações entre países.

“Consegui produzir essa coleção porque estou na Dior. É realmente caro esse processo de produção, porque ele envolve testes, importação e toda a logística para fazermos da forma correta. Fico pensando, um estilista jovem, sem dinheiro, ele não conseguiria”, disse Chiuri.

E acrescenta: “mesmo para aqueles que moram no país, seria caro fazer parcerias como a que fizemos. Temos de ter cuidado ao falar sobre o assunto, porque ao mesmo tempo que é importante, não podemos tolher a criatividade de quem está começando”.

Pelo sim ou pelo não, vale lembrar da máxima “perguntar não custa nada”. Nesse caso, até pode custar, mas bem menos do que uma crise de cancelamento público.

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