Renato Russo: na visita, demorou-se para observar as anotações de alguns dos 29 diários que Renato escreveu entre 1975 e 1996 (Legião Urbana Produções/Ricardo Junqueira/Agência Brasil)
Estadão Conteúdo
Publicado em 27 de março de 2021 às 14h08.
Última atualização em 27 de março de 2021 às 14h12.
A sala mede apenas 65 m² de área, mas a dimensão do material que abriga é infinita: estão ali, cuidadosamente alojados, cerca de 6 mil itens do acervo do cantor Renato Russo - um número surpreendente, pois se acreditava que era metade disso. São manuscritos, instrumentos musicais, roupas, pôsteres, móveis, quadros, um material que ajuda a reconstruir a intimidade e o modo feérico do líder da banda Legião Urbana, que completaria 61 anos neste sábado - morreu jovem, em outubro de 1996, com apenas 36 anos.
"É um material fascinante, rico, que traduz muito da mente efervescente de Renato", comenta a produtora Bianca De Felippes, da Gávea Filmes, que prepara um documentário e uma minissérie a partir do acervo do cantor e compositor. Na terça-feira, 23, o Estadão acompanhou a primeira visita feita por ela ao vasto material, guardado na Clé Reserva Contemporânea, empresa localizada em Barueri e especializada na armazenagem de obras de arte. Ainda que íntima da trajetória do cantor e compositor - já produziu dois filmes, Faroeste Caboclo (2013) e Eduardo e Mônica (sem data de estreia por causa da pandemia), além de Renato Russo - O Musical, que já completa 15 anos de sucesso, com previsão de volta a São Paulo em julho, no CCBB -, Bianca continua se surpreendendo.
Na visita, demorou-se para observar as anotações de alguns dos 29 diários que Renato escreveu entre 1975 e 1996 - o manuseio era feito por Renata Tsuchiya, historiadora e museóloga que, desde janeiro, é responsável pela catalogação do acervo. "Cerca de 90% do material já foi examinado e classificado", orgulha-se ela que, como manda o figurino, utiliza luvas para tocar nos artigos.
Os diários permitem descobrir o estado de humor de Renato no momento da escrita, mas principalmente sua linha de raciocínio e a evolução criativa. "Quando escrevia uma letra de música, se fosse acrescentar algo, ele não rabiscava ou fazia anotações laterais - preferia escrever tudo de novo, agora com o acréscimo", observa Renata. Assim, nesse processo passo a passo, é possível notar que a letra de uma de suas mais famosas canções Eduardo e Mônica, originalmente era mais extensa e incluía passagens como uma viagem à Índia, que acabaram excluídas no texto final.
Pelos diários ainda, que são cadernos universitários com espirais, Renato exibia sua afiada conexão com o mundo do rock estrangeiro, mencionando bandas como Buzzcocks e Public Image Ltd. Leitor voraz, usava a literatura como fonte de inspiração (Rimbaud, Auden, Bukowski), além de se apoiar na espiritualidade e na astrologia, com citações de mapa astral e holística.
As paredes do espaço que acondiciona seu acervo também revelam suas paixões cinematográficas, como os cartazes de filmes que esbanjam sensualidade, como Atame!, do espanhol Pedro Almodóvar, e Betty Blue, do francês Jean-Jacques Beineix - de quebra, uma bela foto do italiano Pier Paolo Pasolini filmando na África.
Entre as joias do acervo de Renato Russo está a coleção de mais de 200 fitas cassete, nas quais o músico gravou ideias para projetos futuros, mas principalmente registrou acordes musicais de seu processo de criação. "E pensar que esse material estava dentro de caixas de sapato", comenta a produtora Bianca De Felippes.
De fato, todo o acervo ficou anos guardado no apartamento onde Renato morou, em Ipanema, no Rio - mesmo depois de sua morte. Herdeiro de valioso material, seu filho, Giuliano Manfredini, percebeu a necessidade de recuperar, catalogar e, principalmente tornar públicas preciosidades que encantariam qualquer fã.
Assim, em 2014, ele entrou em contato com o Museu da Imagem e do Som, o MIS, de São Paulo com a proposta de se fazer uma ampla exposição sobre Renato Russo. O material estava guardado no apartamento do número 378 da Rua Nascimento Silva, no Rio, para onde se dirigiu uma equipe do Centro de Memória e Informação do MIS. Lá, capitaneados pela documentalista Fabiana da Silva Ribeiro, os pesquisadores ficaram maravilhados com a quantidade de detalhes e documentos - e também com o hercúleo trabalho pela frente.
Afinal, as fitas cassete precisavam ser recuperadas do bolor que já ameaçava sua audição, enquanto os diários, com inúmeras páginas soltas e dispersas, necessitaram ter a ordem restabelecida, muitas vezes a partir de pequenas pistas entre uma folha e outra. "A tarefa de recuperação do acervo começou aí", constata Renata Tsuchiya.
Depois de uma intensa pesquisa, cerca de mil peças foram selecionadas para a exposição, a maior já montada no MIS, e que estreou em setembro de 2017, ficando em cartaz até o janeiro seguinte. Assim, quem visitou a mostra teve contato com apenas um sexto do acervo todo que, depois de finalizado o trabalho de catalogação, será preparado para exposições itinerantes em pelo menos cinco capitais, a partir de 2022. "Queremos ainda montar um site rico de conteúdo, a exemplo do grupo americano Grateful Dead, que é espetacular", observa Adriano Maia, da VMB Jurídica, que assessora Giuliano Manfredini.
O filho de Renato Russo deu carta-branca para Bianca De Felippes pesquisar o material necessário para seu documentário, ainda sem título e na fase inicial do processo criativo. "Algumas coisas já estão definidas, como a ausência de entrevistas, pois o próprio Renato é quem vai conduzir o filme, revelando seu processo criativo, seus humores e amores, tudo a partir do material do acervo", conta ela que, além do documentário de 70 minutos, planeja ainda uma minissérie de quatro episódios, com 40 minutos cada um, em que vai se fixar em detalhes do material, como o trabalho de conservação ou o rico conteúdo fornecido pelas fitas cassete. "Quero mostrar aspectos pouco conhecidos desse ídolo."