Bertrand Bonello: cineasta contou das inspirações para a produção do filme (Pascal Le Segretain/Getty Images)
Estadão Conteúdo
Publicado em 29 de abril de 2020 às 15h11.
Em isolamento social, na França, o cineasta Bertrand Bonello comenta a transformação da realidade em cenário de gênero. "Estamos vivendo o verdadeiro horror." Ele tenta manter a disciplina, mas depende do dia.
"Trabalho no desenvolvimento de projetos, leio, assisto a filmes, mas, às vezes, bate um desânimo." Não se interessa muito pelas novidades de séries. Revê os clássicos - A Quermesse Heroica, de Jacques Feyder, de 1935. E F. W. Murnau.
"Não me canso de rever Aurora (de 1927), que permanece como um dos filmes mais belos já feitos." Murnau talvez tenha realizado o maior filme de vampiro de todos, o Nosferatu de 1922. O gênero será o tema da conversa por telefone com Bonello.
No ano passado, ele lançou Zombi Child na mostra Quinzena dos Realizadores, no Festival de Cannes. Na competição, houve a celebração e premiação do cinema de gênero, com Parasita, de Bong Joon-ho - e Atlantis, de Mati Dip, Les Misérables, de Ladj Li, e Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dorneles.
A crítica, especialmente de língua inglesa, colocou Zombi Child nas nuvens. Em tempos de pandemia, a distribuidora Califórnia desistiu de esperar para colocar o Bonello nos cinemas e, a partir desta quarta, 29, o filme chegará ao streaming, nas plataformas iTunes, Google Play, YouTube, Vivo Play e NOW.
Os mortos têm andado nas telas há décadas. Com George Romero, esse seguimento particular do horror se tornou marcadamente social, nos anos 1960. Essa mesma dimensão, digamos sociopolítica, animou o escritor gaúcho Erico Verissimo quando lançou, em plena ditadura, Incidente em Antares.
Nas pegadas de Romero, Zach Snyder lançou Madrugada dos Mortos que, só para lembrar, teve sua première em Cannes. Na TV, Walking Dead foi um estouro. No cinemão - de massa -, Brad Pitt e o diretor Marc Foster alcançaram um patamar dificilmente superável com Guerra Mundial Z. O que Bonello ainda tem a dizer sobre os zumbis?
"Há uns 15 anos, e com certeza foi antes do grande terremoto que causou todo aquele estrago (em 2010), tive uma fase de me interessar pelo Haiti. Li um monte de livros - de história, etnologia, literatura. Quando se pesquisa sobre o Haiti, um tema que aparece sempre é o vodu, conta.
"Descobri a figura referencial de Clairvius Narcisse, que faz parte da lenda local. Em 1962, ele foi drogado e queimado vivo, mas ressuscitou e foi trabalhar na plantação. Essa história impregnou no imaginário dos haitianos, e no meu também, mas terminei por emendar filme após filme e terminei me esquecendo dela. No começo de 2018, estava com um projeto grande, mas o financiamento falhou. Não queria ficar parado e pensei em algo que pudesse fazer rapidamente, e de forma barata. A história de Narcisse me voltou, e com força."
Na ficção de Bonello, a quem se devem filmes como O Pornógrafo, Tirésia, L’Apollonide - Os Amores da Casa de Tolerância, Saint Laurent e Nocturama, Narcisse está presente, mas a história se desenvolve em duas épocas, a dele e a de um grupo de garotas numa escola tradicional, na França contemporânea. A escola abriga familiares e descendentes de agraciados com a Légion d'Honneur, tudo muito classudo e, aparentemente, respeitável.
Chega essa nova garota, Mélissa, do Haiti. As colegas descobrem que não apenas ela é neta de Clairvius Narcisse, como sua tia tem fama de feiticeira, e de ser praticante de vodu. A líder da sororidade, Fanny, está tendo problemas com o namorado e resolve recorrer ao sortilégio da tia de Mélissa, mas o resultado é imprevisível, ou melhor, previsível para o público.
Passado e presente chocam-se, os mortos ressuscitam e o caso está formado. "Sem que eu me desse conta, essa história estava tão entranhada no meu inconsciente que escrevi o roteiro em menos de quatro meses. Filmei na sequência, pensando que o filme deveria estar pronto para Cannes, em 2019. Um pouco para reduzir custo, mas também porque gosto de experimentar, fiz a trilha."
Bonello toma por um cumprimento, e é, o que lhe diz o repórter. O cinema francês foi muito marcado pelo fenômeno da nouvelle vague, por volta de 1960, mas sempre teve os autores ‘inclassables’, os difíceis de catalogar. Jacques Tati, Robert Bresson. Bonello é dessa estirpe. Faz filmes que não se enquadram nas regras da indústrias nem do cinema autoral do país. Tem fama de obstinado. Manteve o seu Saint Laurent quando outro filme, com mais dinheiro, era feito sobre o estilista.
"A história de Narcisse me colocava problemas muito específicos. A herança da escravidão, a negritude. Até onde sei, não descendo de escravos nem sou negro, mas a história me interessava muito, até pelo seu potencial político, numa época em que a questão dos refugiados divide a França e a Europa inteira. Precisava encontrar o meu viés para tratar do assunto, o ponto de vista francês. E assim impregnei a história real de ficção. Criei a Mélissa, que perdeu os pais no terremoto e vem à França para morar com a tia."
Por mais que tenha ficcionalizado, ele conta que a história de Narcisse é documentada e, nos anos 1980, nos EUA, estudos foram feitos sobre as drogas (tetrodotoxina e datura) que lhe teriam permitido ressuscitar. Um cientista canadense (Wade Davis) escreveu o livro The Serpent and the Rainbow, que Wes Craven transformou em filme (A Maldição dos Mortos-Vivos, de 1987).
Segundo a tradição, os zumbis voltam à vida porque não encontram lugar no inferno. Como almas penadas, vagam entre céu e terra, noite e dia. "À medida que escrevia, fiquei cada vez mais interessado na riqueza dessa história. Por mais pop que seja o personagem do zumbi na mitologia popular, ele é essencialmente trágico. E com ele vinha a relação da França com suas colônias, o legado da escravidão. O filme tornou-se cada vez mais político na minha cabeça, e a crítica percebeu isso, em Cannes. O risco era carregar mais no fundo e me perder na forma, naquilo que Zombi Child tem de evocação do gênero."
Em termos de influências, Bonello diz que bebeu mais nas fontes da literatura e do jornalismo. Mas admite que dois filmes foram importantes na sua concepção - o clássico de terror A Morta-Viva/I Walked Like a Zombi, de Jacques Toureneur, produzido por Val Lewton no começo dos anos 1940, e o média-metragem (36 min) de Jean Rouch, Les Maitres Fous. Bonello sentia que era necessário filmar no Haiti, mas conta que foi mais difícil do que pensava. Acima de tudo, por uma questão cultural.
"Você é branco, chega lá e diz que vai fazer um filme sobre vodu, eles pensam que é só mais um e será picaretagem." Com seu diretor de fotografia, filmando no método chamado de ‘noite americana’, que toma a noite pelo dia, ele conseguiu a textura que desejava.